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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.224 Lisboa set. 2017

 

RECENSÃO

Margot Dias. Filmes Etnográficos. 1958-1961,

Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema/Direcção-Geral do Património Cultural e Museu Nacional de Etnologia,

 

Manuela Ribeiro Sanches*

*Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade — 1600-214 Lisboa, Portugal. E-mail: msanches@campus.ul.pt

 

Os debates que têm ocorrido em torno do passado colonial e o modo como ele ainda ecoa no nosso presente, na universidade e, mais recentemente, nos media e redes sociais, indicam que o embaraço ou o silêncio envergonhado, sob a capa dos louvores ao modo mais tolerante de os portugueses estarem no mundo e ao seu pioneirismo na globalização, poderão – espera-se – ter os dias contados.

A presente edição em DVD dos filmes de Margot Dias, numa iniciativa conjunta da Cinemateca Portuguesa e do Museu Nacional de Etnologia, vem mostrar a necessidade do trabalho moroso, difícil, silencioso e invisível requerido por uma abordagem da complexidade do passado colonial, lido a partir do nosso presente, como forma de imaginar um futuro coletivo sobre aquilo que pretendemos ser.

Um dos méritos desta edição é o de fornecer ao público interessado importantes objetos de estudo que poderão permitir uma reflexão mais fundamentada sobre a genealogia dos saberes coloniais.

Entre 1956 e 1961, Margot Dias nascida em 1908, na Alemanha, pianista convertida à etnografia, acompanharia o seu marido Jorge Dias em diversas expedições às antigas colónias, em particular a Moçambique, no âmbito da Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português. A conversão de Margot Dias ao estudo das culturas “autênticas”, ameaçadas pela modernização, já se dera antes, quando o marido se dedicava ao estudo das culturas populares europeias, campo em que o seu trabalho, note-se, ganharia, também, reconhecimento internacional, mesmo depois da queda do Estado Novo (West, 2006). Margot forneceria apoio constante ao marido, vivendo à sua sombra, como seria de esperar em tempos de defesa da divisão de papéis de género. Note-se, de resto, que Margot Dias ficaria com a responsabilidade, quer na fase de investigação e trabalho no terreno, quer aquando da publicação dos resultados nos quatro volumes d’ Os Macondes de Moçambique, pelas “tecnologias tradicionais” (p. 15) – cerâmica, cestaria –, pelos ritos de iniciação – também os masculinos, que não pôde filmar –, bem como pela música e escultura, segundo uma divisão de tarefas, que parecia reproduzir as de género, como o parece comprovar o facto de ter ficado ainda responsável pelo estudo dos sistemas de parentesco.

Foi nesse contexto que Margot Dias, segundo o testemunho da própria, decidiu filmar os encontros e cerimónias como instrumento de apoio e auxílio à futura etnografia escrita, à semelhança do que sucedeu com os registos sonoros, destinados ao estudo da música e da língua, esta da responsabilidade de Manuel Viegas Guerreiro. Conta Margot Dias que o marido não teria reagido com grande entusiasmo à sua sugestão de comprar equipamento de cinema, invocando os gastos supérfluos que tal aquisição acarretaria, acabando, contudo, por ceder (p. 15).

O facto de os filmes terem sido entendidos como mero instrumento auxiliar para a recolhade dados durante a estadia no terreno explicará, parcialmente, a qualidade obviamente amadora da recolha de imagens, bem como da montagem, o que faz com que o respetivo visionamento por parte do público menos especializado não seja fácil, nem constitua um momento de entretenimento, ao contrário do que sucede com os filmes – até os mais rudimentares – de Jean Rouch, ou mesmo os de Marcel Griaule ou de Boas, este último uma referência central para Jorge Dias, e de Margaret Mead, trabalhos que, surpreendentemente, os mais ilustres pioneiros da antropologia colonial pareciam desconhecer ou, pelo menos, ignorar.

