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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.223 Lisboa jun. 2017

 

RECENSÃO

TRAVERSO, Enzo

Left Wing Melancholia. Marxism, History and Memory

Columbia University Press, 2016, 312 pp.

ISBN 9780231179423

 

Luís Trindade*

* Department of Iberian and Latin American Studies, Birkbeck University of London 43, Gordon Square, London, United Kingdom. E-mail: ubll089@mail.bbk.ac.uk

 

O ponto de partida para o mais recente livro de Enzo Traverso combina (como sempre na sua obra) grandes questões da história contemporânea e as suas implicações na atualidade, sobretudo através do problema da memória. Foi assim com o totalitarismo, os fascismos, o holocausto ou o antissemitismo, e é agora o caso com a esquerda, sobretudo marxista, ou seja, e para ir direito ao assunto, com a história do comunismo nos séculos XIX e XX. Tal ponto de partida é facilmente reconhecível, mas nem por isso o seu significado será menos decisivo: ao contrário do que aconteceu com outras grandes derrotas na narrativa histórica do comunismo contemporâneo (1848, 1871, 1939 ou 1968), a mais recente, com a queda da União Soviética, não deixou traços de melancolia. Pelo contrário, foi vista mais ou menos consensualmente como o encerramento de um episódio sem grande futuro.

E o que torna esta evidência decisiva para a nossa reflexão historiográfica, reside precisamente menos no que ela nos diz do passado recente, do que acerca do atual estatuto da categoria de futuro. Até 1989, eventos como a repressão da Comuna de Paris, a derrota dos Republicanos na Guerra Civil de Espanha ou o falhanço em fazer alastrar o rastilho de “68” à escala mundial, puderam ser ­vistos como episódios necessários, senão mesmo lições, no caminho inevitável em direção ao comunismo. Em parte, a impossibilidade de atribuir qualquer carga utópica à queda do Bloco de Leste deve-se ao ambiente pós-moderno em que esta ocorreu, um momento geralmente pouco dado a narrativas teleológicas, e vivido em particular como crise da ideia de progresso enquanto grande narrativa determinista da modernidade.

E, no entanto, a ideia de progresso nunca foi unívoca, combinando, por um lado, as conquistas da ciência e da tecnologia (hoje em crise, mas não completamente abandonadas) e, por outro, a convicção de que com tais conquistas viriam necessariamente também a democratização e, na versão mais radical do comunismo, a emancipação revolucionária. É a perda deste segundo aspeto da narrativa do progresso que Traverso salienta. Com esta perda, e para retomar uma figura cara à historiografia marxista (de Walter Benjamin a E.P. Thompson, mas também, noutra tradição, em Reinhart Koselleck), é a própria possibilidade de resgatar uma história dos vencidos à habitual história dos vencedores que se perde quando o futuro (neste caso, o futuro do comunismo) desaparece do horizonte historiográfico. Assim, e independentemente dos juízos políticos que se façam acerca do socialismo (real) no século XX, o problema aqui é o de uma falha no interior da narrativa da emancipação, necessariamente dependente do futuro, ou seja, o problema das consequências que para o discurso do passado representa o desaparecimento, no presente, de uma ideia de futuro.

Neste sentido, segundo Traverso, reativar uma melancolia de esquerda faz hoje pouco sentido como nostalgia de uma qualquer versão do socialismo científico, mas pode servir potencialmente para criticar, ou mesmo resistir à hegemonia do capitalismo na sua versão neoliberal. Trata-se neste caso de identificar o modo como uma manifestação política, a melancolia pelo desaparecimento das lutas pela emancipação, se traduz numa estrutura narrativa com possíveis consequências historiográficas, uma vez que o que move essa melancolia é o desaparecimento de um sentido utópico (ou simplesmente uma esperança) que, de Leon Trotsky a Ernst Bloch – para nos mantermos próximos de várias tradições interiores ao marxismo – viveu da tensão entre o recuo ao passado e o impulso para o futuro.

Posta a questão nestes termos – na interseção entre o político e o historiográfico, ou melhor, num ponto em que o tempo e a narrativa são as formas políticas da historiografia – Enzo Traverso segue depois à procura de diferentes manifestações da melancolia de esquerda e do seu potencial histórico e político. Começa por uma das expressões artísticas mais significativas na história do comunismo no século XX, o cinema, para demonstrar como a intervenção cinematográfica do primeiro cinema soviético – através, sobretudo, da energia política injetada pela montagem de Eisenstein – se transformou, mais recentemente, num cinema de nostalgia, iniciado em obras como Le Fond de l’Air est Rouge , de Chris Marker, ou O Olhar de Ulisses, de Theo Angelopoulos, até à cristalização num género específico, na chamada Ostalgie, de que Goodbye Lenine, de Wolfgang Becker, constitui o exemplo mais conhecido. Das escadas de Odessa à deposição das estátuas de Lenine na Europa de Leste, passou-se, segundo Traverso, da noção de utopia como aquilo que ainda não existe para uma representação do que já não existe.

