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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.222 Lisboa mar. 2017

 

ARTIGO

Sedas Nunes, intérprete de Portugal, intérprete de si

Sedas Nunes, interpreter of Portugal, self-interpreter

 

Renato Lessa*

* Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio, Edifício da Amizada, Ala Frings, 6.ºandar, Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea - CEP 22451-900. E-mail: renatolessa5@gmail.com

 

RESUMO

 

Sedas Nunes, intérprete de Portugal, intérprete de si.O ensaio pretende refletir a respeito do papel desempenhado por Adérito Sedas Nunes no processo de constituição das ciências sociais em Portugal, anterior a 1974. Tal papel foi instituído por meio de uma dupla ação interpretativa: ao mesmo tempo em que desenvolveu uma interpretação a respeito da sociedade portuguesa, Sedas Nunes fez-se intérprete de si mesmo, como autor e como ator. No primeiro desses processos – o do intérprete de Portugal –, estabelece-se uma linha de demarcação entre a perspetiva corporativista – como forma institucional e como valor – e a revelação do social – como instância fática e complexa, a ser desvendada. Tal passagem revela forte dissonância entre o espartilho corporativista e a dinâmica complexa da vida social portuguesa. O segundo processo – o do intérprete de si – revela a persona de um sujeito possuído pela vocação – pelo gosto intransitivo de estar a fazer ciência.

Palavras-chave:Adérito Sedas Nunes; corporativismo; ciências sociais; crítica; realismo; Portugal.

 

ABSTRACT

 

The essay intends to appraise the role performed by Adérito Sedas Nunes in the making of the Portuguese social sciences, prior to 1974. Such a role was instituted by a double interpretive effort, enacted by Sedas Nunes: an interpretation of the Portuguese society and a self-interpretation, as author and actor. In the former aspect – interpreter of Portugal – a distinctive line of demarcation was drawn, between the corporatist perspective – both in its institutional framework and its set of beliefs – and the disclosure of the social realm as a factual and complex domain, to be revealed. The latter aspect – self-interpretation – reveals the persona of someone possessed by a vocation – by the intransitive taste of being active in the process of scientific making.

Keywords:Adérito Sedas Nunes; corporatism; social sciences; criticism; realism.

 

A crença no real não é uma ilusão mas é alucinatória. Nós cremos no mundo e no eu sem esperar justificação nem confirmação, a aparente auto-suficiência da sua realidade dispensa verificação[Gil, 2003, p. 95].

 

ABERTURA: PRIMEIRA APROXIMAÇÃO

 

Mais do que imensa honra, entendo que caiu sobre mim, nestes encontros cruzados entre cientistas sociais portugueses e brasileiros, uma desmedida responsabilidade. Falar de – e refletir sobre – Sedas Nunes, no ambiente físico e editorial do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, excede os limites, já em si mesmos dilatados, da referência pontual ao personagem, posto que diz respeito também à memória e à origem da própria instituição. Afinal, tudo que se disser sobre a trajetória intelectual e profissional de Adérito Sedas Nunes acabará por se inscrever, de modo obrigatório, em uma narrativa a respeito da história do ICS. Não há meios de escapar da implicação recíproca entre história institucional e trajetória individual.

Não disponho de registos pessoais e anedóticos: quando comecei a privar do privilégio de frequentar o ICS, Sedas Nunes já lá não estava. Tal efeito de impessoalidade, que poderia ser expectável pela a ausência do contacto primário, foi insuficiente para eliminar laivos de empatia e simpatia pelo personagem, dada a importância que o ICS adquiriu em minha própria trajetória. Seguro da medida exata de tal privilégio, devo dizer que sou grato a Adérito Sedas Nunes. Uma gratidão da qual sobrevém um sentimento relativo de estar à vontade para tomá-lo como tema de reflexão nestes exercícios cruzados.

Se o pôr-se à vontade é condição psicológica para que algo possa ser dito, é exato, neste ponto, que os problemas começam por aparecer. Como aceder ao personagem? Desde já, parece-me descabida a pretensão de apresentar uma biografia intelectual e institucional compreensiva de Adérito Sedas Nunes.1 Empreendimento que, de certeza, excede o âmbito deste ensaio evocativo. Igualmente irrealista pareceu-me ser a alternativa de proceder à recolha rigorosa e exaustiva do conjunto da obra, capaz de percorrer todos os seus aspetos específicos; obra, de certo, variada e multi-direcionada, a abranger tanto questões de portada teórica mais larga, quanto análises de processos sociais específicos, sem descurar a própria história das ciências sociais em Portugal.

O primeiro desafio que a mim se apresentou foi, dada a impossibilidade de considerar a obra em sua generalidade e em seus múltiplos desdobramentos, o de escolher o ângulo de ataque. Uma porta de entrada que, ao evitar o panorama, não se detivesse tão pouco em algum aspeto fragmentário e autárquico, mas desse a ver – um tanto metonimicamente – algo do sentido imanente do empreendimento. Conhecedor de alguns dos fragmentos do legado, sempre me intrigou o trabalho de constituição de um espaço intelectual e investigativo, no campo das ciências sociais, nos quadros do “antigo regime” português – Sedas Nunes empregava o termo regime –, já que os nossos hábitos intelectuais mais, digamos, instintivos sempre nos forçam a considerar a revolução democrática de 1974 como ponto de partida tácito para a reflexão crítica e sistemática sobre a sociedade portuguesa.

Optei por considerar o personagem Sedas Nunes, neste ensaio, como um intérprete de Portugal. Tal adoção terminológica decorre da leitura do interessante ensaio de Frederico Ágoas (2013), publicado na Análise Social, e que diz de certa dificuldade de datação do estabelecimento das ciências sociais – e da sociologia, em particular – em Portugal. Ágoas sugere que, ainda que o marco de 1974 como propulsionador do desenvolvimento das ciências sociais em Portugal faça sentido, não deixa ele o carregar consigo de uma perspetiva “disciplinarista”, com o efeito de retro-projetar modelos epistémicos de organização do conhecimento como forma de determinar a presença ou ausência de sinais de sua própria antecipação.

