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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.222 Lisboa mar. 2017

 

RECENSÃO

WATSON, Sara E.

The Left Divided. The Development and Transformation of Advanced Welfare States, Oxford, Oxford University Press, 2015, 350 pp.

ISBN 9780190245474

 

Rui Branco*

* Instituto de Política e Relações Internacionais – IPRI, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26-C — 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: rui.branco@fcsh.unl.pt

 

Sara Watson oferece em The Left Divided uma nova teoria sobre o moderno capitalismo industrial, usando a comparação binária entre Portugal e Espanha para provar a sua tese e afastar explicações alternativas. Watson argumenta que a força e posição da extrema esquerda é um fator causal decisivo, até agora negligenciado, da proteção dos trabalhadores em economias capitalistas avançadas. O quadro dinâmico de uma esquerda dividida, em que partidos e sindicatos mobilizam distintos eleitorados e grupos sociais e em que os partidos de esquerda estão internamente dividos entre moderados e radicias, moldou a regulação do mercado de trabalho e proteção social em Portugal e Espanha.

Watson começa por construir o quadro analítico para depois nele posicionar os casos. O que pretende explicar são diferenças na regulação do sistema de relações industriais e mercado de trabalho. Em que medida favorecem a proteção do salário do trabalhador em relação ao risco de desemprego e às flutuações do mercado? Para responder, foca a proteção no emprego, a segurança no desemprego e o sistema de negociação coletiva.

A autora pretende explicar por que razão nos 15 anos seguintes às transições para a democracia em Portugal e Espanha, e mesmo até ao ano 2000, os casos ibéricos se caracterizam por padrões díspares de capitalismo de bem-estar. Enquanto Portugal exibe um padrão “liberal” de regulação do mercado de trabalho, encorajando níveis elevados de flexibilidade salarial e oferecendo pouca segurança no trabalho e no desemprego, já Espanha evidencia um modelo “protetor” oposto.

Primeiro, o regime de incorporação do trabalho no processo de determinação e proteção do salário. As instituições defensoras dos salários em relação a flutuações do mercado integram o sistema de relações industriais, como seja o padrão de negociação coletiva. Desconsiderando semelhanças superficiais, argumenta que existem diferenças cruciais. Em Portugal, a regulação da negociação coletiva enfraquece a posição dos sindicatos em relação aos empregadores por permitir a negociação entre estes e os sindicatos, independentemente da representatividade. Qualquer sindicato disposto a negociar, por pequeno e pouco representativo que seja, pode concluir um acordo com os empregadores, que depois é estendido pelo governo através das portarias de extensão. A negocição coletiva depende na prática de com quem o empregador escolhe negociar. Dada a partidarização, falta de coordenação e rivalidade entre CGTP e UGT, os empregadores exploram estas divisões, ignorando o maior e mais representativo sindicato (com frequência filiado na CGTP), concluindo acordos relativamente mais favoráveis com o sindicato mais fraco e pequeno (com frequência filiado na UGT). Já em Espanha, os empregadores só podem assinar contratos coletivos com sindicatos representativos, levando a salários mais altos, sobretudo para os trabalhadores menos qualificados. O resultado são salários baixos e elásticos em função do desemprego e inflação, em Portugal, contrastando com a rigidez nominal e real em Espanha, onde os custos de ajustamento são suportados por menor emprego ou maior desemprego.

Segundo, ambos os países adotaram regimes de proteção no desemprego em meados dos anos 70. Em Espanha, o subsídio de desemprego alargou-se mais cedo e de forma mais generosa, na substituição de rendimento, na duração, no tratamento fiscal e no acesso à prestação. Com o tempo, continuou a aumentar a generosidade, alcançando elevados níveis de cobertura. Ao contrário, em Portugal a criação é mais tardia e menos generosa, pois o subsídio de 1975 era muito rudimentar, e mesmo a expansão de 1989 manteve uma apertada elegibilidade, sempre com menor generosidade e cobertura. Com o tempo, persisistiram o baixo nível de benefício (baseado no salário mínimo), menor acesso, financiamento desadequado e menor cobertura.

