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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.224 Lisboa set. 2017

 

RECENSÃO

BARRETO, A. et al.

O 25 de Novembro e a Democratização Portuguesa,

Lisboa, Gradiva, 2016, 304 pp.

ISBN 9789896167462

 

Ricardo Noronha*

*Instituto de História Contemporânea, FCSH,Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26-C — 1069-061, Lisboa, Portugal. E-mail: ricardo.noronha@gmail.com

 

Entre outubro e novembro de 2015, António Barreto, João Salgueiro, Luís Aires de Barros, Luís Valença Pinto, Manuel Braga da Cruz e Vasco Rocha Vieira organizaram um ciclo de debates dedicado à comemoração dos 40 anos do “25 de novembro”. Este livro reúne as intervenções aí proferidas por diversas personalidades da vida política, económica e cultural portuguesa, bem como os trabalhos de alguns investigadores que se têm dedicado ao estudo do processo de transição para a democracia: António Barrento, Luís Amado, Luís Valente de Oliveira, Rui Moreira, Artur Santos Silva, Maria Inácia Rezola, David Castaño, Ana Mónica Fonseca, Daniel Marcos, Lívia Franco, Adriano Moreira, Alípio Tomé Pinto, Paquete de Oliveira, Fernando Marques Fernandes, Henrique de Aguiar Oliveira Rodrigues, João Mota Amaral, Pedro Catarino, Álvaro Monjardino, Jorge Miranda, Maria João Avillez, Dinis de Abreu e Francisco Pinto Balsemão.

Os objetivos do livro são enunciados de modo muito genérico no prefácio, que identifica o “25 de novembro” enquanto o momento em que “o ideal democrático do 25 de Abril voltou a vigorar como orientação do processo de transição” (p. 10). No entanto, as inquietações que estiveram na origem desta obra são explicitadas com maior clareza no texto assinado por António Barreto, que considera “sem precedentes” o facto de a Assembleia da República ter decidido não comemorar o aniversário do “25de novembro”, comparando-o a “uma tentativa de reescrever a História” (p. 70) que inscreve os deputados “na pequena lista dos que entendem que as liberdades individuais, os direitos dos cidadãos, a democracia parlamentar, a legalidade constitucional e os valores do Estado de Direito não são nacionais e não fazem parte do património comum, nem do legado da democracia portuguesa” (p. 71). Estas linhas, às quais faltará porventura algum sentido das proporções, têm o inestimável mérito de tornar explícito o propósito fundamental deste livro, que utiliza o “25 de novembro” enquanto pretexto para elaborar uma genealogia do conceito de “arco da governação”. Adicionalmente, os termos empregues por Barreto sugerem que o rigor factual e a consistência argumentativa não figuram entre os atributos necessários a semelhante exercício, uma vez que não há efetivamente precedentes, ao longo de mais de 40 anos de democracia, para a comemoração do “25 de novembro” pela Assembleia da República. Por outro lado, algumas passagens ilustram, com uma ironia que aparentemente passou despercebida ao seu autor, os riscos em que se incorre quando se dá à estampa um trabalho desta natureza, como acontece na referência a uma “indústria das comemorações” que “atrai o lugar comum e depressa se estabelece com rituais que retiram sentido” (p. 70).

Há certamente muita investigação por fazer acerca de um período histórico que foi, simultaneamente, um processo revolucionário e um processo de transição democrática, sendo fundamental a recolha de testemunhos dos seus protagonistas para compreender as circunstâncias e os acontecimentos que o moldaram. Mas os organizadores deste livro optaram por relegar para um plano secundário a investigação e a abordagem crítica dos documentos, conferindo a primazia a um vasto conjunto de intervenções em que a memória pessoal se combina, superficial e confusamente, com uma sucessão de lugares comuns e imprecisões de vária ordem. Um dos organizadores, Luís Valença Pinto, sintetiza na perfeição a natureza dessa escolha, quando defende a necessidade de “uma leitura que seja inclusiva e não divisiva, e que, para que assim possa ser,não se perca tempo em detalhes e minúcias» (p. 160).

Infelizmente, o que falta neste livro é precisamente a disponibilidade para perder tempo em detalhes e minúcias, uma vez que só isso permitiria contextualizar e cartografar, com a precisão possível, a sublevação do Regimento de Caçadores Paraquedistas no dia 25 de novembro de 1975. Note-se que já existe material de sobra para levar a cabo semelhante exercício, mesmo se nos ficarmos pelas abordagens mais recentes: a ­comunicação apresentada por Maria Manuela Cruzeiro na Biblioteca-Museu República e Resistência, em 2005; a recolhade testemunhos de vários militares, levada a cabo por Manuel Bernardo (2004); as atas de um encontro organizado pela Câmara Municipal de Oeiras, reunidas por Manuel Barão da Cunha (2001). Uma consulta minimamente atenta a esses textos teria permitido dar conta da complexa arrumação político-militar do processo revolucionário – marcada por sucessivas oscilações, ao sabor de conjunturas variáveis –, sem a qual o próprio desenlace do 25de novembro se apresenta indecifrável. As poucas referências às operações militares que se desenrolaram ao longo daquele dia de 1975 – feitas por Artur Santos Silva (p. 62), David Castaño (p. 111) ou Alípio Tomé Freitas (pp. 195-199) – dispensam-se de esclarecer aspetos tão decisivos como o envolvimento do Partido Comunista Português, a atitude do General Costa Gomes ou o comportamento do brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, remetendo para o domínio das certezas aquilo que permanece ancorado no terreno das dúvidas.

