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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.223 Lisboa jun. 2017

 

RECENSÃO

MARTINS, Carla

Mulheres, Liderança Política e Media,

Lisboa, Alethêia, 2015, 366 pp.

ISBN 9789896227616

 

José Santana Pereira*

* Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas, 376 — 1600-077 Lisboa, Portugal. E-mail: jose.santana@eui.eu

 

A presença (ou invisibilidade?) das mulheres na esfera política é um tema que tem motivado variadíssimas linhas de investigação nas democracias ocidentais, e Portugal não é exceção. O livro que Carla Martins publica em 2015, Mulheres, Liderança Política e Media, constitui um dos mais recentes contributos para a literatura científica portuguesa que adota uma perspetiva de género na análise da mediação jornalística da política (o contributo mais recente é Política no Feminino, publicado no fim de 2016, de que Martins é co-autora). Este livro é fruto da investigação que a autora desenvolveu para o seu doutoramento em Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e beneficiou da sua participação no projeto de investigação “Política no Feminino”, também sedeado naquela instituição.

O objetivo da investigação reportada nesta obra foi o de analisar o modo como as duas mulheres que, nas primeiras três décadas do atual regime democrático, chegaram a lugares políticos de topo tradicionalmente ocupados por homens foram retratadas pelos media portugueses durante o desempenho de tais cargos. A autora procurou ententer se existem marcas de género na representação de líderes políticas, e se a sua ascensão a lugares de topo originou um debate sobre a disparidade em termos de género que existe na esfera política e uma valorização simbólica da participação política feminina. Em particular, Martins desejou testar empiricamente a hipótese de que, entre os anos 1970 e a década passada é visível “uma evolução no sentido de uma maior naturalização da participação política feminina e da ultrapassagem de esquemas dicotómicos e estereotipados de representação” (p. 15).

Os casos analisados em detalhe por Carla Martins são os de Maria de Lourdes Pintasilgo e Manuela Ferreira Leite, que a autora destaca como as únicas duas mulheres que, até muito recentemente, acederam a papéis de destaque na esfera política portuguesa. Pintasilgo foi a primeira mulher a ocupar o cargo de chefe de governo em Portugal, e a segunda na Europa, depois de Thatcher (que assumiu o cargo apenas dois meses antes de Pintasilgo e, ao contrário desta, iria permanecer à frente do governo durante toda a década de 1980). Por sua vez, Ferreira Leite foi a primeira mulher a chefiar o Ministério das Finanças, a liderar um grande partido (o PSD) e a apresentar-se a eleições legislativas com uma razoável probabilidade de vir a ser primeira-ministra (em 2009). Sendo o foco colocado na cobertura mediática de que estas duas mulheres foram alvo durante o período em que ocuparam cargos de destaque, são analisados 861 artigos de imprensa da época (selecionados com base em critérios rigorosos destinados a garantir a diversidade e representatividade do corpus de análise). Esta análise é enriquecida com testemunhos recolhidos através de entrevistas a personalidades associadas às duas líderes.

As cerca de 360 páginas deste livro estão organizadas em duas grandes partes, para além de uma introdução e de uma conclusão. A primeira parte, composta por dois capítulos, é destinada a oferecer ao leitor uma perspetiva sucinta da história da presença das mulheres na política, em Portugal e não só, bem como da representação mediática das mulheres que se movem nesta esfera, perspetiva essa que é enriquecida pelas principais referências teóricas e estudos empíricos neste domínio de investigação. Por sua vez, a segunda parte do livro pode ser também subdividida em duas secções. Os capítulos 3 e 4 são dedicados à figura de Maria de Lourdes Pintasilgo, constituindo o primeiro um enquadramento do contexto político (uma democracia recente) e mediático (fortíssima polarização e militância política na imprensa portuguesa, um traço que se esbaterá com a consolidação democrática) em que a mesma chega à chefia do governo, e o segundo uma análise da cobertura mediática da primeira-ministra. A mesma lógica é encontrada nos capítulos 5 e 6, sendo o primeiro de contextualização e o segundo de análise da imagem de Manuela Ferreira Leite nos media.

No entanto, este livro acaba por nos oferecer muito mais do que a análise destes dois casos, fornecendo também informação relevante para qualquer investigador interessado na literatura e nos padrões empíricos da presença das mulheres nas cúpulas das instituições políticas nacionais. São especialmente úteis os dados sistematizados pela autora em várias figuras e tabelas, tanto nos capítulos 1, 3 e 5, como nos apêndices II e III. Interessante, mas talvez menos rico do que o leitor poderia esperar, é o acervo de imagens da imprensa da época incluído neste volume.