Terceiro, o padrão de proteção no emprego, no essencial as condições que regulam o despedimento individual. A visão convencional descreve a rigidez de ambos os sistemas, senão mesmo maior rigidez em Portugal devido ao maior custo da compensação para despedimento individual. É isso mesmo que dizem a literatura e os índices globais, como o da OCDE. Contudo, para Watson, o oposto é verdade. Segundo “especialistas familiarizados com os pormenores” (Addison e Teixeira, 1999; Bover, ­Garcia-Perea e Portugal, 2000), a questão é o custo e probabilidade do despedimento individual injusto. Embora o custo do despedimento individual justo seja bem maior em Portugal, Espanha oferece compensação mais generosa para o despedimento injusto. Isto, em conjunto com a tolerância em relação aos salários em atraso, justificam a inversão da categorização usual, re-descrevendo Portugal como “mais liberal” do que Espanha.

Uma vez aceite este padrão de variação empírica, ele resulta bastante intrigante quando se consideram as descrições, as tipologias e as explicações teóricas existentes na literatura para os regimes de regulação laboral e proteção social. É que a literatura tende a sublinhar as semelhanças gerais entre os casos ibéricos, seja no regime de “capitalismo de bem--estar” (ou porque integram um regime de welfare específico da Europa do Sul ou porque expressam versões subdesenvolvidas do regime bismarckiano conservador), seja na literatura sobre mercado de trabalho, em que ambos são caracterizados pela rigidez na proteção do emprego e centralização da negociação coletiva, embora se admitam diferenças na cobertura e qualidade da proteção no desemprego favoráveis a Espanha.

Nomeadamente, na literatura sobre Estado Providência e economia política, e segundo a influente teoria dos recursos de poder, é a força partidária e sindical da esquerda o determinante do nível de proteção, inclusão e generosidade das políticas sociais e redistributivas (­Esping-Andersen, 1990; Huber e Stephens, 2001). Na obra de Watson, os casos ibéricos pós-autoritários falsificam esta literatura, pois instituições de proteção social liberais foram aplicadas em Portugal por governos de centro-esquerda, enquanto o modelo mais protetor espanhol resultou de uma governação de direita.

A razão porque assim é constitui um contributo teórico inovador e importante do livro. Watson argumenta que a literatura tende a assumir que a esquerda política e sindical constitui um bloco homogéneo e coordenado. Esta assunção ficará a dever-se ao exemplo histórico escandinavo, onde, após a Segunda Guerra Mundial, longos períodos de governação social democrata, mantendo relações simbióticas com um movimento sindical unitário e poderoso, se traduziram na construção dos mais generosos Estados Providência.

Ora, Watson sublinha que a homogeneidade é mais a exceção do que a regra, logo que nos afastemos da Escandinávia. Coloca com pertinência a questão de saber o que acontece quando a esquerda se divide entre moderados e radicais, na arena eleitoral e partidária e na das relações industriais. Em particular, quando os radicais e seus aliados são moderadamente fortes nas urnas e fortes nos sindicatos, como em Portugal a seguir ao 25 de Abril (padrão de distribuição de recursos de poder que designa “intraleft stalemate”), diferentemente de Espanha, em que a esquerda moderada domina a extrema-esquerda na arena eleitoral, mas não na sindical, enfrentando os sindicatos socialistas moderados competição forte de sindicatos comunistas (“electoral socialism”).

Em concreto, Watson mostra como no Portugal pós-revolucionário um forte Partido Comunista controlou o movimento sindical durante a transição para a democracia, desencadeando uma dinâmica partidária e sindical de competição com o moderado Partido Socialista, levando à emergência entre meados dos anos 70 e o final da década de 80 de um modelo mais liberal e desigual de proteção social e regulação laboral. Já em Espanha, a transição consensual controlada pela direita, dá origem, contra--intuitivamente, a um modelo de maior proteção social.

