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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.224 Lisboa set. 2017

 

RECENSÃO

MOURY, Catherine

A Democracia na Europa,

Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016, 104 pp.

ISBN 9789898838513

 

António Goucha*

*ISEG, Universidade de Lisboa, Rua Miguel Lupi, 20 — 1249-078 Lisboa, Portugal. E-mail:agsoares@iseg.ulisboa.pt

 

A Democracia na Europa, publicado na coleção Ensaios da editora Fundação Francisco Manuel dos Santos, é um trabalho de divulgação centrado no sistema político da União Europeia e, em particular, no Parlamento Europeu, analisando o crescendo de poderes que esta instituição conseguiu alcançar ao longo do tempo, partindo depois para uma reflexão sobre o funcionamento e a qualidade da democracia no contexto do chamado processo de integração europeia.

De acordo com Catherine Moury, as considerações e argumentos desenvolvidos ao longo do ensaio pretendem responder a algumas questões fundamentais, tais como “se a União Europeia ainda é uma democracia, se alguma vez o foi, e se as suas decisões são legítimas”.

O texto está dividido em quatro capítulos que versam sobre o funcionamento político da União Europeia, o papel do Parlamento Europeu, a democracia na União, e o impacto da crise do euro no processo político europeu, respeti­vamente.

Sendo um ensaio da autoria de uma politóloga, baseado em conceitos e na terminologia da ciência política, o trabalho revela dois méritos maiores: por um lado, é apresentado numa linguagem acessível, que facilita a leitura por um público alargado; por outro lado, o propósito de divulgação que norteia a publicação não obsta a que desenvolva uma análise crítica do processo político da União, em particular sobre a crise do euro, em contraste com a inocuidade dominante nos estudos políticos que versam sobre a mesma temática, os quais parecem ter volatizado o impacto da crise do euro no funcionamento da União Europeia. Neste sentido, o trabalho de Moury não frustrará, por certo, as expectativas dos leitores mais exigentes, que demandam análises abrangentes sobre a União Europeia.

A construção europeia pretendeu, desde o início, assentar num parlamento europeu que representasse os cidadãos de todos os países participantes. Assim, o Conselho da Europa foi dotado de uma Assembleia Parlamentar, do mesmo modo que a primeira Comunidade Europeia teria um órgão semelhante, sendo que este último evoluiria no decurso do tempo para o atual Parlamento Europeu.

Por isso, o Parlamento Europeu terá sido a instituição mais simbólica do processo de construção europeia e, em virtude do aprofundamento da integração, foi também a entidade que maiores transformações sofreudesde a sua ­criação. Na sequência dessa evolução, o ­Parlamento Europeu alcançaria, através do Tratado de Lisboa, um leque de poderes – de controlo político, e no desempenho das funções legislativa e orçamental – que o aproximam do modelo de funcionamento dos órgãos parlamentares nos sistemas democráticos dos países da União Europeia. Moury refere mesmo, presume-se que de forma hiperbólica, que o Parlamento Europeu será um dos parlamentos mais poderosos do mundo (p. 33).

Deste modo, a evolução do Parlamento Europeu – de uma entidade quase figurativa no seio de uma organização internacional para uma poderosa instituição política de uma confederação de Estados – espelha a metamorfose ocorrida no próprio processo de construção europeia ao longo das últimas seis décadas. A marca justificativa da transformação do papel do Parlamento Europeu no processo político da União assentou na necessidade de aumentar a natureza democrática da integração dos Estados europeus, combatendo um défice democrático resultante da arquitetura inicial dos tratados.

O segundo capítulo do ensaio de Moury enumera os aspetos essenciais deste percurso transformativo do Parlamento Europeu, salientando como esta instituição foi aforça motriz dos sucessivos incrementos de poder de que foi beneficiária, desde o Ato Único Europeu. Em particular, a autora refere a astúcia do Parlamento Europeu no uso dos seus poderes formais para conseguir novas prerrogativas em áreas em que não lhe tinham ainda sido conferidos poderes, fenómeno designado no jargão dos estudos políticos por arena-linking.

Na verdade, o Parlamento Europeu é um ator político que cresceu ao longo do tempo, tendo atingido a maturidade com o Tratado de Lisboa, o qual lhe conferiu um estatuto próximo das entidades similares nos estados democráticos. Por isso, seria de esperar que o Parlamento fizesse bom uso dos novos poderes para deixar a sua marca nos desafios políticos que se colocam à União.