O ensaio de Ágoas foi-me útil, entre outras razões, para evitar a fixação de Sedas Nunes como “precursor”, como um ator intelectual fixado em algum ponto pretérito da nossa diacronia e, portanto, fora do nosso próprio tempo imediato. Interessou-me saber como o seu programa – sua interpretação – ajudou a constituir as ciências sociais portuguesas, não apenas como motor inicial mas como autor de um enredo de longa duração.

 

DO INTERESSE AO GOSTO

 

O tema da interpretação, na verdade, aqui exige um complemento: interpretação de Portugal, interpretação de si. O ponto merece destaque, já que uma das principais vias de acesso a Sedas Nunes (1988) é constituída pelo excelente e aliciante ensaio, de sua lavra, publicado no número 100 da Análise Social, em 1988, “Histórias, uma história e a História: sobre as origens das modernas ciências sociais em Portugal”, que contém elementos fortes para tal enquadramento. Naquele longo ensaio, alusivo aos 25 anos de Análise Social e um tanto memorialístico e auto-interpretativo, aparecem ademais os termos que podem indicar a dimensão imanente à qual aludi. Trata-se de passagem despretensiosa, mas propiciadora de meio de acesso a uma dimensão mais tectónica da obra intelectual e institucional de Sedas Nunes. Alude ela ao momento de criação da revista Análise Social, em janeiro de 1963, inscrita na sequência da transformação, em 1962, do Gabinete de Estudos Corporativos (GEC) no Gabinete de Investigação Social (GIS), marcado por um quadro de “dualidade de motivações”:

 

A revista que o grupo queria fazer correspondia, se posso exprimir-me assim, […] a um interesse e a um gosto (e. .). O interesse era o interesse pelos problemas sociais, numa acepção lata que abrangia os problemas do desenvolvimento; o gosto era o gosto de conhecer e dar a conhecer as realidades sociais [Nunes, 1988, p. 19].

 

A “dualidade de motivações” exprime, a um só tempo, um movimento transitivo – o “interesse por conhecer e dar a conhecer os factos” – e outro intransitivo, inscrito no sujeito portador do interesse aludido – o “gosto de conhecer e dar a conhecer as realidades sociais”. O que se está a afirmar, em termos diferentes, é uma associação entre a atividade de produzir conhecimento social e a vocação – no sentido duplo de capacidade e de chamamento – para empreendê-la. Torna-se, assim, defensável a complementaridade entre ser intérprete de Portugal e ser intérprete de si mesmo. Vale dizer que o intérprete de si não se presta a considerações solipsistas, já que se apresenta como personagem expressivo da comunidade epistémica na qual se inscreve e para cuja constituição tanto colaborou. A dupla modalidade da interpretação recepciona a distinção entre interesse e gosto: o primeiro de cariz epistemológico – conhecer algo –, o segundo de cariz epistémico – dizer algo do sujeito que deseja conhecer algo.

A persona do intérprete de Portugal exige, por certo, a apresentação seriada de estratégias de investigação, de eleição de temáticas e de achados. Uma apresentação, a um só tempo, daquilo que o olho vê e do que releva da inspeção sistemática do mundo. Já o intérprete de si, para que seja tangível, exige algum esforço de anatomia do próprio olho: é o sujeito do interesse em desvendar realidades que se deve mostrar a si mesmo, e o faz na perspetiva da ostensão de uma vocação. Ainda que vocação e resultado apareçam mesclados na alquimia da descoberta científica, o resultado é contingente, enquanto a vocação é condição necessária e permanente. Embora adicto a uma prática científica voltada para produzir resultados, Sedas Nunes deixa exalar em sua memorialística o reconhecimento da dignidade intrínseca da vocação e do gosto: ao fim e ao cabo, fazemos ciência porque “gostamos”, e aí reside a potência originária do ato cognitivo da descoberta. Não há teoria aqui desenvolvida, a respeito da autonomia da vocação – ou do gosto – com relação aos resultados da atividade de investigação. Mas há indício suficiente para deixar entrever uma discreta adesão a uma perspetiva auto-emancipatória, para qual a vivência da vocação, como núcleo da prática científica, não é afetada pelas circunstâncias externas.

Na composição final dos efeitos gerados pela combinação entre interesse e gosto – o GIS e sua revista – acabou por operar um “balanceamento em direção ao gosto”, vale dizer, “em direção a um saber indiferente às aplicações socialmente úteis” (Nunes, 1988, p. 23). Ainda que o interesse cognitivo por questões de natureza substantiva fosse forte, o que se afirma é uma defesa do métier, de uma vontade de saber que se alimenta do seu próprio exercício. Se é verdade que tal vontade exige a perspetiva da descoberta científica como sua finalidade precípua, o que, enquanto atividade, a move – o seu espírito, no sentido aplicado por Montesquieu, no Espírito das Leis, quando refletiu sobre as formas de governo – parece estar contido na seguinte fórmula hipotética, exprimida por Sedas Nunes:

 

[…] vimos porque queremos o saber, e também porque queremos mais justiça; mas não queremos o saber apenas para que possa haver mais justiça; dar gosto ao gosto (e.a.) de saber também é de justiça [Nunes, 1988, p. 24].

 

A definição da finalidade exige a apresentação do espírito. Em outros termos, não há como descrever o processo de formação de uma comunidade epistémica sem que a dimensão da vocação esteja presente. O que fica claro em Sedas Nunes é que tal comunidade, na forma do grupo que vindo do ­Gabinete de Estudos Corporativos formou o Gabinete de Investigação Social, não se teria constituído exclusivamente a partir de fatores exógenos à dimensão da vocação. De modo explícito, o que se está a dizer é que não foi a adesão a ­princípios de justiça – como valor meta-político – o móvel decisivo do interesse em conhecer a sociedade portuguesa, em sua forma coeva. Ainda que a adesão a ideais de justiça não estivesse ausente na alquimia da constituição dessa pequena comunidade, para Sedas Nunes era evidente “a intenção de contribuir para que na sociedade pudesse haver mais saber a cerca da sociedade” (Nunes, 1988, p. 24). No mais, há uma diversidade de modos possíveis de expressão de “ideais de justiça” que não exigem o empreendimento da aventura e do artesanato intelectuais.2

O modo pelo qual Sedas Nunes apresenta a génese da sua comunidade de intérpretes de Portugal deixa claro que na ordem das motivações a política não cumpriu papel essencial. Quem são, afinal, esses personagens? Trata-se de um grupo, reunido no Gabinete de Estudos Corporativos, formado por “homens já a entrar na casa dos trinta”, economistas em sua maioria e egressos – como militantes ou dirigentes – da Juventude Universitária Católica. Sedas Nunes deixa isto claro: “Não era um grupo político”. Ao que acrescenta: “Tinham entrado para a Universidade sem grandes preocupações políticas […]. Tinham porém saído da Universidade cheios de preocupações sociais”. As ênfases originais em itálico estabelecem de modo claro uma oposição entre duas ordens: a da política e a do social.

