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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.224 Lisboa set. 2017

 

RECENSÃO

MACHADO, Fernando Luís, ALMEIDA, Ana Nunes de, e COSTA, António Firmino da (orgs.)

Sociologia e Sociedade. Estudos de Homenagem a João Ferreira de Almeida,

Lisboa, Editora Mundos Sociais, 2016, 468 pp.

ISBN 9789898536549

 

João Queirós*

*Escola Superior de Educação, Politécnico do Porto e Inst.º de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n — 4150-564 Porto, Portugal.E-mail: jqueiros@letras.up.pt

 

Concebido como homenagem a um dos fundadores da sociologia portuguesa e uma das figuras incontornáveis da trajetória de afirmação, consolidação e desenvolvimento desta disciplina no nosso país, Sociologia e Sociedade. Estudos de Homenagem a João Ferreira de Almeida é uma obra coletiva de grande fôlego, densa, rica e multifacetada, fazendo por isso jus a algumas das mais relevantes propriedades do percurso intelectual e de vida do homenageado.

É, de resto, pela apresentação sintética desse percurso que a obra começa, numa “Abertura” composta por dois textos. No capítulo 1, assinado pelos organizadores do livro, Fernando Luís Machado, Ana Nunes de Almeida e António Firmino da Costa – colegas e amigos de longa data de João Ferreira de Almeida, e eles próprios figuras-chave do processo de consolidação e desenvolvimento científico e institucional da sociologia portuguesa –, são as origens e os aspetos fundamentais da trajetória social, intelectual e profissional do homenageado que ocupam lugar de destaque, evidenciando o verdadeiro “protagonista a múltiplas dimensões” que João Ferreira de Almeida foi e é. Ainda que eminentemente biográfico, o texto avança em diversos momentos ­propostas de leitura interpretativa dos principais eixos de perspetivação teórica e empírica subjacentes à produção sociológica de João Ferreira de Almeida, que os leitores e as leitoras haverãoseguramente de querer aprofundar, quer por via da leitura dos demais textos do volume, quer por via da revisitação das publicações do homenageado – compiladas, muito oportunamente, note-se, em listagem incluída no final do livro. A “Abertura” integra ainda um segundo capítulo, escrito a duas mãos e a dois tempos por Maria de Lourdes Lima dos Santos e Eduarda Cruzeiro, que observa a trajetória descrita no capítulo 1 à luz dos entendimentos pessoais que dela fazem duas outras fundadoras da sociologia portuguesa, cúmplices de longa data de João Ferreira de Almeida.

À “Abertura” sucedem cinco partes, de dimensão variável, dedicadas aos “domínios temáticos em que João ­Ferreira de Almeida tem trabalhado ao longo da vida” (p. xiv). São mais 18 capítulos, envolvendo 32 autores, para além dos cinco já citados, de diferentes gerações e proveniências geográficas, institucionais e disciplinares – sociólogos, desde logo, mas também antropólogos, geógrafos, agrónomos, demógrafos, psicólogos sociais e historiadores, “numa demonstração da influência do homenageado para além das fronteiras da disciplina”, como bem notam os organizadores do volume (p. xiv).

A Parte I, sobre “Teoria e epistemologia”, inclui textos de dois outros pioneiros da sociologia portuguesa, António Teixeira Fernandes e José Madureira Pinto. Enquanto o primeiro se aproxima deste persistente interesse científico e investigativo de João Ferreira de Almeida através da apresentação de uma reflexão – simultaneamente densa, sincrética e didática, como são tantas vezes as produções de António Teixeira Fernandes – sobre a relevância da teoria epistemológica no percurso de consolidação e desenvolvimento da ciência sociológica, a partir de uma leitura crítica dos posicionamentos de alguns dos principais autores de sempre da sociologia mundial, Madureira Pinto opta por apresentar resultados de um seu estudo recente, realizado na perspetiva da sociologia da ciência, sobre a obra e a trajetória académica, profissional e política de John Kenneth Galbraith, “um dos economistas mais lidos, discutidos e influentes do século passado, a quem, no entanto, a literatura da ciência económica tende hoje a reservar – quando reserva – um estatuto próximo da irrelevância” (p. 93). Retomando preocupações seminais do autor – preocupações aliáspartilhadas, desde os primórdios das respetivas carreiras, com João Ferreira de Almeida –, a pesquisa sociológica sobre Galbraith que neste volume José Madureira Pinto apresenta parece também configurar homenagem indireta à irreverência e carácter inovador da reflexão epistemológica com que João Ferreira de Almeida sempre acompanha as suas démarches sociológicas.