Como? Enfrentando forte competição da extrema-esquerda, o Partido Socialista (e o centrista PSD) optou deliberadamente por enfraquecer política e organizacionalmente o Partido Comunista e os seus aliados sindicais, usando uma regulação do mercado laxista, sem regras de representatividade, para debilitar a CGTP comunista e favorecer a ­emergência de sindicatos mais moderados, como veio a ser a UGT. Tudo isto resultou em maior exposição e individualização dos trabalhadores aos mecanismos de mercado. Já em Espanha, em resultado da extrema esquerda partidária e sindical ser mais fraca e moderada do que em Portugal, os incentivos para a liberalização estão ausentes. O centro-direita inicialmente no poder (UCD) expande a proteção social como forma de competir eleitoralmente com o PSOE, ao mesmo tempo que favorece a incorporação do movimento operário controlado por sectores radicais (CC.OO), e assim ao Partido Comunista Espanhol (eleitoralmente fraco, moderado nas suas reivindicações), num movimento de tenaz, como forma de derrotar e manter derrotado o PSOE. Quando o PSOE chegou ao poder em 1982, adotou uma estratégia de “demobilizing protection”, expandindo as proteções laborais e sociais de forma a favorecer os seus aliados sindicais (CGT), envolvidos numa competição inter-sindical com as CO.OO.

A autora estende a análise até ao final da década de 90, usando como principal ângulo os efeitos do declínio eleitoral da extrema esquerda. Por exemplo, o declínio eleitoral do PCP possibilitou a transição para um modelo de electoral socialism, em quen PS e PSD competem ao centro pelos votos libertados à esquerda através da expansão da proteção social. Ao mesmo tempo, continuam a enfraquecer enquanto ator coletivo um movimento sindical que se manteve exigente e, agora, com mais “unidade na ação” entre CGTP e UGT. Em conjunto com fatores ulteriores partilhados que imprimiram aos casos uma dinâmica de convergência, como a integração europeia, no início dos anos 2000, “os sistemas ibéricos de welfare capitalism tinham-se tornado bastante parecidos nas áreas da proteção do emprego e no desemprego” (p. 161).

Ao analisar as teorias sobre regimes de welfare capitalism, Watson conclui que estas não explicam a variação empírica. Nem explicações económicas (posição na economia internacional), nem a coordenação de empregadores e trabalhadores para a formação de skills e política social (variedades de capitalismo), nem o timing do desenvolvimento capitalista, nem explicações políticas (recursos de poder), nem institucionais (figurinos constituicionais, pontos de veto), nem culturais (catolicismo familialista). As possíveis explicações são rejeitadas ou porque o fator causal é partilhado e não consegue explicar a diferença entre os casos, ou porque a variação empírica desmente as teorias ao prever uma diferença entre os casos que os dados empíricos desmentem.

Como sempre, a plausibilidade da falsificação das teorias – logo, da tese de Watson – depende da capacidade para explicar convincentemente a variação empírica. Mas tal supõe acerto na descrição da empiria, oferecendo um ponto de partida partilhável para depois discutir explicações alternativas. Ora, se existirem dúvidas sobre a avaliação empírica do que se pretende explicar, todo o exercício resulta enfraquecido.

Centremo-nos na regulação da proteção no emprego. A meu ver, a caracterização do caso português como “liberal” ou, em rigor, “mais liberal” do que Espanha levanta dúvidas, ao contrário da descrição da proteção no desemprego e da dinâmica da negociação coletiva. Aqui, os dados disponíveis, largamente usados pela literatura comparada, como os índices elaborados pela OCDE, não confirmam a leitura de Watson. Mais, os dados usados pela autora quando ensaia um teste comparado da sua hipótese levantam dúvidas sobre a sua própria caracterização.

Watson é a primeira a reconhecer que já em 1994 a OCDE apontava Portugal como o país com a legislação mais rígida no que respeita ao despedimento individual (p. 8). Com efeito, os dados mais recentes da OCDE (2017) (índice ordinal de 0 a 6, mais rígido 1) indicam: proteção no despedimento individual de trabalhadores permanentes, Portugal: 5 entre 1985-1989, passando a 4,83 em 1990-1991, e depois 4,58 até 2000; Espanha 3,55 entre 1985-1994, passando a 2,36 até 2000 (média 1985-2000: Portugal, 4,74; Espanha, 3,10). No caso do despedimento individual de temporários, ­Portugal: 3,38 entre 1985-1996, passando a 2,81 até 2000; Espanha: 3,75 entre 1985-1994, passando a 3,25 até 2000 (média 1985-2000: Portugal 3,23; Espanha, 3,56).