A primeira traz implícita a vontade de intervenção, por meio do combate – material ou simbólico –, tanto no campo da oposição como no da sustentação política do regime – se o emprego do eufemismo for concedido. Terreno movediço, sempre sustentado por narrativas e modelos mentais mutáveis e vinculados à ética de convicção. O que se está a indicar é que, na configuração das vontades, não há política a montante, mas tão somente o social a jusante. E este é dado a ver como efeito de uma experiência de desvelamento, de revelação progressiva do Portugal real: “O atraso, a miséria de tanta gente, as clamorosas desigualdades que por toda a parte se viam, indignavam-nos e atormentavam--nos: não podiam conformar-se com elas” (Nunes, 1988, p. 17).

 

O regime, por certo, aí estava implicado:

 

Na medida em que se tinham apercebido que o Regime não só pactuava com o atraso, a miséria e as desigualdades, como obstava ao desenvolvimento, à melhoria das condições de vida, ao progresso social, e fazia recair sobre os mais desfavorecidos todo o desfavor dos custos humanos e económicos de uma ordem social injusta, tinham-se desapegado progressivamente do Salazarismo em que se haviam formado e que os formara… [Nunes, 1988, p. 17].

 

Mas, a descoberta da implicação resulta de um longo processo de inspeção, cujo foco de observação é o social. A demarcação com relação ao regime, portanto, não releva da política. Há aqui a operar um mecanismo metódico de ordem das razões: do desvelamento do social chega-se à crítica do regime; da crítica do regime chega-se à democracia: “Não tinham chegado à crítica do Regime partindo da Democracia; pelo contrário, tinham chegado à Democracia partindo da crítica do Regime” (Nunes, 1988, p. 17). A política impõe-se ao final do trajeto; ela não opera como motivação independente e nem como conjunto isolado de fenómenos, capaz de justificar uma investigação em seus próprios termos.

É cabível, nesta altura, menção à análise desenvolvida por Manuel ­Villaverde Cabral (1982), a respeito do desenvolvimento da ciência política em Portugal. Em ensaio escrito na década de 1980, o autor sustenta que o ambiente do salazarismo não teria sido propício à constituição de um domínio propriamente político, sendo antes um experimento dissolvido em injunções de natureza pré-política ou, até mesmo, antipolítica. Tal invisibilidade do político teria tornado inviável o desenvolvimento de uma forma sistemática de conhecimento a respeito da vida política e da organização do Estado, fora de um marco de puro administrativismo, no Portugal daqueles anos; sendo assim, tal conhecimento sistemático – chamemo-lo de ciência política – viria a ser um apanágio dos anos posteriores à revolução democrática do 25 de Abril de 1974 (Lessa, 2013). Um dos efeitos da dissipação do político teria sido, para além do administrativismo, a presença de narrativas hagiográficas e uma dificuldade crónica em lidar com o tempo presente.

O que Sedas Nunes rememora, tanto no ensaio de 1988 da Análise Social, quanto no texto inédito aqui mencionado, confirma e refuta a um só tempo os termos da premissa da avaliação desenvolvida por Manuel Villaverde Cabral. No que tem de confirmação, é de se notar o facto – já aqui indicado – de que as injunções de natureza política não se afiguram como ponto de partida tanto para o interesse, quanto para o gosto da persona de Sedas Nunes e da comunidade epistémica que representa. Não se parte da política; ela apresenta-se ao fim do trajeto como corolário da descoberta de uma falha constitutiva do regime: ele não mais pode durar, dados os efeitos deletérios que produz sobre o tecido e a dinâmica social. É o caso de perguntar: se a crítica do regime é preparada pelo desvelamento da sua cumplicidade com iniquidades e atrasos sociais, o que dizer do mesmo regime na hipótese de um desempenho socialmente benévolo? Ao fazer da tomada de consciência do social uma condição para a crítica do regime, não se está a dizer que não se dispunha da hipótese de que ele – o regime – poderia ser criticado e combatido por suas próprias características intrínsecas ou, em outros termos, por seus atributos políticos?

Razões de pragmatismo não são de se descartar, em contextos nos quais a ação política envolve risco. No entanto, mesmo sendo este o caso, isso não abole a presença e a operação de maneiras de pensar cujos efeitos não deixam de ser significativos. Os efeitos de uma ação orientada pelo pragmatismo não são de ordem necessariamente pragmática, não há nada que impeça que venham a configurar formas de pensar e agir às quais de pode atribuir valor de verdade. E é justamente uma teoria da verdade que emerge da associação entre desvelamento do mundo social e demarcação crítica com relação ao regime.

Ver a verdade, descer ao real: uma espécie de catábase se impõe, como primórdio e exórdio da consciência crítica. Uma descida ao mundo das coisas reais que, por desprovida de política e de parcialidade, pode vê-lo tal como é: sede de atraso, miséria, não-desenvolvimento, iniquidade. Não há, é de notar, menção a défices de liberdade, já que tal juízo releva da presença prévia de uma escala axiológica não inscrita na ordem dos factos, mas tão somente na ordem dos valores. É essa teoria da verdade que permite a distinção a respeito do que sustentou Manuel Villaverde Cabral, a propósito de uma pesada atmosfera administrativista e hagiográfica a cobrir as narrativas políticas, impedindo formas claras de reflexividade. O que resultou do programa de investigação desenvolvido por Sedas Nunes não pode ser subsumido nas alternativas da hagiografia e do discurso administrativo. Com efeito, uma outra via se impôs, através da afirmação de uma vocação para dar a ver o mundo social, tal como ele é, e como requisito para a reflexividade. Reveladas as verdades, elas operariam como corolários dotados de uma potência de reconfiguração social. É, ao menos, o que se supunha.