Os capítulos da Parte II, dedicados à temática das “Classes e desigualdades”, têm em comum pelo menos três preocupações afins ao legado de João Ferreira de Almeida nesta matéria: (1) o ecletismo teórico na aproximação à noção de “classe social”, sem que tal signifique perda de referentes sólidos e da robustez do argumento; (2) a conceção de elementos teóricos “auxiliares” e de ferramentas metodológicas capazes de operacionalizar a noção, transformando-a em instrumento efetivo de leitura sociológica do real social; (3) a especificação do significado e implicações da “classe”, através da realização de pesquisa empírica em configurações sociais situadas e datadas.

Nos três primeiros capítulos desta parte do volume, é a realidade portuguesa do período posterior à crise financeira de 2007-2008 que oferece o cenário para o estudo, tão caro a João Ferreira de Almeida, das relações entre classe social e ação coletiva. Enquanto Manuel Carlos Silva olha a conjuntura socio-histórica recente do nosso país na perspetiva de uma enunciação das condições de (im)possibilidade da ação coletiva, a partir de um posicionamento teórico de síntese sobre classes sociais e comportamentos sociopolíticos, Renato Miguel do Carmo, Nuno Nunes e Daniela Ferreira exploram os impactos da “crise” na autoperceção do posicionamento em escalas de valor social e nas inclinações para a participação em formas de organização e ação coletiva, a partir da leitura de alguns resultados de um inquérito por ­questionário a ­residentes da Área Metropolitana de Lisboa. Entre os dois capítulos, Elísio Estanque parte da exploração do mesmo contexto socio-histórico para especificar a sua análise acerca da formação e transformação das chamadas “classes médias”. Na estruturação do argumento, Estanque começa por convocar posicionamentos teóricos “clássicos”, para depois se aproximar dos tópicos que hoje pontuam o debate sociológico sobre o assunto (precariedade, divisões intraclassistas, expectativas e possibilidades de mobilidade social, oportunidades e possibilidades de ação coletiva, entre outros).

A Parte I termina com dois textos mais diretamente centrados no diálogo com a perspetiva que João Ferreira de Almeida desenvolveu, em diversos âmbitos e com diversos colegas, a propósito da formação e transformação das classes sociais em Portugal. No capítulo 8, o quarto desta parte, Luís Capucha revisita – também sob o signo da crise económico-social dos últimos anos – as preocupações desenvolvidas em Exclusão Social: Factores e Tipos de Pobreza em Portugal, trabalho de inícios dos anos 1990 que assinou com João Ferreira de Almeida e outros autores e que constitui, nas palavras do próprio Capucha, “um marco de referência da constituição de um campo de estudos”, que a persistência das desigualdades mantém “infelizmente ativo nos nossos dias” (p. 175). Rosário Mauritti, Susana da Cruz Martins e Maria Manuel Vieira, por sua vez, retomam no capítulo 9 uma problemática – a das transformações sociais e de classe lidas a partir da realidade dos públicos das instituições de ensino superior – que há várias décadas é “nuclear” no desenvolvimento de leituras sobre reprodução e mudança social em Portugal (pp. 193 e seguintes) e que possibilitou, entre outros importantes avanços, a construção e aperfeiçoamento de um dos mais prolixos – porque heurístico – instrumentos de análise classista ao dispor das sociólogas e dos sociólogos portugueses: uma tipologia de identificação e caracterização de origens e condições de classe individuais e familiares, que viria a ficar conhecida como “tipologia ACM”, ou “grelha ACM”, a partir das iniciais dos últimos nomes dos seus autores – João Ferreira de Almeida, António Firmino da Costa e Fernando Luís Machado – e que ainda hoje é mobilizada como referente analítico e instrumento de trabalho em muitas pesquisas sociológicas.

A Parte III do volume, sobre “Coletividades locais e territórios”, inspira-se, como não poderia deixar de ser, no princípio, desde muito cedo prosseguido por João Ferreira de Almeida, da vinculação da pesquisa sociológica ao estudo empírico de contextos socioterritoriais delimitados no tempo e no espaço. Inspirando-se no “otimismo sociológico” com que o homenageado sempre encarou o trabalho científico – trabalho inevitavelmente circunscrito, mas cujo resultado “não se esgota no seu autor ou na época ou local específicos da observação (…) e que, antes pelo contrário, contribui para ampliar o acervo de conhecimento produzido a que podemos recorrer” (pp. 213-214) –, Luís Vicente Baptista propõe, no capítulo 10, uma aproximação ao estudo da cidade contemporânea capaz de colocar a reflexividade sociológica e o legado dos “clássicos” ao serviço do refinamento da análise da vida urbanae da qualificação da intervenção face aos desafios que a intensificação dos processos de urbanização hoje coloca às nossas sociedades – desafios que, sendo das “cidades”, são também, necessariamente, dos “campos”.