Desde 1985 Portugal tem maior proteção no despedimento individual de regulares, distância que aumenta sempre até final dos anos 90; ao invés, a proteção dos temporários é um pouco maior em ­Espanha, e decresce em ambos com o tempo. Em termos dinâmicos, nota--se uma acentuada liberalização em ­Espanha, não tanto em Portugal. Em Espanha a proteção no emprego é liberalizada mais cedo e mais depressa, logo desde 1994 (3,55 para 2,36), enquanto Portugal mantém índices de proteção elevados (4,58) até 2000.

Mas se estes dados merecerem reserva a Watson, tanto mais que não cobrem o período anterior a 1985, usemos então os dados que a própria julga credíveis. O elemento empírico para duvidar do rótulo “mais liberal” aplicado a Portugal entre 1975 e 1990, são os dados que a autora utiliza no capítulo 8 quando testa a sua hipótese noutros casos históricos de esquerda dividida. Aí, utiliza o índice elaborado por Allard, baseado no da OCDE, de “segurança no emprego” (custos, inconveniências processuais e dificuldade no despedimento de trabalhadores com contratos regulares, temporários e coletivos), o qual considera especificamente o custo e probabilidade do despedimento injusto (Allard, 2005, p. 17) (score de 0 a 4.1, mais rígido). Os dados reportados para os 15 anos após a transição, quando o argumento de Watson deveria ser mais forte, são: Portugal, média 1975-1990: 3,58; Espanha, média 1977-1990: 3,46. Apenas entre 1977 e 1983 o valor para Espanha excede o português, mas a ­diferença máxima é de 3,8 para 3,5. Mais: desde 1983 que o valor para Portugal é superior ao espanhol, primeiro pouco superior, depois, nos anos 90, muito superior. De novo, os casos surgem como razoavelmente semelhantes no período pós-transição. Se alguma diferença se afirma é a maior e mais precoce liberalização em Espanha, desferida em dois momentos: 1984 (de 3,8 para 3,2) e em 1994 (de 3 para 2,4), enquanto Portugal chega a 2000 com o valor 3,7 (Allard, 2005, pp. 19-20).

Se assim é, como explicar este padrão? A meu ver, foi decisiva a forma como os dois países geriram o trade-off entre emprego e salário ao navegar a tripla transição para a democracia, economia de mercado aberta e Estado Providência. Embora em ambos o ajustamento económico liberalizante não tenha sido simultâneo da transição política, mas feito durante e depois da consolidação democrática (Bermeo, 1994a), subsistem diferenças de timing e intensidade que ajudam a explicar a variação entre Portugal e Espanha – não a descrita por Watson no que toca à proteção no emprego, mas a sugerida pelos dados acima: uma estratégia política “labour protective” em Portugal versus uma estratégia “labour compensating” em Espanha (Bermeo, 1994b; Glatzer, 2005; Fishman, 2010).

A regulação do mercado de trabalho português no período pós-revolucionário é marcada por um padrão muito restrito da legislação sobre despedimentos individuais e coletivos para trabalhadores com contratos permanentes. A maior proteção do emprego foi uma consequência da transição através de uma revolução social. Esta legou uma herança social-democrata expressa numa economia política favorável aos trabalhores, com um vasto sector nacionalizado na economia, a coletivização de terras no Sul, e direitos sociais e laborais extensos na Constituição de 1976 (com efeito, os mais generosos de qualquer constituição europeia, v. Magalhães, 2013). O direito constitucional ao trabalho expressou-se em leis laborais favoráveis na proteção do emprego, negociação coletiva e greve (Barreto e Naumann, 1998). Note-se que com a nacionalização do sistema financeiro e indústrias básicas, no final de 1975, 53% de todo o investimento industrial era estatal (Bermeo, 1994b, p. 200). Aquando da revisão constitucional em 1989, o sector público na economia ainda respondia por pelo menos um quinto do PIB português.

Portugal, ao gerir no período pós-revolucionário a abertura e liberalização da economia, com a tercearização, a reconversão industrial e a des-ruralização, optou por uma estratégia política protetora do emprego: níveis elevados de emprego apoiados numa legislação estrita no regime de despedimento, a qual teve como contrapartida maior inflação, fraca proteção no desemprego, baixos salários e salários em atraso (tal como descrito por Watson).

