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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

JUSTINO, David

Fontismo: Liberalismo numa Sociedade Iliberal,

Alfragide, D. Quixote, 2016, 472 pp.

ISBN 9789722059336

 

Diego Palacios Cerezales*

*University of Stirling, Stirling, FK9 4LA, United Kingdom. E-mail: diego.palacioscerezales@stir.ac.uk

 

O novo livro de David Justino analisa o contexto de ação e as estratégias políticas da elite governativa da segunda metade do século XIX português, o “fontismo”. O autor não é exaustivo no diálogo com a produção académica relevante dos últimos 30 anos, mas revisita problemas-chave, usa abundantes fontes originais e propõe interpretações que podem alimentar uma futura agenda de investigação. Como ponto de partida, o autor toma a noção de ideologia. Enquanto as múltiplas formas e refrações deste conceito levaram outros cientistas sociais a optar por alternativas como “cultura política”, “mentalidade”, “tecnologia de governo” ou “discurso”, Justino reconstrói a noção de ideologia em diálogo crítico com a sociologia histórica e com o marxismo, propondo que a ideologia (liberal) seria “[um] conjunto sistematizado e coerente de ideias, valores e crenças, visando a mudança política e social e orientadas para um determinado fim que se pretende atingir” (p. 33).

Segundo o autor, o liberalismo do século XIX seria uma ideologia imbuída da noção de progresso, e, tal como outros, Justino adere à ideia de que se tratava de uma ideologia de “nicho”, património da elite política e social, não compartilhada pela maior parte da sociedade, a que designa no título da obra como “iliberal”. Abraçado apenas pelas elites, o liberalismo entraria em constante fricção e frustração com um povo empírico que, embora fosse apresentado como a fonte da soberania, não participava na definição nem dos meios, nem dos fins das políticas públicas, pois não reivindicava nem estradas, nem educação, nem voz no debate público.

No primeiro capítulo, o livro reconstrói as inspirações internacionais da ideia de progresso em Portugal e localiza a sua eclosão e receção nas conturbadas décadas de 1830 e 1840, antecipando o consenso regenerador das décadas seguintes. A pacificação das disputas políticas a partir de 1851 não se ficaria a dever a uma “desideologização” destas, como tem proposto a historiografia: acabaria então o uso de “rótulos” como cartista ou setembrista, mas só com o triunfo de uma ideologia, a ideologia do progresso.

No segundo capítulo David Justino revisita uma polémica antiga, a sua própria desmontagem do mito do livre-cambismo da política comercial portuguesa do século XIX, e demonstra, em particular, que nem mesmo Fontes Pereira de Melo expressava claras preferências doutrinais livre-cambistas. A argumentação apoia-se solidamente nas fontes e coloca em primeiro plano a importância fiscal das taxas alfandegárias. O argumento é em geral convincente, mas não o é o paralelismo que o autor propõe entre dois discursos muito diferentes, o do próprio Fontes, que defende o protecionismo devido à baixa competitividade da indústria portuguesa, e o do barão de Forrester, que explicava a rejeição do livre-cambismo em Portugal pelo espírito católico “in ideas, in habits, in religion, in customs, in institutions, in education” (p. 142). O autor cita Forrester para introduzir a noção de “sociedade iliberal”, mas o paralelismo parece forçado.

O terceiro capítulo aborda a crítica romântica ao materialismo do progresso, interrogando-se o autor acerca da relação entre esta e o liberalismo. O autor analisa com pulso seguro a obra de ­Garrett, Herculano, Camilo, Dinis ou Lopes ­Mendonça, mostrando as relações problemáticas entre a idealização do passado, a ideia de progresso, o nacionalismo e o uso do passado na construção no futuro, concluindo que, como noutros países europeus, em Portugal o romantismo prolongou os efeitos da modernidade, acrescentando-lhe um ângulo crítico com os seus próprios efeitos (p. 456).

Os dois capítulos seguintes abordam o nacionalismo e a educação, dois temas que desde os trabalhos de Jaime Reis a historiografia portuguesa sempre tem analisado em conjunto. Aqui, as reflexões de Justino são consentâneas com as de outros historiadores: a educação, em Portugal, apesar de ser apresentada pelas elites como uma prioridade, não era sentida como tal porque uma das principais funções que havia desempenhado noutros países europeus, nacionalizar as massas, não parecia urgente. A falta de minorias linguísticas tornava menos imperioso fomentar a coesão por meio do ensino e da alfabetização numa língua nacional. Para mais, como a população não requeria acesso à educação, as elites podiam relegá-la nas suas prioridades de despesa pública.