As transformações do mundo rural e da ruralidade constituem, a propósito, o ponto focal dos capítulos 11 e 12. O primeiro destes capítulos, assinado por João Ferrão, parte das preocupações iniciais de João Ferreira de Almeida com as “estruturas agrárias” e a “penetração do capitalismo na agricultura” para apresentar uma “visão de longa duração” sobre as relações entre capitalismo, território e ruralidade em Portugal. Sob inspiração idêntica, o capítulo 12, da autoria de Fernando Oliveira Baptista e Maria Carlos Radich, propõe uma leitura diacrónica acerca da evolução da utilização da terra em Portugal. Dialogando, ainda que indiretamente, com preocupações teóricas e propensões para o trabalho no terreno como as que nos anos 1970 levaram José Madureira Pinto e João Ferreira de Almeida até Fonte Arcada, Penafiel, o texto analisa as transformações a que esteve sujeita ao longo do último século a ocupação agrícola e florestal e a situação das áreas incultas no nosso país. O facto de a “terra” ser aqui analisada não enquanto fenómeno meramente físico ou realidade estática, não enquanto ­simples “fator de produção”, mas enquanto efetiva construção económica, política e social há de ser sem dúvida notado e apreciado por João Ferreira de Almeida, ele que sempre preconizou uma talconceção deste fenómeno.

Integrados ainda na Parte III do livro, os capítulos 13 e 14 dão conta de alguns resultados de estudos sociológicos realizados em contextos socioterritoriais mais delimitados. No capítulo 13, ­Gilberta Rocha, Rolando Lalanda-Gonçalves, Licínio Tomás, Fernando Diogo e Álvaro Borralho, todos investigadores da Universidade dos Açores, apresentam diversas indicações sobre a situação e a evolução que nas últimas décadas observaram diversas dinâmicas sociais daquela região, “enquadrando-as na evolução global observada no país” (p. 267). Ainda que num registo sintético, o texto encontra espaço para uma leitura – sustentada em análise de informação estatística proveniente de fontes secundárias (INE, sobretudo) – das dinâmicas “demográficas e formativas”, “económicas e profissionais”, “da pobreza e exclusão” e “religiosas” que a Região Autónoma dos Açores tem vindo a registar, em especial desde os anos 1990. Tal leitura dá conta da significativa convergência da região com o perfil demográfico e económico típico do país no seu conjunto, não sem evidenciar as dificuldades e impasses verificados em matéria de qualificação e condições de vida da população, “que evidenciam as fragilidades atuais e futuras” da estrutura económica e social açoriana (p. 283).

No capítulo 14, por seu turno, Virgílio Borges Pereira recupera ­resultados dos seus trabalhos sobre a configuração do espaço social da cidade do Porto, construídos no diálogo entre a sociologia bourdieusiana e a tradição de ­investigação sociológica sobre classes sociais em Portugal iniciada por José Madureira Pinto e João Ferreira de Almeida, para sublinhar analítica e empiricamente como uma abordagem estruturada em torno destes referenciais epistemológicos e teóricos permite “documentar eixos de divisão social pertinentes, recusando, por essa via, a formulação de retratos simplificadores de contextos espaciais e de lugares de classe” – como são os que caracterizam as regiões mais deserdadas do espaço social urbano, como certos contextos da zona oriental do Porto – “habitualmente representados de modo mais homogeneizante” (p. 287).