 

DO ESTRANHAMENTO ORIGINÁRIO AO ESPÍRITO CIENTÍFICO

 

Uma via complementar de acesso à trajetória de Sedas Nunes pode ser encontrada em texto de sua lavra, escrito em 1989 e não publicado. Trata-se de um depoimento transcrito, que diz das motivações presentes no empreendimento intelectual e civilizatório de fixar as ciências sociais no horizonte cultural português. A pista oferecida pelo texto inédito resume algumas das marcas contidas no ensaio de 1988, publicado no número 100 da Análise Social. Traços de auto-definição logo se apresentam: “um professor e um investigador”, dedicado “à investigação no campo das ciências sociais”, “como uma forma de intervenção na vida do meu país”:

 

Eu escolhi a função de docente na Universidade por uma vontade, um desejo de intervenção social, para ter uma porta sempre aberta pela qual pudesse comunicar com outros, e designadamente com outros mais novos do que eu, que eram os meus alunos [Nunes, 1989].

 

Vocação pessoal, com forte rebatimento na experiência do Gabinete de Investigações Sociais, criado em 1962. O propósito do ente que substitui o Gabinete de Estudos Corporativos foi o de

 

contribuir para que alguma coisa mudasse na sociedade portuguesa, e para que mudasse designadamente a própria maneira de as pessoas verem a sociedade portuguesa […] para permitir às pessoas compreenderem melhor a sociedade em que viviam, e poderem actuar mais esclarecidamente nessa sociedade [Nunes, 1989].

 

Passagens rápidas, mas já com sinais a destacar: vocação pessoal, chamamento científico e imperativo de intervenção. Tais dimensões abrem, por sua vez, caminho para considerar uma questão de fundo: a da associação entre i) a emergência de uma comunidade epistémica, portadora de um ethos científico próprio, e ii) uma progressiva demarcação em relação ao regime, fora dos marcos simbólicos e narrativos habituais de tal distinção, postos pela via da militância política e do combate ideológico.

No princípio de tudo opera um estranhamento originário, portador de futuro. Em 1952, Sedas Nunes ingressa no Gabinete de Estudos Corporativos (GEC) do Centro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa. Na sequência, viria a ocupar a direção do recém-criado Centro de Estudos Sociais e ­Corporativos (CESC) do Ministério das Corporações. No processo, Sedas Nunes teria verificado a incompatibilidade entre a estrutura social portuguesa e as teses corporativistas, de sua anterior persuasão. O movimento que sustenta tal descoberta é descrito por seu autor como um processo de tomada de consciência, pelo qual um sistema de crenças – a ideologia corporativa – acaba por ceder diante da forma concreta da vida. Com efeito, Sedas Nunes, a partir do seu primeiro livro – Situação e Problemas do Corporativismo – publicado em 1954 estabelece a sua primeira demarcação. O seu afastamento, contudo, não se deve à adesão a outro sistema de crença, fixado no campo da doutrina política: para opor-se ao corporativismo não se faz liberal, democrata ou socialista. O que o convence – e o que, a partir daí, se tornará matéria para convencimento dos demais – é o facto da “total descoincidência entre os princípio corporativos e as realidades sociais”.

No seu ensaio publicado na Análise Social, Sedas Nunes assim descreve o reconhecimento da “descoincidência”:

 

[…] no meu primeiro livro, que tinha o título Situação e Problemas do Corporativismo, e o muito mais significativo subtítulo de Princípios corporativos e realidades sociais. Neste livro, eu procurara demonstrar, e demonstrava efetivamente, a total descoincidência entre os princípios corporativos e as realidades sociais [Nunes, 1988, p. 13].

 

Aqui está o epicentro de tudo o que virá: o contraste entre a mónada doutrinária e a realidade das coisas. O combate não se dá no campo da doutrina, mas no da fixação de um regime de verdade que mostre as coisas tal como são. O apego ao rótulo “corporativo” e ao ideário que lhe está associado, ademais, seria receita pura para isolamento e irrelevância:

 

[…] esta denominação [corporativo]… era como um cerco à nossa volta, um muro que nos encerrava num vazio e nos cortava a comunicação com o exterior. Ninguém estava interessado em ler fosse o que fosse que tivesse origem em algo que se denominasse “corporativo”: o descrédito do corporativismo era total [Nunes, 1989].

 

A passagem conceptual é clara: vai-se da “corporação” para a “sociedade”; o ente sob investigação deixa de ser “corporativo” e define-se como “social”. Vê-se que escolha do social se dá por um desejo de subtração de implicações adjetivas. Nesse sentido, no subtítulo da obra – Princípios corporativos e realidade social –, o conectivo “e” encerra, na verdade, um efeito de disjunção. Escreve-se daquele modo, mas o sentido deve ser apreendido de maneira diversa: algo como Princípios corporativos ou realidades sociais. Trata-se de expulsar o “corporativo” do “social”. Se descrevo a unidade da nação como algo envolvido num vínculo corporativo, o aspeto doutrinário acaba por exalar por todos os poros. Já a utilização do termo “sociedade” introduz uma assepsia vocabular – uma deflação de significados –, que não traz consigo a sua consequência adjetiva. Ou melhor, antes a indica, mas por subtração dos adjetivos costumeiros. Afinal, o termo “sociedade” exige, como condição de entendimento primário, tão somente a aceitação tácita da plausibilidade da sensação de presença de um vínculo associativo regular entre os humanos.