O sexto capítulo convida a uma reavaliação da participação política popular no século XIX, da sua extensão, seus condicionantes e efeitos. Para analisar a forma como a população recebeu a ação do Estado, o autor recorre aos motins de 1861-1862, nos quais várias povoações se levantaram contra o aparelho fiscal, mas também contra os pesos do sistema métrico e, em locais pontuais, contra outros problemas como os salários, a carestia, as moléstias que os fumos das minas de Braçal causariam à agricultura ou a florestação de pastos comuns. Ao contrário da minha própria análise, em vez de explicar a simultaneidade de motins com motivações diversas atendendo às perceções das oportunidades políticas e à debilidade estatal, David Justino considera que “estamos perante casos de ação colectiva contra um Estado cada vez mais intrusivo”. Não é uma conclusão inovadora, nem equivocada, mas não deixa de ser problemática na medida em que, embora o autor cite Charles Tilly, não interioriza um dos principais contributos deste autor para o estudo da ação coletiva contestatária, a saber: não é o mesmo conhecer a motivação de quem protesta que explicar a ocorrência do protesto, ou as formas que este toma.

Neste capítulo mostram-se também os limites da noção de “sociedade iliberal”, que o autor nunca explicita cabalmente. Trata-se de uma sociedade cujas “ideias, valores e crenças” se definem como um negativo do liberalismo? Não há uma política popular com densidade antropológica e fundamentos ideológicos que possa definir-se nos seus próprios termos como, por exemplo, a que Roger Dupuy (2002) reconstrói para a França do século XIX?

Outras formulações usadas mostram a necessidade que a historiografia portuguesa tem de uma síntese que analise longitudinalmente o protesto rural em Portugal. O autor chama à mobilização de 1861-1862 “o último dos movimentos campesinos” (p. 442). No entanto, chega a esta conclusão sem propor um critério comparativo. Terá sido, de facto, o último? Terá sido muito diferente da mobilização rural de 1867-1870? A minha própria base de dados recolhe 30 motins rurais em 1868, apenas menos quatro do que em 1862. A minha impressão é que entre 1867 e 1870 ocorre um ciclo de protesto rural tão amplo, e talvez mais variado, do que o de 1861-1862, amplificado ainda pelos variados protestos urbanos associados à Janeirinha e ao reformismo.

Sem uma definição não se pode valorar se os incidentes de “repertório tradicional” ocorridos durante a República Velha (1911-1917) estudados por David Luna de Carvalho (2011), que incluem 318 motins de subsistência, poderiam ser ou não um movimento campesino, ou saber por que não devemos considerar como tal a “insurreição alentejana” de 1911-1912, os “motins camponeses” de 1941-1944 estudados por Fernando Rosas ou, inclusive, as lutas pela reforma agrária ou a mobilização anticomunista de 1975.1

Outro tipo de problemas neste capítulo deriva da falta de atenção a alguns matizes históricos. O texto do Manifesto de Braga de setembro de 1862, quando se refere aos que foram “batendo de porta em porta pedindo-nos assinaturas contra o excesso de tributos”, com toda a probabilidade não se refere à Maria da Fonte, como supõe o autor (p. 441), mas antes à “representação-monstro” contra os aumentos fiscais de 1856, que precedeu a formação do primeiro governo do Marquês de Loulé e juntou cerca de 30 mil assinaturas de todo o país. Do mesmo modo, a interpretação da política lisboeta de 1861 parece basear-se numa leitura apressada das fontes, em especial do livro de Lélio Lenoir Portugal em 1862. A Sociedade Patriótica não pretendia “salvar o país do radicalismo que o governante não continha” (p. 418). Pelo contrário, pedia ao rei que Saldanha encabeçasse as aspirações do radicalismo, incluindo a expulsão das irmãs da caridade, prometida mas, porém, não executada por Loulé. O autor atribui a Lenoir o que este reporta como maledicências dos miguelistas contra o governo de Loulé, e depois conclui, a meu ver de forma errónea, que coexistia um “radicalismo dos progressistas” com um “cesarismo Saldanhista dos conservadores” (p. 421).

Estes problemas não retiram mérito à proposta de que a política popular portuguesa da década de 1860 deva ser entendida em relação com as imagens do funcionamento e da legitimidade do sistema político que circulavam nas classes populares, de que continuamos a saber muito pouco. De resto, carecemos ainda de um estudo sobre os mecanismos que forjaram e reproduziram a popularidade do Duque de Saldanha, porque o seu nome estava na boca de diversos movimentos populares e, também, porque encarnava a alternativa a duas institucionalizações-chave da modernidade liberal, o parlamentarismo e a burocracia, cujas aporias, seguindo o espírito do livro aqui recenseado, poderiam analisar-se em paralelo com a crítica romântica ao progresso.