As Partes IV e V do volume conduzem-nos à exploração de domínios temáticos ínsitos ao conjunto da trajetória intelectual de João Ferreira de Almeida, mas a que este sociólogo dedicou maior atenção e interesse nas duas últimas décadas. No capítulo 15, que abre a Parte IV, dedicada à temática dos “Valores e representações”, José Luís Casanova propõe-nos um excurso teórico-concetual ao âmago da reflexão sociológica. As relações entre desigualdade e ação social são por este sociólogo exploradasà luz de contributos teóricos de síntese como os que oferecem os trabalhos de Pierre Bourdieu, Anthony Giddens ou Margaret Archer, juntando Casanova à centralidade dos conceitos de “disposição” e “reflexividade” a noção de “orientação social”. Trata-se de uma noção que visa “produzir uma operacionalização do conceito de habitus, tendo em conta as virtualidades da reflexividade, no sentido de Giddens e do próprio Bourdieu, salientando-se a possibilidade de as disposições serem objeto de consciência e de reflexão” (p. 322), e que aqui ­Casanova especifica analiticamente a partir da exploração de resultados de estudos empíricos realizados junto de grupos sociais com volumes e composições de recursos económicos, culturais e sociais muito diversos (pessoas com deficiências e incapacidades, bloggers, residentes em áreas urbanas socialmente qualificadas, mulheres de militares, pessoas pobres, assistentes sociais). De acordo com o autor, os resultados sugerem uma relativa autonomia das “orientações sociais” (“orientação da ação” e “orientação relativa à desigualdade”) face aos posicionamentos “objetivos” no espaço social, o que indicia a validade da tese da autonomia relativa da “estrutura cultural” face à “estrutura social” (pp. 338-339).

O relevante trabalho de análise diacrónica e comparativa, perspetivada à escala internacional, que João Ferreira de Almeida tem desenvolvido, a propósito de “valores e representações”, com recurso aos dados de sucessivas rondas do European Social Survey é homenageado no texto de Alice Ramos, Rui Brites e Jorge Vala. O vasto manancial de dados desta fonte de informação é aqui posto ao serviço da análise da “confiança nas instituições políticas em países europeus”. Os resultados evidenciam a baixa confiança com que em Portugal as instituições políticas são encaradas, bem como a transversalidade social deste posicionamento, e indiciam relações significativas quer entre a (baixa) confiança nas instituições e a (baixa) expectativa acerca da capacidade de promoção de bem-estar pelo sistema político, quer entre a confiança nas instituições e a orientação e duração da experiência da democracia. Diversa na aproximação ao objeto, mas ainda assim centrada em tópicos de pesquisa não alheios aos explorados no texto anterior, é a contribuição de José Manuel Sobral. No capítulo 17, que se debruça sobre memória e (trans)formação de identidades de são-tomenses residentes em Lisboa, Sobral observa como a elaboração e a reelaboração da identidade destas pessoas enquanto membros de um coletivo transnacional são largamente tributárias, entre vários outros fatores, do modo – não raras vezes indigno – como acontece a sua participação cívica e institucional na sociedade de acolhimento.

A Parte V, finalmente, inclui três textos que, reportados a um dos domínios de interesse científico de João Ferreira de Almeida – o “Ambiente e sustentabilidade” –, configuram uma aproximação a uma orientação da produção sociológica – uma “sociologia pública”, como lhe chamaria Michael Burawoy – a que o sociólogo homenageado neste livro nunca se furtou. O capítulo 18, da autoria de Aida Valadas de Lima e Joaquim Gil Nave, baliza os termos fundamentais do debate teórico e metodológico acerca do modo como a sociologia pode informar cientificamente a reflexão sobre o “confronto das sociedades modernas com as mudanças ambientais geradas pelo seu percurso” (p. 389). Já Luísa Schmidt e João Guerra, no capítulo 19, discutem a noção de “desenvolvimento sustentável”, evidenciando as dificuldades com que se tem defrontado a respetiva materialização. A mesma noção é explorada por Nelson Lourenço e Carlos Russo Machado, no capítulo 20, por referência à situação do continente africano e numa perspetiva de enunciação dos elementos indispensáveis à instituição e consolidação de uma “governança para a sustentabilidade” (pp. 454 e seguintes).

O volume termina, conforme já notado, com uma muito oportuna compilação da bibliografia de João Ferreira de Almeida, publicada em nome individual ou em coautoria. Ao percorrê-la, é possível reiterar a certeza da relevância e influência do percurso e obra deste sociólogo. Quanto a este livro de homenagem, se parece correto afirmar que a amplitude e variedade temáticas que apresenta e a diversidade e qualidade dos textos que compila fazem jus a idênticas características da trajetória do homenageado, não menos correto será dizer que estamos perante um trabalho passível de transcender a finalidade principal na sua génese e de figurar como obra de referência para as sociólogas e os sociólogos que, no presente e no futuro, queiram prosseguir os ricos e vastos campos de investigação que João Ferreira de Almeida abriu, explorou e ajudou a firmar.

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