O corporativismo aparece, ademais, como marcado por um erro categórico básico: o da sua impropriedade para com a realidade portuguesa. Ele não mais a descreve, e quando a precomete um erro ontológico básico: não há no mundo aquilo que supõe existir. Este, em termos diretos, é o lugar do erro originário do corporativismo. A verificação do efeito de décalage traz a necessidade de proceder “ao estudo aprofundado das estruturas e dos dinamismos da organização da sociedade” (Ferreira, 2006, p. 168). Ainda nos termos postos por Nuno Ferreira, a isto se associa a “definitiva desvalorização dos princípios doutrinais e, principalmente o recurso a metodologias mais eficazes no acesso à realidade social” (Ferreira, 2006, pp. 164-165). A transformação, em 1962, do GEC em Gabinete de Investigações Sociais representa a vitória do social sobre o corporativo. O mínimo que se pode dizer é que isso não era pouco. Trata-se, pois, de mostrar o que na sociedade portuguesa expulsa o corporativismo, sem que para tal o combate político e ideológico tenha que ser travado. Como se verá adiante, caberá ao longo ensaio “Portugal, sociedade dualista em evolução” o ato de mostrar o que é a estrutura social real na qual vivem os portugueses.

O que se abre com o passo do “corporativo” para o “social” é simplesmente a possibilidade da prática sistemática da investigação social. Se, como sustentou Manuel Villaverde Cabral (1982), em ensaio já aqui mencionado, o “casulo” da política constituiu-se como objeto aberto à análise sistemática no pós-revolução democrática de 1974, o “casulo” do social ter-se-ia afirmado com a expulsão do corporativismo como hipótese ontológica, mais do que como persuasão ideológica. Como proposição ontológica básica, a partir de meados dos anos 50, passa-se a operar com a seguinte premissa: o facto básico no qual se inscrevem todas as ações humanas é o facto da sociedade. Que algumas sociedades sejam corporativas, isso não elimina o facto de que o termo “corporativo” acabou deslocado para a esfera dos predicados. A revista Análise Social passará a ser, desde a sua fundação, o veículo e operador público dessa passagem.
É difícil, nessa chave, exagerar o papel que cumpriu no campo das possibilidades de re-descrição da experiência social portuguesa.

Do ponto de vista da comunidade portadora do interesse e do gosto por problemas sociais – uso aqui seus marcadores nativos – o que se deflagra é um processo de construção de uma resposta ao seguinte problema: como demarcar-se do regime, fora da linguagem, dos marcadores e dos espaços habituais do combate (luta social, política e cultural)? A resposta é dada, tal como aqui se indica, pela progressiva repulsa do corporativismo, fundada em princípios de objetividade sociológica. Vale dizer, pois, que um novo sistema de crenças se afirma, de modo igualmente processual: a da necessidade de mostrar a sociedade portuguesa, fora da cobertura enganosa do corporativismo. Mostrar sem ruído ideológico. Isso só se torna possível com a constituição de um novo sistema de crenças que terá na objetividade científica a sua cláusula pétrea. A defesa da objetividade vale como proteção contra a infestação doutrinária: o debate de doutrina é necessariamente assimétrico, dados os limites do regime; ademais possui implicação diretamente política, com imperativos de militância e de envolvimento prático, de natureza distinta da do campo da investigação. Mas, trata-se sobretudo de evitar a polifonia dos significados, pela adesão ao mundo tal como é, no que tem de material, objetivo e inapelável. Há aqui mesmo uma teoria da verdade, cujo paroxismo pode ser encontrado da afirmação do químico italiano Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, ao justificar o seu apego intelectual e profissional pela Química pela certeza de que o fascismo nada podia contra os elementos químicos. Na perspetiva e na linguagem introduzidas por Fernando Gil (2003, p. 95) no campo da filosofia contemporânea, trata-se de substituir a alucinação da verdade adjetivada por outro regime alucinatório no qual a mostraçãoDarstellung – das coisas porta a sua verdade imanente.

A defesa do objetivismo sociológico pode ser vista em perspetiva semelhante: não se trata de defender a forma da sociedade futura – por imaterial e aberta à polifonia dos significados possíveis – mas de mostrar a forma da atual. Tal efeito de ostensão – além de criar uma tradição de investigação e de busca da verdade, introduz modalidades narrativas a respeito da experiência social portuguesa, para dizer o mínimo, de natureza distinta das representações oficiais. Trata-se de um antigo tropo cético: interpretações só podem ser refutadas por intepretações. A que se apresentava sob o signo da objetividade mostrava-se a si mesma como representante do mundo real, já que desprovida de adjetivações. O diabo, como se sabe, mora não nos detalhes, mas nos adjetivos e nos predicados.

O programa da objetividade, já à partida, constitui o núcleo do 1.o número da revista Análise Social, saído em janeiro de 1963. Dois de seus artigos são portadores inequívocos dessa marca, e como tal, são destacado por Sedas Nunes. Em primeiro lugar, um artigo técnico e contido, de Raul da Silva Pereira (1963), sobre a situação habitacional do país. Sobre o seu impacto e relevância, diz-nos Sedas Nunes, sem medir palavras:

 

Um artigo de Raul da Silva Pereira sobre a situação habitacional no País abria, e abriu de facto, as portas a uma reequacionação dos problemas sociais da habitação no nosso País. Parecia não ser muito o que pretendia: limitava-se a fazer passar a discussão desses problemas de uma discussão sobre palavras para uma discussão sobre números. Mas nunca mais se voltou atrás, não só na revista, mas no País. Daí em diante, nunca mais os problemas habitacionais se discutiram à base de palavras: passaram a discutir-se à base de números. Foi um progresso muito importante [Nunes, 1988, p. 20].

 

A seguir, um ensaio do próprio Sedas Nunes, sob o título de “Introdução ao estudo das ideologias”. O resumo apresentado ao início do ensaio indica o ângulo de ataque:

 

Vivemos num mundo ideologicamente dividido. Importa, por isso, entender o que as ideologias são, sob que formas se apresentam, que funções exercem na sociedade, como se desenvolve o seu conflito, como se explica a sua irrupção no nosso tempo, que relações existem entre o surto ideológico e a evolução social [Nunes, 1963, p. 5].