Como figura populista clássica, Saldanha personificava a possibilidade de um governo forte e direto, sem intermediários paralisantes. Segundo D. Pedro V, todos os militares descontentes usavam o nome do marechal para dar credibilidade às suas conspirações. Na versão de Forrester, Saldanha devia legislar com o parlamento fechado e “availing himself of his baton… of Dictator, have the moral courage to cut at the root of the evils… decree the construction of roads… the extinction of odious monopolies… the encouragement of national industry by the introduction of raw materials from foreign, free of all duties… the free and unfettered exportation of Portuguese produce” (Forrester, 1860, p. 136). Os anti-clericais de Lisboa também o cortejavam com o seu próprio programa, propondo-o perante o rei para encabeçar a reforma das “corporações reacionárias” (Lenoir, 1863, pp. 8-9). Em contraste, os vivas a Saldanha nos pasquins do Minho e na serra do Algarve aparecem misturados com vivas à religião. Saldanha não difundia um programa, mas era cortejado como a única alternativa. Quando por fim encabeçou um golpe em 1870 e governou em ditadura, ampliou por um lado os direitos políticos de associação e petição, contentando o radicalismo lisboeta, mas também decretou o fim das operações de arrolamento predial, que estavam a provocar uma nova vaga de resistência rural.

A conclusão de que os tumultos de 1861-1862 “não geraram uma alteração significativa no regime político” (p. 459) é correta, mas o autor não discute em que medida as sucessivas vagas de motins foram vitoriosas na sua paralisação da capacidade infraestrutural do Estado, paralisando iniciativas, assegurando, a largo prazo, a debilidade fiscal do mesmo e a sua incapacidade para produzir bens públicos. Os motins contribuíram para o triunfo, a largo prazo, de uma sociedade civil real (iliberal?) na qual tanto as relações de dependência verticais como as solidariedades comunitárias se mobilizavam contra a construção de uma máquina estatal autónoma. Se se trata de explicar “porque foram adotadas determinadas políticas e não outras” (p. 15) talvez a chave esteja precisamente no poder relativo da sociedade civil, capaz de manter débil o Estado. Para mais, e aqui pode-se generalizar a explicação para a falta de esforço nacionalizador e educativo referida nos capítulos 4 e 5 deste livro: a elite governante descobriu que podia acomodar-se, sem custos maiores, a essa resistência da sociedade civil, precisamente porque não se articulava com projetos de poder alternativos nem com minorias (Palacios Cerezales, 2013). O apoliticismo – isto é, a resistência à penetração do Estado não ligada à constituição de uma alternativa de poder – era uma estratégia que funcionava, pois incrementava as possibilidades de os governantes transigirem. As coisas só mudariam com a articulação organizativa da questão social na transição do século.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CABRAL, M.V. (1989), Portugal na Alvo­rada do Século XX, Lisboa, Presença.         [ Links ]

CARVALHO, D.L. de (2011), Os Levantes da República (1910-17), Porto, Afrontamento.         [ Links ]

DUPUY, R. (2002), La Politique du peuple XVIII-XX siècle, Paris, Albin Michel.         [ Links ]

FORRESTER, J.J. (1860), Portugal and its Capabilities: Being the Essay for Which the Oliveira Prize and Medal Were Awarded, John Weale.         [ Links ]

LENOIR, L. (1863), Portugal em 1862, Lisboa, Imprensa de J. G. Sousa Neves.         [ Links ]

ROSAS, F. (2000), Salazarismo e Fomento Económico, Lisboa, Notícias.         [ Links ]

PALACIOS CEREZALES, D. (2013), “¿Despotismo administrativo o Estado débil? Policía, fiscalidad y sus efectos en la cultura cívica portuguesa”. In F. Carreira da Silva e P. Alcântara da Silva (eds.), Ciências Sociais: Vocação e Profissão. Homenagem a Manuel Villaverde Cabral, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 497-514.         [ Links ]

PALACIOS CEREZALES, D. (no prelo), “Persistent repertoires of contention in Portugal: from tax riots to anti-communist violence (1840-1975)”. In I. Favretto and X. Itçaina (eds.), Protest, Popular Culture and Tradition in Modern European History, Basingstoke, Palgrave.         [ Links ]

PALACIOS CEREZALES, D. (2016), Recensão “Fontismo: Liberalismo numa Sociedade Iliberal, Alfragide: D. Quixote, 2016”. Análise Social, 221, LI (4.º), pp. 1024-1028.

 

NOTA

1 V. Rosas (2000); Cabral (1989); Palacios Cerezales (no prelo).

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