Mas há que lembrar as razões pelas quais o planalto de Mueda foi escolhido como terreno para estas campanhas. Seria precisamente aí que, em 1960, ocorreria o célebre massacre que viria a constituir-se em momento fundador da futura FRELIMO e daria azo ao célebre filme de Ruy Guerra, Mueda, Memória e Massacre (1979), tido como um momento fundador do cinema nacional moçambicano, pesemembora as ­atribulações que o ­projeto viria a conhecer (Schefer, 2016).

E isto explicará também os conteúdos e forma dos filmes, em que é óbvio o desejo de preservar e registar a cultura maconde, num momento em que ela ainda podia ser registada na sua “pureza”, momento de harmonia, que, em 1961, Margot Dias, sabia ser “a última vez” (p. 15).

Como já foi amplamente estudado, com conclusões subtilmente diferentes (Pereira 1998; West, 2006) não foi por acaso que Dias e a sua equipa escolheram estudar os macondes do planalto de Mueda. E os silêncios da equipa, que Margot Dias, mais tarde, justificaria, insistindo que nunca se haviam interessado por política (West, 2006, p. 175), não conseguemser convincentes, mesmo se se considerar os constrangimentos a que as autoridade do Estado Novo e o clima de repressão e censura obrigavam. O que não invalida o valor documental quer da etnografia, quer dos filmes de Margot Dias, elementos a que os antropólogos contemporâneos, e também as elites macondes ainda recorrem de forma significativa (West, 2006).

Aquilo que a etnografia Os Macondes de Moçambique e estes filmes finalmente acabam sempre por propor é o registo de uma “cultura” purificada dos elementos de tensão e de mudança política – não só económica – (West, 2006, p. 170), elementos que são silenciados pela escrita etnográfica, que remete a maior parte das vezes os maconde aum tempo outro (Fabian, 2005), ou ocultados pela pretensa objetividade da câmara. Todavia, e pesemembora a fraca qualidade de montagem, de iluminação, nos travellings, estes filmes acabam por revelar-se um testemunho precioso não tanto do modo como esses “outros” praticavam a sua cultura, como da forma como eles eram construídos, congelados no tempo.

Mas, como McDougall (1998) teve ocasião de referir, a fixação visual permite que elementos não-desejáveis, perturbadores, fiquem, mesmo assim, registados, interrompendo a consistência da representação e da argumentação que a sustenta e a motiva, abalando os pressupostos objetivantes, de pretensa neutralidade, segundo as práticas antropológicas coloniais. E, assim, as imagens também nos dão a ver muitos elementos que nos mostram que os macondes viviam no presente – desde o modo como se vestiam, associando os seus trajos tradicionais aos modernos –, às práticas religiosas – como a própria observadora teve de reconhecer, por ocasião da filmagem de um enterro –, transformadas pelo cristianismo ou pelo Islão – de que a equipa de Dias desconfiava em particular, face ao papel que este, a par do protestantismo, desempenhava nos processos de questionamento da autoridade colonial. As novas tecnologias surgem de forma inusitada, mas tanto mais significativa, como sucede com as bicicletas – sempre recorrentes. E a câmara também não pôde deixar de captar os edifícios da administração colonial, que reaparecem, com um papel central, mas radicalmente diferente, no filme de Ruy Guerra. Para não falar das imagens de Jorge Dias, jovial e paternalista, na sua indumentária de explorador colonial, a destacar-se, tanto quanto Malinowski, nas suas fotografias entre os trobriandeses, assim revelando que os observadores nunca são transparentes nem destituídos de cultura.

Contudo, todas estas considerações só são possíveis, graças ao trabalho de edição cuidada que estes DVD constituem. A brochura que o acompanha fornece dados preciosos sobre os conteúdos dos filmes, que, de outro modo, permaneceriam ininteligíveis, a que acrescenta ainda informações obtidas junto da realizadora por Catarina Alves Costa em longas horas de conversa, durante a catalogação deste espólio, informações que são determinantes para se entender não só os contextos dessa fixação das culturas através da imagem, mas também a abordagem subjacente a esse processo. A publicação inclui,ainda, dados sobre os critérios de recuperação e sonorização, bem como especificações de ordem técnica, a par da descrição exaustiva dos conteúdos. De destacar ainda o importante contributo de Nuno Domingos e de Harry West, que propõe uma leitura crítica dos filmes e dos seus contextos de produção e de receção.