O mapeamento do potencial emancipatório da melancolia de esquerda encontra depois formas porventura mais resgatáveis para o presente na relação entre Boémia e Revolução: a longa tradição romântica de recusa da razão instrumental que vai de Baudelaire a Benjamin, um culto da clandestinidade e da marginalidade que, nalguns momentos de dramatização histórica, transformou o que era simplesmente uma rejeição melancólica da sociedade burguesa em formas de subversão e rebelião. O enfoque na Boémia, apesar de não esconder a difícil relação que os regimes comunistas tiveram com intelectuais marginais e formas de culturas subversivas, abre espaço para uma história do comunismo menos dependente da razão de Estado, e devolve ao marxismo um papel nas histórias da marginalidade e subversão política e ­cultural contemporâneas (a começar, algo surpreendentemente, na figura do próprio Karl Marx).

Com prejuízo para a coerência do todo – Traverso não consegue evitar que o livro se leia como uma coleção de textos relativamente dispersos, apesar do ponto de partida comum – Left Wing Melancholia segue depois à procura de encontros que, do interior do marxismo, permitam compreender o papel do potencial utópico da tensão entre o passado e o futuro. De forma algo previsível, o autor revisita mais uma vez a relação entre Theodor Adorno e Walter Benjamin, para salientar, por entre os dramas do exílio e da perseguição nazi (com consequências trágicas para o segundo), a divergência dos dois autores alemães quanto ao valor político das indústrias culturais: onde Adorno via melancolicamente a perda da aura na obra de arte, Benjamin reconhecia o potencial emancipatório de formas massificadas de cultura.

Mais interessante, talvez, é a história de um outro encontro, mas este falhado, entre o mesmo Adorno e C.L.R. James, isto é, entre o marxismo ocidental e o que Traverso chama black marxism. Se é verdade que em ambos se encontra uma crítica comum à razão iluminista, deve também acrescentar-se que enquanto em Adorno, mais uma vez, esta crítica deixa pouca margem para uma ideia de futuro – a lógica das Luzes teria culminado em Auschwitz –, já para James, e uma vez que essa mesma lógica fora levada até às últimas consequências pelo imperialismo europeu, a ação dos movimentos de libertação anticolonial no século XX poderia significar a abertura de uma brecha no interior do colonialismo, um espaço para o resgate do Iluminismo num sentido emancipatório.

O último encontro, finalmente, devolve-nos à questão inicial. Na recuperação do Benjamin político (ou messiânico) por Daniel Bensaid na década de 1990, Traverso identifica um primeiro ponto de resistência ao desaparecimento da ideia de futuro. Aqui chegados, Left Wing Melancholia oferece-nos a oportunidade de pensar pontos de contacto entre a interrupção da longa marcha da utopia comunista e as formas como alguma teoria contemporânea tem caracterizado a crise do século XXI através das categorias de presentismo (François Hartog) ou, acrescentaria eu, de um pós-futuro pensável apenas através de uma fenomenologia do fim (como em Franco “Bifo” Berardi). Para esta crítica, o eterno presente que caracteriza o pós-modernismo seria o pano de fundo de um processo de despolitização com fortes consequências historiográficas.

Segundo Traverso, a quebra do elo que ligou, ao longo da época contemporânea, o passado ao futuro através da utopia comunista, reduziu a história à memória, com o seu rol de vítimas e catástrofes tomando o lugar do que pouco antes era contado através de lutas e combatentes. Por outras palavras, quando o holocausto se transformou em paradigma da memória ocidental, as lutas do anti-fascismo transformaram-se num confronto entre vítimas e carrascos, numa relação traduzível, noutros contextos históricos, na transformação de Maio 68 num ­acontecimento cultural ou na redução dos anos de 1970 italianos e alemães ao terrorismo político. “Numa semelhante paisagem de dor” [sorrow], conclui Traverso, “o legado das lutas de libertação torna-se quase invisível”. As consequências políticas desta situação parecem evidentes na falta de resposta ao clima de crise da última década. Mas talvez não sejam menos dramáticas para a historiografia, onde a perda de sentido narrativo se arrisca a cristalizar num deserto ­taxonómico em que o passado se apresenta sempre antecipadamente resolvido.

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