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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.224 Lisboa set. 2017

 

RECENSÃO

DIAS, Nuno

Remigração e Etnicidade. Trânsito Colonial entre a África de Leste e a Europa,

Lisboa, Mundos Sociais, 2016, 235 pp.

ISBN 9789898536532

 

Rita Ávila Cachado*

*CIES, ISCTE-IUL, Edifício ISCTE, Av.das Forças Armadas — 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: ritacachado@gmail.com

 

Publicado em 2016, temos em mãos um livro que não é apenas “mais um” no panorama dos estudos de migrações. É um contributo ousado nos conceitos e nas abordagens, mas há que desbravar a linguagem de uma tese de doutoramento (que esteve na origem deste livro) para o descobrirmos. Tal como o título insinua, a obra é fortemente influenciada pela literatura pós-colonial britânica, e entramos com ela numa viagem que nos apresenta uma parte importante da história colonial do Índico e seus efeitos no presente das populações sul-asiáticas na Europa.

Esta obra encerra três contributos centrais:

(1) no âmbito das análises pós-coloniais, o livro contribui para a nova historiografia do colonialismo, que tem sido feita por cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e historiadores, mas que tarda a entrar no senso comum da história contemporânea. O autor fá-lo através da análise histórica e sociológica das viagens de uma parte das populações sul-asiáticas em migrações sucessivas (às vezes cumulativas ao longo da vida), num tempo passado, controlado pelos poderes coloniais e, mais tarde, com múltiplas agências e dinâmicas.

(2) Ao abordar as políticas relativamente às migrações, nesta obra não lemos como certa a operacionalidade da abordagem integracionista, o que parece particularmente importante na atualidade, uma vez que há um insistente discurso político que se torna de senso comum, raramente criticado na academia, que é o discurso das boas práticas de integração portuguesas relativamente às populações imigrantes (não raras vezes remetendo para uma visão luso-tropicalista e, nesse sentido, comprometendo a evolução do debate pós-colonial). Não pondo em causa a importância da análise das políticas de integração – elas continuam a precisar de debate académico – a abordagemem si, da integração, pode e deve, contudo, ser desafiada teoricamente com outras abordagens.

(3) A literatura académica internacional produz centenas de trabalhos sobre a história complexa daquilo a que se convencionou chamar de diáspora sul-asiática, conceito que é criticado neste livro, seguindo o repto de Peter van der Veer. Nessa produção, o estudo dos efeitos do contexto colonial britânico vem saindo vitorioso, e parece viver isolado na literatura pós-colonial. Do colonialismo francês e do colonialismo português, dois contextos com um papel multifacetado na história, resultam muito menos trabalhos reflexivos. A literatura ­pós-colonial que analisa o colonialismo britânico antes e depois das independências é rica na reflexão sobre conceitos como raça e etnicidade; por isso, a literatura científica anglo-saxónica terá esta vantagem, bibliográfica se quisermos, sobre os outros colonialismos e respetiva produção académica.

No caso da temática da diáspora sul-asiática que passa por Portugal, a sua análise implica uma abordagem a ambos os contextos coloniais, português e britânico. E é aqui que reside então o terceiro contributo do autor. É que não só os contextos coloniais são analisados sem imiscuir um ou outro, como a reflexão sobre raça e etnicidade nãoé negligenciada. Os contextos da subalternidade, da resistência relativamente ao poder colonial e mesmo os contornos socio-históricos do pós-colonialismo, com a colaboração de uma análise que não hesita em convocar as questões que se relacionam com raça e etnicidade, melhoram a compreensão sobre grandes contextos analíticos como são as migrações, a transnacionalidade e a própria diáspora. De resto, a utilização acrítica durante anos deste último conceito resulta em parte da fraca inscrição dos colonialismos não britânicos na literatura. Vejamos esta questão com mais pormenor.

O autor refere, a dado momento, Martin Baumann, que no início dos anos 2000 convocava um trabalho de 1986, desconhecido dos investigadores portugueses na área, para afirmar que as populações hindus em Portugal praticamente não falavam Gujarati, mas esta língua gozava nessa altura de boa saúde. De facto, Baumann desconhecia a produção teórica resultante de pesquisa empírica aprofundada sobre populações hindus com um contexto histórico ligado ao colonialismo português, de onde então se destacava Susana Trovão Bastos. Se em 2000 talvez fosse difícil encontrar as suas publicações, atualmente, independentemente da língua de publicação, deixou de haver razão para que cerca de uma dezena de autores que escrevem sobre esta população seja ignorada na literatura internacional. A referência ao lapso de Baumann no livro agora publicado contribui, nesse sentido, para a inscrição desse desconhecimento, por um lado, e para evitar erros futuros.

Permanece, contudo, a incerteza sobre a operacionalidade da ideia de remigração como alternativa à abordagem clássica das diásporas. Um dos problemas da “diáspora” hindu é o seu par conceptual “transnacionalismo” – um par afetado pelos contextos nacionais. Mas o conceito de transnacionalismo, por sua vez, acolhe uma ideia mais fértil, a de “populações transnacionais”, focando nas pessoas e, nesse sentido, permitindo uma melhor compreensão de como as políticas nacionais e locais são vividas pelos cidadãos que vivem em mais do que um país. Não obstante, importa sublinhar que a ideia de remigração leva, pelo menos, a refletir sobre a atual operacionalidade destes conceitos, o que é já uma vantagem analítica.

No panorama da literatura portuguesa sobre as populações do sul da Ásia imperam as abordagens antropológicas e históricas. Este livro abre o leque das disciplinas que se detêm na história do trânsito colonial no Índico. Além dos contributos elencados, o pano de fundo analítico é eminentemente socioeconómico – temos a história da viagem dos têxteis, ao mesmo tempo quea das pessoas, e uma não está separada da outra em momento algum, nem mesmo quando olhamos para a estratificação social das populações sul-asiáticas. É que habituados que estamos a olhá-las como modelo social à parte, através do sistema de castas, a incorporação da dimensão de classe na discussão sobre estrutura social sul-asiática é mais do que bem-vinda, porque, por vezes, a singularidade do sistema de castas é usado como desculpa para a perpetuação das desigualdades. Nesse sentido, o referente da conjuntura económica analisado sociologicamente é uma mais-valia para esta história complexa.

Finalmente, um apontamento sobre dados disponíveis sobre as populações. Este livro não foge ao debate sobre a dificuldade em ter números fidedignos das populações. No caso português, os números “corretos” tornam-se difíceis pela questão da nacionalidade em si, muitas pessoas imigradas em Portugal já eram portuguesas antes de mudarem de país. E, atualmente, é importante lembrar o carácter profundamente transnacional da população em causa. Se uma parte da população sul-asiática transnacional vive em dois ou mais países ao longo do ano, os números nunca serão fidedignos e colocam-nos uma questão: para que servem, ou melhor, a quem servem os números “fidedignos”? Se éincontornável, para explicar um contexto populacional, apontar para números absolutos atuais ou passados, de forma a que os leitores compreendam a ordem de grandeza da população em causa, é também importante explicar os silêncios dos números pouco “fidedignos” e as suas implicações no debate académico. De resto, os hindus que fazem o percurso Índia, Moçambique e outros países do Leste africano, Portugal, Reino Unido, são uma população que ajuda a pensar nas questões de mobilidade transnacional, que não se faz apenas entre países, mas igualmente entre tipos diferentes de governação.

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