Já em Espanha, a política industrial adotada pelos governos, incluindo os do PSOE desde 1982, para gerir o ajustamente económico provocou enorme crescimento do desemprego. Porém, os governos investiram significativos recursos em políticas de compensação para os desempregados, nomeadamente no subsídio de desemprego. Por outro lado, os níveis salariais dos que mantiveram o emprego eram relativamente elevados, sem especial incidência de salários em atraso (tudo isto ao contrário de ­Portugal).

Em Portugal verificou-se ainda um ritmo de refoma mais gradual e um timing mais tardio do que a mais brusca e precoce Espanha. Embora ambos tenham aplicado estratégias de estabilização económica quase imediatamente após o colapso das ditaduras, Espanha foi da estabilização a um programa vasto de ajustamento em apenas 6 anos; em Portugal o processo demorou 12 anos e incluiu programas de austeridade com o FMI, só começando a restruturação industrial e em geral a liberalização depois de 1990, após a revisão constitucional (Bermeo, 1994b). Se ainda em 1990 o sector público português era responsável por 21,5% da economia (o maior da EU-15, tendo Espanha 8%), já em 1999, em resultado de um dos maiores esforços de privatização na Europa, era apenas de 8,4% (­Espanha, 3,3%) (Clifton, Comin e Fuentes, 2003, p. 99).

Cedo se manifestaram pressões domésticas, europeias e internacionais para reduzir os custos do despedimento individual. A integração europeia favoreceu a abertura das economias ao comércio, aos fluxos de capitais e à competição através da liberalização económica e financeira. Em Portugal, quando o governo de centro-direita procurou em 1987 liberalizar a legislação do despedimento, tal como o governo espanhol de centro-esquerda havia feito em 1984, foi parado pela declaração de inconstitucionaliade do Tribunal Constitucional. Quando uma versão mais moderada foi enfim aprovada, suscitou o protesto do movimento sindical, que se uniu em 1988 para uma inédita greve geral, a qual foi parcialmente bem sucedida na preservação dos direitos dos sindicatos e da maior parte das proteções no emprego e lei da greve. Em suma, reformas profundamente liberalizantes foram evitadas pela combinação de elevadas barreiras à revisão constitucional e o facto de as tentativas ocorridas terem esbarrado, como em 1987-1988, no veto do Tribunal Constitucional e na forte oposição combinada das confederações sindicais e de ambos os partidos de esquerda (Glatzer, 1999, p. 106).

Um segundo aspeto que suscita reflexão crítica diz respeito a uma definição demasiado estreita de Estado Providência, complicada por uma aplicação controversa aos casos ibéricos das tipologias dos regimes de bem-estar discutidas na literatura.

A capacidade de Watson convencer o leitor de que existe um tipo de welfare liberal português e outro protetor espanhol assenta na recusa de olhar para o Estado Providência no seu conjunto, mas apenas, deliberadamente, para um conjunto limitado de políticas. O Estado Providência de Watson é equacionado com welfare capitalism e este na prática como proteção no emprego, desemprego e negociação colectiva. Por que razão apenas a proteção no desemprego e não na velhice (pensões)? Com efeito, de fora fica grande parte do que é pacífico incluir no Estado Providência, como a restante segurança social (pensões, doença, etc.), as prestações não contributivas de assistência (RSI, CSI, subsídio social de desemprego), e ainda a provisão de cuidados de saúde (SNS). Qualquer apreciação equilibrada do modelo mais liberal ou protetivo dos trabalhadores seguramente que deveria levar em conta os riscos protegidos pelas prestações referidas.

Watson passa ao lado da discussão na literatura sobre a classificação dos regimes de bem-estar, que ou classifica os regimes ibéricos dentro da mesma categoria específica “Europa do Sul” (Ferrera, 1996), ou como versões subdesenvolvidas do regime bismarckiano conservador (Esping-Andersen, 1999; Guillen, Alvarez e Silva, 2003). Ao mesmo tempo, e por causa disso, usa as categorias “liberal” e “protetor” de forma peculiar e um pouco confusa, uma vez que a literatura classifica como regimes liberais os anglo--saxónicos, como o Reino Unido ou EUA, e como mais generosos e universalistas na proteção os regimes sociais-democratas escandinavos. Estas classificações remetem para princípios distintos de proteção social (Esping-Anderson, 1990), que não se confudem com a raiz bismarckiana comum a Portugal e Espanha.