 

O programa de interpretação das “ideologias” é abertamente objetivista: não se trata de as interpelar do ponto de vista dos seus argumentos e crenças substantivos, mas como factos sociais. O que então importava, tal como Sedas Nunes o dirá em 1988, é

 

saber porque é que as ideologias se implantavam e expandiam na sociedade, penetrando e conformando as mentes individuais, para poder vencer tanta aparente dificuldade que havia no País, de aprender e enfrentar intelectualmente problemas sociais [Nunes, 1988, p. 20].

 

O primeiro número da Análise Social é inteiramente devotado ao tema dos “aspectos sociais do desenvolvimento económico em Portugal”. Para Sedas Nunes, tratava-se de acrescentar uma perspetiva social aos “estudos económicos que se tinham desenvolvido bastante em Portugal a partir dos anos 50, concentrando-se muito na temática do desenvolvimento e da industrialização”. Com isto, apresenta-se “um novo ponto de vista … focando os aspectos que até então não eram focados, aqueles que não eram meramente económicos, mas sociais e institucionais” [Nunes, 1989]. A objetividade aparece como condição de “novidade”:

 

Nada daquilo tinha sido tratado: os problemas de urbanismo, de horários, de repartição dos rendimentos, de emigração. Coisas de que não se falava, que não eram discutidas nem conhecidas no nosso país, embora nos afectassem profundamente e nos estivessem a afectar cada vez mais [Nunes, 1989].

 

Mas, o que revela o par novidade/objetividade, para além do registo e da vigência do mundo real? A meu juízo, dois aspetos de natureza mais abstrata, e que assim podem ser apresentados:

 

(i)o imperativo do desenvolvimento, proposição abrigada em vários números posteriores da Análise Social, nomeadamente o volume duplo – 7/8 –, dedicado ao tema “Aspectos sociais do desenvolvimento em Portugal”, dado à estampa em 1964 .

 

(ii) a deteção da presença de um padrão de complexidade social crescente, que traz consigo a ruína da ficção corporativa.

 

A combinatória entre (i) e (ii) possui implicação precisa: a evidência de um regime a ser deslocado pelo desenvolvimento e pelo social, e não pela política e pela doutrina. Um padrão de complexidade social crescente, mais cedo ou mais tarde, exigirá algum reconfiguração de natureza política e institucional.

 

OS FACTOS ESTÃO DO NOSSO LADO (E CONTRA O REGIME)

 

A interpretação de Portugal virá, em 1964, com o ensaio “Portugal, sociedade dual em evolução”, publicado no primeiro número da Análise Social. Mais do que enumerar evidências e achados substantivos – dispostos ao logo de mais de 50 páginas – importa indicar a direção e a implicação do texto. É que se apresenta à partida, no resumo introdutório:

 

Como todos os países em vias de desenvolvimento, Portugal é uma sociedade dualista, onde ao redor de restritas áreas de economia e sociedade moderna se mantém toda uma vasta zona de economia e sociedade tradicional. Entender este dualismo, na sua estrutura e na sua dinâmica evolutiva, é captar um dos quadros de referência básicos da problemática nacional. O êxodo rural e a emigração, que assumem proporções de “hemorragia social”, só dentro de tal esquema podem ser convenientemente situados [Nunes, 1964, p. 407] .

 

Duas outras passagens resumem bem as implicações do texto:

 

O nítido dualismo económico (agricultura estagnante, indústria em expansão) que assim avulta, imediatamente sugere um dualismo mais radical, de ordem sociológica, que é aquele que propriamente nos interessa abordar. Porque o crescimento da indústria pode, na verdade, ser interpretado como expressão resultante do movimento para o progresso de um dado sector da sociedade portuguesa, e a estagnação da agricultura pode ser encarada como indicador de bloqueamento no atraso de um outro sector dessa mesma sociedade […] a persistência e dominância, na maior parte do território e da população, de um estilo devida económica recebido do passado e carecente da capacidade de absorver e difundir eficazmente o progresso [Nunes, 1964, p. 409].

 

No contexto dual da sociedade portuguesa, o que há pouco ainda era estagnação e bloqueamento tende a tornar-se regressão e degenerescência; e também poderá vir a ser refreado o que por ora é movimento para o progresso. O êxodo – que de rural se faz nacional – é sintoma e prenúncio de situações que podem vir a assumir, para toda a comunidade, aspectos muito difíceis [Nunes, 1964, p. 462].

 

O ensaio de 1964 representa a conclusão lógica e substantiva do que se apresentou no livro de 1954. A tese da não-correspondência entre a sociedade portuguesa e o espartilho do corporativismo encontrará 12 anos depois de formulada lastro interpretativo capaz de sustentá-la. Por definição uma sociedade “dual”, dadas as características que a compõem, não pode ter como organização institucional a forma corporativa. Nesse confronto, a dinâmica social aparece como invencível.

Uma comunidade epistémica ideologicamente contida e deflacionada, praticante de uma curiosa combinação entre interesse e gosto, encontra no ensaio de Sedas Nunes, de 1964, a sua intepretação mais clara. Afirma-se, pois, uma interpretação de Portugal que só torna plenamente inteligível se a ela se somar a auto-interpretação do seu ator e das suas circunstâncias. Tal como posto, aqui temos: Sedas Nunes, intérprete de Portugal, intérprete de si mesmo.

 

NOTA FINAL: OBJETIVISMO, PRAGMÁTICA SOCIOLÓGICA E ALGUMA DEONTOLOGIA

 

É importante acrescentar no final desta interpretação do intérprete que o processo que constituiu uma cultura científica, no campo das ciências sociais, em Portugal, para além do seu carácter original e particular, compartilha com aspetos centrais da consolidação desse mesmo campo, em termos internacionais, a partir da década de 1950. A defesa de um ethos científico objetivista, a adoção de uma espécie de horror à ideologia e a ênfase dada à sofisticação técnica e metodológica confundem-se com a história da disciplina em escala mundial.

Em meados dos anos 90, dois dos mais prestigiosos historiadores norte-americanos – Thomas Bender e Carl Schorske – foram responsáveis pela edição de um balanço crítico a respeito das ciências sociais e humanas nos EUA.3 Trata-se de um excelente e ainda vívido quadro histórico de parte das ciências sociais e das humanidades naquele país. Ali aparecem dilemas e contornos internos, assim como vinculações com o ambiente cultural, político e social mais amplo.