Ao renunciar a semelhante exercício interpretativo, os organizadores do livro acabaram por dar à estampa uma mera compilação de textos celebratórios da “normalização” introduzida pelo “25de novembro”. É um exercício inteiramente legítimo, mas incapaz, por exemplo, de explicar por que razão o texto constitucional aprovado a 2de abril de 1976 assumiu um horizonte tão explicitamente “socialista”. Se a “forçada instauração de uma sociedade ‘socialista’” (p. 9), como se lhe referem os organizadores do livro, resultou de uma dinâmica revolucionária assente em sucessivos atropelos à legitimidade eleitoral, por que é que um acontecimento que teria permitido “reorientar, em sentido democrático, o curso político e a feitura da Constituição” (p. 9) veio precisamente consagrar esse objetivo? Uma breve consulta aos programas com que os partidos políticos concorreram às eleições para a Assembleia Constituinte, já para não falar do documento do “Grupo dos Nove”, forneceria provavelmente algumas pistas para responder a essa pergunta, mas a opção tomada pelos organizadores seguiu num sentido substancialmente diferente.

É de resto significativo que as referências à esfera económica resvalem sistematicamente para afirmações que carecem de sustentação empírica, como acontece quando Rui Moreira fala numa “destruição do aparelho produtivo” (p. 57) ou quando Maria João Avillez garante, num estilo muito seu, que o “país nacionalizara todo o seu tecido económico” (p.271). Não faltam dados para demonstrar que a economia portuguesa atravessou momentos difíceis na sequência do 25de Abril, mas convém não ignorar o diagnóstico feito em 1976 por um grupo de jovens doutorandos do Massachussets Institute of Technology, entre os quais Paul Krugman e Miguel Beleza: “O aumento do consumo público e privado sustentou a procura, de modo que a produção decresceu apenas ligeiramente e o emprego quase não diminuiu. Sob este ponto de vista a economia portuguesa teve um comportamento mais favorável do que a maioria dos outros países nestes últimos dois anos e meio.” (Abel, 1977, p. 37).

Uma lista exaustiva das formulações imprecisas, abusivas, ou pura e simplesmente erradas que podem ser encontradas ao longo deste livro revelar-se-ia excessivamente longa, pelo que talvez seja mais útil assinalar as secções que se distinguem pela positiva. De um modo geral, os trabalhos dos investigadores universitários que contribuíram para este livro – David Castaño, Ana Mónica ­Fonseca, Daniel Marcos e Lívia Franco – apresentam-se substancialmente mais sólidos do que as restantes intervenções. Mas o capítulo escrito por Maria Inácia Rezola merece particular destaque, uma vez que é das poucas passagens que apresenta, de forma original, consistente e fundamentada, dados que nos permitem alargar substancialmente a nossa compreensão dos acontecimentos e interpretá-los de uma perspetiva desapaixonada. Sendo tão discutível como qualquer outro trabalho historiográfico, o seu ensaio sobre a Assembleia Constituinte oferece ao leitor tudo o que falta na maioria dos outros textos: contextualização histórica, uma sólida base documental, rigor descritivo, equilíbrio analítico, qualidade formal e a ponderação imprescindível para abordar um período particularmente armadilhado do ponto de vista político.

Por tudo isto, a principal conclusão a retirar da leitura deste livro diz respeito à necessidade de consolidar, num contexto académico, uma agenda de pesquisa interdisciplinar sobre o processo revolucionário, que se revele capaz de lhe acrescentar novos elementos de reflexão a partir do vasto acervo de fontes documentais existente. Abordagens como esta – assentes num uso político da memória que sacrifica os factos aos argumentos, sob pretextode não perder tempo em “detalhes e minúcias” – são manifestamente insuficientes para fazer um balanço histórico do momento fundador da democracia portuguesa, ainda que nos forneçam elementos preciosos para uma história das ideias políticas na segunda década do século XXI.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ABEL, A. et al. (1977), “A economia portuguesa: evolução recente e situação actual”. In Conferência Internacional sobre Economia Portuguesa (Lisboa, 10 a 13 de Outubro de 1976), Lisboa, The German Marshall Fund of the United States/Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 34-91.         [ Links ]

BERNARDO, M. (2004), Memórias da Revolução – Portugal 1974-75, Lisboa,Prefácio.         [ Links ]

CRUZEIRO, M. M. (2005), 25 de Novembro – Quantos Golpes Afinal? Disponível em http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=th10) [Consultado em 30-05-2017].

CUNHA, M.B. (ed.) (2001), Os Militares, as Artes e as Letras. Os 25 Anos do 25de Novembro: Reflexão, Lisboa, Editorial Notícias.         [ Links ]

NORONHA, R. (2017), Recensão “O 25 de Novembro e a Democratização Portuguesa, Lisboa, Gradiva, 2016”. Análise Social, 224, LII (3.º), pp. 697-700.         [ Links ]

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