O maior desafio político ao processo de integração, desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, foi acrise do euro, que se receou pudesse fazer mesmo implodir a própria União. A gestão da crise do euro foi feita através de um amontoado complexo de atos e instrumentos, nem sempre adotados no quadro de funcionamento da União Europeia. No âmbito da gestão da crise do euro foi realizada uma reforma da governação económica da zona euro. Parte importante dessa reforma resultou na aprovação de um pacote de diplomas legislativos – o chamado six pack.

Acontece que o Parlamento Europeu, nas negociações do referido pacote legislativo, se revelou mais preocupado com questões de poder formal, do que de substância. Em particular, o Parlamento Europeu conduziu a sua estratégia negocial do pacote legislativo de forma a conseguir influência política numa área em que os tratados não lhe conferiram poder de decisão – prosseguindo na sua cruzada de arena-linking – a qual respeitava à aplicação de sanções aos Estados-membros que violassem as disposições do Pacto de Estabilidade. Ou seja, mesmo depois de ter atingido a maturidade política, o Parlamento Europeu subordinou a sua participação no pacote legislativo de reforma da governação económica da zona euro ao alastramento do seu poder decisório.

A crise do euro teria sido uma excelente oportunidade para o Parlamento Europeu ter feito prova de vida como a maior instituição democrática da União: pela dimensão da crise; pelos contrastes surgidos entre Estados-membros; pela emergência de um poder hegemónico, operando à margem das regras; pela subordinação da Comissão aos países credores; pela forte carga ideológica das políticas prescritas. Não faltaram motivos ao Parlamento Europeu para usar a crise do euro para se afirmar como centro da vida democrática europeia e, sobretudo, como ator político principal da União.

Em vez disso, o Parlamento Europeu desapareceu do xadrez político europeu durante a crise do euro, remetendo a gestão desta última para os novos equilíbrios de poder que se afirmaram nesse período. O Parlamento Europeu confinou-se ao desempenho da função normativa, participando na aprovação do pacote legislativo que emoldurou as novas regras da governação económica europeia, esboçando episódicas guerras de alecrim e manjerona com os interlocutores institucionais para obter míseras vitórias de Pirro no âmbito dos seus poderes normativos. Em contraste com o referido pela autora, o Parlamento Europeu não foi relegado para segundo plano durante a crise do euro (p. 76), sendo antes a própria instituição que se deixou remeter para essa posição, em parte por ter mantido uma estratégia autorreferencial de comportamento político.

Com efeito, o Parlamento Europeu terá trocado a participação ativa na condução da crise do euro pelo esticar ad aeternum do alcance dos seus poderes legislativos. Assim, o Parlamento Europeu pouco se diferenciou das outras instituições políticas supranacionais no decurso da crise, fazendo eco da mesma narrativa dos acontecimentos que o poder hegemónico estabeleceu, tendo também sido incapaz de fazer uso consequente dos poderes de controlo político face ao comportamento contranatura e ilícito da Comissão, enquanto agente dos países credores, como recorda a autora. Por isso, não será de estranhar que o Parlamento Europeu tenha permanecido imperturbável durante a tentativa de expulsão da Grécia da zona euro, desencadeada ao arrepio das regras dos Tratados, por o governo helénico ter tido a ousadia de consultar os cidadãos sobre a aceitação de exigências dos credores que contrariavam o seu mandato eleitoral.

Moury conclui que apesar de o Parlamento Europeu ter sido a força motriz do incremento dos seus próprios poderes, esta evolução terá sido insuficiente para melhorar a qualidade da democracia europeia (p. 88). Esta conclusão aponta para a ideia de que a UE seria governada por uma espécie de democracia low cost. A este propósito será interessante ­recordar que o combate à crise do euro envolveu a adoção de um conjunto de políticas e de procedimentos que o presidente Juncker considerou serem reconduzíveis a um modo de “federalismo de emergência” – em virtude da inédita intrusividade nos assuntos internos dos países devedores consentida às instituições da Troika. Ainda que a resposta à crise tenha ofendido princípios elementares do regular funcionamento democrático da União, a mesma terá tido a vantagem de servir como laboratório admirável da política europeia, pondo à prova a capacidade de as instituições supranacionais agirem no confronto dos países dominantes, em defesa dos poderes e funções que os tratados lhes conferem, mostrando se possuem a resiliência expectável nos momentos de maior pressão política.

A crise do euro terá servido, sobretudo, de aviso às ilusões de quem prossiga desígnios de uma integração política mais profunda da União, bem como de alerta para os riscos de cariz democrático em que incorrem os projetos que alimentam o sonho de um futuro federal da Europa.

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