Uma melhorada elaboração do tema da proteção social dos trabalhadores nas sociedades capitalistas democráticas ibéricas deveria começar por notar que, tal como os respetivos regimes democráticos, os Estados-Providência em Portugal e Espanha se consolidaram mais tarde e em piores condições do que na restante Europa Ocidental.

Ainda assim, em Portugal e Espanha, a evolução da proteção social foi de expansão contínua, em contra-ciclo com a generalidade dos países ocidentais. Desde a transição, os regimes de bem-estar ibéricos sofreram mudanças rápidas, e em alguns casos profundas. Mas o ponto essencial é este: em ambos foi erguida uma arquitetura híbrida, conjugando diferentes princípios de proteção social: segurança social de base ocupacional; serviços de saúde e educação públicos universais; assistência social com baixa (embora crescente) provisão pública direta, em colaboração com a sociedade civil, ou através do mercado (Branco, 2017).

Em ambos os casos, nos regimes de segurança social (pensões, desemprego e doença), foi mantida, embora reformada, a base ocupacional de raiz bismarckiana. Nas pensões, por exemplo, foi revertida a fragmentação herdada, homogeneizada e universalizada a cobertura, e introduzidas pensões não contributivas.

Em ambos os casos, a maior rutura com o passado autoritário respeita à criação de Serviços Nacionais de Saúde, financiados por impostos e oferecendo serviços universais. Na saúde – como aliás na educação – foi seguida uma lógica política social-democrata (ou beveridgiana) da provisão através de serviços públicos universais, embora com sucesso variável e acabando por produzir diferentes combinações entre público e privado.

Em ambos os casos, foi menor a rutura com o passado no sistema de solidariedade, considerando as limitações da assistência social pública e a ­importância de soluções familiares e parcerias com o terceiro sector. Os serviços sociais públicos, quase inexistentes em ditadura, ganharam em democracia um carácter progressivamente mais beveridgiano, com maior financiamento público para novas prestações não contributivas, em serviços ou pecuniárias.

Note-se também que Portugal e Espanha – sofrendo pressões como envelhecimento demográfico, quebra de fertilidade e maior esperança de vida, novos riscos sociais como famílias monoparentais, feminização do mercado de trabalho, emprego precário, abertura económica ao exterior, e os requisitos da integração económica e monetária desde 1992 – aplicaram reformas visando conter custos, racionalizar e modernizar os seus programas sociais. Por exemplo, reformas paramétricas das pensões, ativação no mercado de trabalho através da formação profissional, recalibrar prestações devido a novos riscos ou configurações sociais como as licenças de parentalidade. Contudo, a concretização deste reformismo de inspiração europeia e liberal evitou, pelo menos até à crise de 2009, políticas radicais de desproteção social e laboral com o objetivo de melhorar a “competitividade” (Guillen e ­Matsaganis, 2000).

Aliás, singular é aqui a longa recuperação de Portugal – no final do autoritarismo, mais desigual e pobre, menos desenvolvido e sobrecarregado com uma guerra colonial – em relação aos níveis e qualidade da proteção social de Espanha, e de ambos com a média europeia, numa lógica de catch-up convergence. Ao longo da democracia, Portugal converge com Espanha na despesa social em percentagem do PIB (menos na intensidade da despesa social). Por fim, na generosidade da proteção social (das pensões, subsídio de desemprego e de doença, índice combinando as taxas de substituição, cobertura e restrições ao acesso, v. Scruggs, Jahn e Kuitto, 2014) a diferença global que existia favorável a Espanha nos anos 90 desapareceu por meados dos anos 2000 (Branco, 2017).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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1 Note-se que este índice leva em consideração o ponto central para Watson: “difficulty of dismissal, as determined by the circumstances in which it is possible to dismiss workers, as well as the repercussions for the employer if a dismissal is found to be unfair (such as compensation and reinstatement)” (OCDE, 2017).

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