O projeto concentrou-se em quatro campos disciplinares: economia, filosofia, estudos de inglês e ciência política. Para cada um deles, eminentes praticantes foram convocados a contribuir com textos que mesclaram memorialismo e análise. Na apresentação do livro, Bender e Schorske (1998, p. 6) mencionam a ocorrência de uma “virtual refundação” das quatro disciplinas, na virada das décadas de 1940 e 1950. Tal refundação teria sido motivada pelo desejo de superar o que então se percebia como o legado ideológico da década de 1930, cujos ecos podem ser encontrados em dois documentos importantes para a história da educação superior norte-americana: “General Education in a Free Society”, elaborado em 1945 por uma comissão da Universidade ­Harvard – mais conhecido como o “Red Book” – e “Higher Education for Democracy”, vasto relatório publicado em 1947 pela Comissão de Educação Superior (Comission on Higher Education). Ambos os documentos afirmam a importân­cia do desenvolvimento da cultura científica e da tradição humanística europeia e uma ideia de formação intelectual associada a responsabilidades de direção dos assuntos públicos.4

Com a virada, ocorrida no fim dos anos 40 e durante a década seguinte, marcadores internalistas passam a ter primazia como aferidores de excelência, em detrimento de outros, de natureza externalista, mais atentos ao vínculo da academia com o espaço cívico e público. Difunde-se um padrão de excelência definido em termos cada vez mais endógenos. Richard Freeland, em importante livro, chamou a atenção para uma alteração no padrão de “constituency” da academia: não mais o âmbito público em geral, mas os próprios âmbitos disciplinares e as formas institucionais que os sustentam.5 O mesmo processo foi percebido e analisado por David Riesman e Christopher Jencks (1968), ao qual atribuíram o termo “revolução académica”. Dois valores podem ser apresentados como síntese dessas mutações: autonomia académica e profissionalismo disciplinar. Como se pode ver, tais tendências não foram inventadas ao sul da linha do equador. Bender (1998, p. 20) indica, ainda, as implicações desses valores para a organização das ciências sociais e humanas:

 

(i)devoção ao modelo das hard sciences;

(ii) compromisso com a objetividade;

(iii) confiança no poder da análise formal;

(iv) aversão à ideologia e a ameaças à “pureza disciplinar”.

 

O trabalho académico adquire, portanto, uma perspetiva internalista – “inward-looking” – e devota-se primariamente ao desenvolvimento disciplinar e ao treino dos estudantes para a disciplina em questão.

Dificilmente poderíamos encontrar uma evidência tão forte da presença de tal reorientação no campo das ciências sociais quanto a fornecida em discurso proferido por Talcott Parsons, em 1959, na reunião da American Sociological Association. Segundo Parsons, como disciplina científica, a sociologia dedica-se primária e claramente ao avanço e à transmissão de conhecimento empírico, e apenas secundariamente à comunicação de tal conhecimento a não praticantes da disciplina.6 Parsons opõe-se, assim, de modo aberto, a conceções segundo as quais o avanço da disciplina tem como principal motivo a comunicação a não-praticantes e a usuários – governos, associações e o público em geral.7

A virada, contida na ideia de uma “academic revolution”, apresentou-se de forma diferenciada, mas eloquente, nas quatro disciplinas analisadas pelo empreendimento coordenado por Bender e Schorske. A economia, a partir, dos ano 40 vê-se tomada pelo progressivo abandono dos temas keynesianos clássicos – inscritos numa perspetiva de economia política e, mesmo, social – e passa a afirmar-se como econometria e a adotar uma linguagem formalizada e não-natural.8 Os estudos de inglês, sob a égide no New Criticism, passam a ser atravessados por uma cultura intelectual formalista, que virá a ser contestada, nos anos 60, pela emergência dos Cultural Studies e pelo desenvolvimento de perspetivas fundadas em questões de género e pertença étnica.9No campo da filosofia, a reorientação manifestar-se-ia pelo predomínio avassalador da filosofia analítica, em detrimento da ênfase clássica em temas de natureza ética e normativa, associados a investigações sobre a própria história do pensamento filosófico.10 No domínio da ciência política, a virada tomou a forma do que foi designado como uma “revolução behaviorista”.

Um tanto triunfalista, a expressão “revolução behaviorista” designa uma reorientação ocorrida no campo do conhecimento político, a partir dos anos 50. A virada pretendia afirmar tal conhecimento como uma “ciência”, com protocolos distintos dos praticados pela filosofia política, percebida como contaminada por fortes componentes historicistas e normativos. A reorientação proposta pretendia, ainda, executar uma virada empírica e positiva no campo do conhecimento da vida política, voltada para a explicação de como os fenómenos políticos ocorrem no assim chamado mundo real. Uma ciência da política, assim revolucionada, deveria sustentar-se em bases exclusivamente realistas e experimentais e dispensar referências de ordem normativa.

O que se passou em Portugal, com certeza, possui nexos com o processo analisado por Bender e Schorske. No entanto, há na dupla interpretação posta por Sedas Nunes algumas atenuantes. Em grande medida, a dinâmica entre interesse e gosto introduz na alquimia intelectual a possibilidade de propor a seguinte pergunta: o que estamos a fazer quando fazemos ciência social? Na chave posta pela virada positiva dos anos 50, a resposta a tal pergunta seguiu protocolos rigorosamente objetivistas: trata-se de descrever métodos em uso. De um modo muito claro, o tema da vocação foi substituído pelo imperativo do “treino” e da adaptabilidade do espírito a um conjunto de tarefas e a um aprendizado de regras, a respeito das quais nenhuma reflexividade é exigida.

A defesa de uma ciência social fundada apenas no interesse – nos termos em que o define Sedas Nunes – sustenta tão somente uma pragmática sociológica, para a qual importa a consideração dos resultados e dos achados. A ciência impõe-se, desse modo, pelos seus efeitos. O tema do gosto, além de introduzir uma dimensão epistémica – para além da epistemógica –, ao lado do tema da vocação indica a relevância civilizatória da presença da atividade científica, independentemente dos seus resultados. A investigação funda-se tanto numa atividade como num conjunto de valores. Ao que parece, o argumento de Sedas Nunes é indiciário da presença de um esforço por sustentar um padrão de autonomia do sujeito portador do gosto, uma reserva mental e pessoal, diante de uma cultura política que exigia a entrega das almas – ou, pelo menos, implicava torná-las mais pequenas, na bela e terrível métrica de Sophia de Mello Brayner.