A autora destaca alguns aspetos significativos da presença de Pintasilgo nos jornais durante a sua chefia de governo. Por exemplo, a polémica em torno do título correcto a utilizar (primeiro-ministro ou primeira-ministra?), que apaixonou jornalistas e levou mesmo ao pedido de pareceres por parte de académicos respeitados; a utilização de palavras da família do vocábulo “atração” para fazer referência ao relacionamento entre ­Pintasilgo e Eanes; ou ainda reações marialvistas à ascensão de uma mulher à chefia do governo. A cobertura mediática de Ferreira Leite será menos colorida, quer porque os jornais portugueses são menos polarizados e militantes do que nos anos 1970, quer devido à sua personalidade. Se Pintasilgo é referida como o protótipo da tia simpática e acarinhada pelos sobrinhos, Ferreira Leite exibe uma imagem bastante mais austera e sisuda.

A principal conclusão desta obra é a presença de gendered frames no enquadramento mediático dos momentos em que Maria de Lourdes Pintasilgo e Manuela Ferreira Leite se afirmam como agentes relevantes na esfera política, apesar das diferenças, que se deverão em parte a um contexto político e mediático muito distinto, e em parte às idiossincrasias destas duas líderes. O período do V governo, de iniciativa presidencial, é marcado pelo mote da novidade (que não era só portuguesa, mas europeia) e, até por força das circunstâncias, a ascensão de Pintasilgo é vista por alguns quadrantes como acima de tudo decorrente da iniciativa de um homem; por sua vez, num Portugal membro da União Europeia, em que a Lei da Paridade é discutida e depois implementada, causa menos surpresa a ascensão de Manuela Ferreira Leite à chefia do Ministério das Finanças (uma das pastas mais importantes do governo) e, posteriormente, à liderança do PSD. Por outro lado, e visto que falamos de líderes com personalidades muito distintas, deparamo-nos com uma política efetivamente genderizada durante a chefia de governo de Pintasilgo e com uma política com género neutro no que toca à afirmação política de ­Ferreira Leite. Apesar de tais diferenças, e ao contrário das suas expectativas iniciais, a autora conclui que “a trama de discursos mediáticos através da qual se constrói a visibilidade de Maria de Lourdes Pintasilgo e de Manuela ­Ferreira Leite está eivada de marcas ‘genderizadas’, com pressuposições quanto a um ideal de feminilidade e a um ideal de liderança política […] O género, mesmo como ângulo invisível, influenciou a imagem das duas líderes” (p. 320).

Este útil contributo de Carla Martins para a literatura científica sobre o tema em língua portuguesa foi publicado em 2015. É, por isso, omisso em relação a um muito recente processo de ulterior expansão e normalização da presença das mulheres em cargos políticos de topo que, ainda que nos coloque longe de uma efectiva paridade, não é despiciendo: a liderança feminina de dois importantes partidos com assento parlamentar, BE (Catarina Martins) e CDS-PP (Assunção Cristas), que ocupam 37 dos 230 assentos da Assembleia da República; duas fortes candidatas ao cargo de presidente da República em janeiro de 2016, Maria de Belém – PS e Marisa Matias – BE (posicionadas em terceiro e quarto lugar, numa das eleições presidenciais mais fragmentadas da história da democracia portuguesa); uma presidente da Assembleia da República entre 2011 e 2015 (Assunção Esteves – o cargo é, convém lembrar, o segundo mais importante no sistema político português), e uma outra ministra das Finanças vinda do quadrante ideológico da direita, Maria Luís Alburquerque. Esta maior variedade em termos de casos de estudo relevantes é importante porque permitiria/permitirá distinguir entre os fatores de contexto, idiossincráticos e outros que podem estar na base de diferentes modalidades de cobertura mediática das mulheres que exercem cargos de liderança política em Portugal.

Se esta lacuna é, naturalmente, compreensível tendo em conta os tempos necessários para realizar investigação de qualidade, é de lamentar o facto de a autora optar por não analisar a ­cobertura que os meios de comunicação social fizeram da candidatura de Pintasilgo à presidência da República em 1986 – mais um marco importante na história da participação das mulheres na esfera política portuguesa e um segundo momento relevante na biografia política de uma das duas líderes em análise. Por outro lado, a análise reportada é, por vezes, demasiado interpretativa, o que pode criar no leitor a impressão de estar perante uma leitura extremamente sofisticada e informada da imprensa da época, mais do que perante um trabalho de investigação sistemático. Ainda assim, apesar destas lacunas (cuja identificação se pode dever, pelo menos em parte, às diferentes áreas científicas e tradições metodológicas em que a autora do livro e o autor desta recensão se inserem), não há qualquer dúvida sobre o facto de que Mulheres, Liderança Política e Media constitui um contributo extremamente válido e relevante para o estudo dos media e da política sobre uma perspetiva de género, e para a consolidação desta importante linha de investigação em Portugal.

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