Em suma, e para concluir um texto que tem necessariamente de sintetizar – mas, espera-se, não simplificar – muitas questões que lhes estão subjacentes, as leituras que os interessados poderão fazer desta edição serão múltiplas: desde as que possam vir a ser feitas em Moçambique – com perspetivas aí também, porventura, muito diversas –, àquelas que, em Portugal, poderão contribuir para visão mais precisa acerca do modo como o saber se organizou e dependeu dos contextos de poder e censura instauradosdurante o Estado novo.

No que nos toca – e escrevemos a partir das nossas preocupações e de um campo exterior à antropologia, embora em constante diálogo com ela – valeria a pena ler, em contraponto ao visionamento destes filmes, o texto de Ruy Duarte de ­Carvalho (2008 [1983]) sobre a relevância e utilização problemática da antropologia visual, no cinema angolano, em particular, e africano, em geral. Haveria ainda que considerar,também em contraponto, o modo como a cultura foi utilizada no contexto das independências como arma fundamental para construir uma consciência nacional. Não para recuperar um passado congelado, como Fanon e Cabral o souberam reconhecer, mas através da articulação entre modernidade e tradição, de um modo inventivo, como os macondes o estavam a fazer e Ruy Guerra o soube registar, embora Duarte de Carvalho soubesse, pouco depois, antecipar os conflitos que poderiam surgir entre os interesses dessas nações dentro da nação e o projeto de construção nacional.

Considerações que haveria que desenvolver, mas que se deixa em aberto, para retomar o tema com que se iniciou esta recensão. Se as perspetivas sobre esses passados não são consensuais, nem unívocas, tanto mais necessário se torna o acesso a arquivos e documentos que, depois, poderemos ler a contrapelo, atentos aos silêncios e sombras que poderão não ser recuperados – pese embora tudo o que de aparentemente lateral a câmara teve de captar – reconhecendo as possibilidades e os limites do nosso trabalho, enquanto investigadores e cidadãos. Sem moralismos fáceis, nem desresponsabilizações apressadas, se é que queremos mesmo pensar um futuro coletivo efetivamente alternativo ao passado colonial, de que continuamos a serherdeiros.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CABRAL, A. (1976), Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, vols. I e II, Lisboa, PAIGC/Seara Nova.         [ Links ]

CARVALHO, R.D. de (2008 [1983]), “Cinema e antropologia para além do cinema etnográfico”. In A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita… Fitas, Textos e Palestras, Lisboa, Cotovia, pp. 388-434.         [ Links ]

FABIAN, J. (2005), “O tempo e a escrita sobre o outro”. In M. R. Sanches (org.), Deslocalizar a Europa. Antropologia, Arte, Literatura e História na Pós-Colonialidade, Lisboa, Cotovia, pp. 63-100.         [ Links ]

FANON, F. (2002 [1961]), Les Damnés de laterre, Paris, La Découverte.         [ Links ]

McDOUGALL, D.(1998), Transcultural Cinema, Princeton, NJ,Princeton University Press.         [ Links ]

PEREIRA, R. (1998), “Introdução”. In J. Dias, Os Macondes de Moçambique, vols. 1 e 2, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos e Instituto de Investigação Científica Tropical, pp. V-LII.         [ Links ]

SCHEFER, R. (2016), “As imagens que faltam. As duas versões de Mueda, Memoória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra”. In S. Sampaio, F. Reis e G. Mota (orgs.), Atas do V Encontro Anual da AIM, pp. 636-635. Disponível em http://www.aim.org.pt/atas/Atas-VEncontroAnualAIM.pdf.

WEST, H.G. (2006), “Invertendo a bossa do Camelo. Jorge Dias, a sua mulher, o seu intérprete e eu”. In M.R. Sanches, Portugal não é um País Pequeno. Contar o ‘império’ na Pós-Colonialidade, Lisboa, Cotovia, pp. 141-190.         [ Links ]

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