Se o texto a respeito de Portugal como sociedade dual representa a coagulação de um ideal de cultura científica objetivista, o efeito final não parece ter dispensado a leve pátina da aposta e do desejo de normatividade. É o que pode ser depreendido de seu parágrafo final, no qual o sociólogo ex-corporativista e católico nos surpreende – ou não – com o tema da “revelação”:

 

Baixar do globalismo nivelador às realidades regionais e locais; ampliar o âmbito das análises para além dos limites estreitos de um ponto de vista parcial; fazer convergir no estudo dos factos e na determinação dos problemas, diferentes ópticas de investigação; aceitar a “revelação” das situações e condições perigosas ou incómodas; procurar, mesmo, decididamente, essa revelação e querer que ela se torne debate esclarecedor e candente, eis alguns traços fundamentais da atitude que, fora de quaisquer considerações de optimismo ou derrotismo, parece indispensável assumir. Talvez dela se diga que não é menos ideológica que as outras. Mas não haverá mal em que o seja, se é de uma visão clara, corajosa e franca dos factos que se quer partir, e se é uma dignificação progressiva da vida humana, em cada homem e em todo ele, que se quer chegar [Nunes, 1964, p. 462].

 

Assim como o corporativismo, na década de 1950, já não correspondia ao desenho real da sociedade portuguesa, a cultura do objetivismo parece não dispor de encaixe perfeito com as estruturas um tanto opacas dos nossos gostos, mesmo quando praticamos disciplinadamente os protocolos identitários e cognitivos do métier. A suplementação posta pelo gosto e por alguma deontologia não faz mal à descoberta. É o mínimo que se pode dizer e penso que Sedas Nunes, de algum modo, o disse.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Recebido a 17-11-2015. Aceite para publicação a 30-11-2016

 

NOTAS

1 Traços importantes da trajetória de Adérito Sedas Nunes podem ser encontrados no livro incontornável de Nuno Estevão Ferreira (2006). Igualmente importante é a memória escrita do próprio Sedas Nunes, “Entre estar e ser o olho do furacão: o ICS e a Análise Social num tempo de viragem social e política da sociedade portuguesa”, texto inédito, datado de 1989, descoberto por Raul da Silva Pereira, que me foi transmitido por João Sedas Nunes, a quem agradeço pela generosidade e gentileza. Agradeço, igualmente, a atenção crítica e as sugestões apresentadas pelos pareceristas anónimos.

2 Uma interessante analogia pode ser feita com a definição da vocação para a sociologia, tal como apresentada por Peter Berger no seu belo livro Invitation to Sociology. Berger (1963) descarta uma variedade de razões exógenas como justificativas para a vocação sociológica, tais como o desejo de “mudar o mundo” e de “ajudar pessoas”. A despeito da mobilidade dessas motivações, o que caracterizaria a vocação seria um atributo de natureza intrínseca, fundado em uma curiosidade, um tanto obsessiva, de fazer perguntas e de submeter à reflexividade práticas, regras e fundamentos da sociabilidade. O livro segue como referência fundamental para a discussão sobre o tema da vocação para as ciências sociais, tão descurado pelo predomínio de uma dimensão pragmática no campo das ciências sociais.

3 O projeto – designado como American Academic Culture in Transformation –, abrigado pela American Academy of Arts and Sciences, resultou, em primeiro lugar, num número especial da revista Daedalus (Daedalus: Journal of the American Academy of Arts and Sciences, vol. 126, n.º 1,1997). Foi, a seguir, transformado em livro, publicado pela Universidade de Princeton. Cf. Bender e Schorske (1998).

4 Cf. Bender (1998, p. 20). De acordo com o Red Book, toda prioridade deveria ser conferida a investigar e ensinar “o lugar das aspirações e ideais humanos no esquema geral de todas as coisas”. Todo o debate a respeito da direção a ser seguida pela “higher education” norte-americana, com ênfase nas Humanidades, pode ser encontrado no excelente livro de Hofstadter e Smith (1961).

5 É esse o sentido do comentário geral de Freeland a respeito da mutação ocorrida a partir dos anos 40, que aqui reproduzo: “the central constituencies of the academic culture were the scholarly disciplines and the learned societies they sponsored, for it was these groups that could confer a reputation for excellency” (Freeland, 1992, p. 168).

6 Apud Thomas Bender (1998, p. 22). Interessante notar, em chave contrastiva, o que pensava Mario de Andrade: a sociologia é a “arte de salvar rapidamente o Brasil” (Andrade, 1972, p. 41).

7 No debate contemporâneo no campo da sociologia, essa última versão vem sendo defendida pelo sociólogo Michael Burawoy, em torno da ideia de uma “sociologia pública”. V. Burawoy (2005). Ver, ainda, para uma reação no campo da sociologia brasileira, Simon Schwartzman, “A sociologia como função pública no Brasil”. Caderno CRH, Vol. 25, No. 56, pp. 271-279, Agosto de 2009, disponível também em http://burawoy.berkeley.edu/PS/Brazil.Caderno/Schwartzman.pdf

8 Três excelentes ensaios são devotados às mutações na disciplina “economia”, no livro de Bender e Schorske (1998): Robert Solow, “How did economics get that way and what way did it get”; David Kreps, “Economics – the current position” e William Barber, “Reconfiguration in American academic economics: a general practicioner’s perspective”.

9 V., no livro organizado por Bender e Schorske (1998), os ótimos ensaios de Muray Abrams, “The transformation of English Studies” e de Catherine Gallagher, “The history of literary criticism”.

10Para o que ocorreu no campo da filosofia, v. Hilary Putnam, “A half century of philosophy, viewed from within” e Alexander Nehamas, “Trends in recent American Philosophy”, no mesmo livro mencionado.

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