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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

BLOCK, Richard e SOMMERS, Margaret R.

The Power of Market Fundamentalism. Karl Polanyi’s Critique,

Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 2014, 312 pp.

ISBN 9780674050716

 

António L. Silva Baptista*

*Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, Campus de Gualtar — 4710-057 Braga, Portugal. E-mail: alsbaptista@gmail.com

 

Como anunciado no prefácio, esta obra pretende construir e “make available a usable form of Karl Polanyi’s social theory” (p. IX). Assim, o livro destina-se a clarificar e reconstruir o pensamento do autor e, ao mesmo tempo, reivindicar o valor heurístico e ético-político da sua crítica no contexto atual de uma economia de mercado extremamente livre e globalizada, sustentada por uma ideologia assente, grosso modo, na mesma utopia da economia autorregulada que Polanyi buscara combater. Apesar de toda a admiração pelo antropólogo ­húngaro, e pelas potencialidades teóricas do seu pensamento, eles não deixam de assinalar, particularmente nos 5 primeiros capítulos, que os seus escritos, em particular “A Grande Transformação”, podem facilmente prestar-se a leituras divergentes, quando não contraditórias, em decorrência de ambiguidades constantes dos textos e da existência de pressupostos nunca explicitados (p. 29). Por exemplo, Polanyi parece hesitar entre a noção de que as tentativas primitivas de proteção social constituiriam episódios de resistência fútil face à inevitável ­marcha histórica rumo à transformação da sociedade numa economia de mercado plena e a afirmação – coincidente com a sua posição intelectual madura – de que tal desiderato (a economia de mercado autorregulada) era um projeto impossível ab initio, pelo que tais medidas de proteção seriam simultaneamente necessárias e benéficas (pp. 81 e ss.). Por outro lado, os autores demonstram, no capítulo 5, que Polanyi concedera demasiado aos seus adversários: Speenhamland, o sistema de complemento salarial dos trabalhadores rurais na Inglaterra do século XVIII, não levara à queda da produtividade e dos salários, nem muito menos à degradação moral dos assalariados. Este foi um mito sustentando pela ideologia malthusiana dos autores do Relatório da Comissão Real e dos seus entrevistados, membros do patronato e clérigos, mas que os factos empíricos infirmam (pp. 133-149). Na verdade, uma noção central que estes autores irão recuperar de Polanyi, é a da “permanente incrustação da economia”: os mercados estão inevitavelmente “incrustados”, rodeados e determinados por um conjunto de instituições, de normas legais e convenções sociais. É impossível optar por não regular, a partir de fora, os mercados, sob pena de a sociedade dissolver-se ou de, no mínimo, a economia de mercado deixar de ser funcional (pp. 93-95). Isto seria particularmente evidente no caso das mercadorias “fictícias”, isto é, a terra, o trabalho e a moeda. Estes bens não se comportam, nem devem ser tratados, como as demais mercadorias, ­porque não foram produzidas para serem vendidas no mercado. E, no entanto, a ideologia da economia de mercado auto-regulado sugere precisamente isso mesmo – a ficção irrealizável de as mercadorias fictícias serem tratadas e comportarem-se como reais mercadorias. Surge então aí o papel fundamental do Estado que vai criar e regular, artificialmente, estes mercados: sem direitos de propriedade sobre parcelas do solo, criação legal do Estado, não haveria mercado da terra e sem a regulação dos usos do solo e as infraestruturas públicas adjuvantes, o valor das propriedades e a saúde do mercado da terra poderia estar sujeito a flutuações insustentáveis; da mesma forma, sem políticas estatais mínimas (como políticas favoráveis à emigração ou imigração), seria impossível gerir os problemas de escassez ou excesso de mão-de-obra (pp. 32-33). O ideal do século XIX do mercado auto--regulado, um mercado emancipado da sociedade, nunca passou, portanto, de uma utopia irrealizável. Mesmo a destruição do sistema de Speenhamland e a reforma da “Poor law” não “desincrustou” o mercado laboral integralmente, antes o reinscrustou sob novos arranjos institucionais e normas, ainda que estas não se destinassem a proteger as classes mais vulneráveis, mas pretendessem antes aumentar as vantagens para as classes privilegiadas (p. 9). O mesmo é sugerido em relação à desregulação contemporânea do mercado financeiro que, na realidade, constituiu uma “re-regulação” através de novas normas que, em vez de protegerem o público e os pequenos investidores do setor financeiro, passaram a dar proteção ­estatal ao setor financeiro de modo a que este se pudesse lançar em práticas ­especulativas e empréstimos “predatórios” (ibid).

Outra das ideias centrais do livro, resgatada de Polanyi, é o “poder causal” das ideias, neste caso, o poder da utopia do mercado auto-regulado. Dizem estes autores que os mercados não estão apenas incrustados “política e socialmente” mas também ideologicamente (“ideationally embedded”) (p. 107). É claro que é através de medidas coercivas, leis, e instituições que se instituiu e institui diariamente a construção do “mercado livre”, mas essa construção é dirigida por ideias que governam as elites (e não só) e são elas que imprimem uma particular direção a essa construção (ibid). Quando as taxas de câmbio, de fixas, passaram a ser determinadas pelos mercados – deixando-as vulneráveis aos ataques especulativos – a partir de 1973, e se liberalizou os movimentos globais de capital, abandonando o regime de ­Bretton Woods (p. 17), voltou-se, de certa forma, a uma situação em tudo similar ao mundo que havia “colapsado” nos anos 20-30, o mundo do livre-cambismo associado ao padrão ouro e que Polanyi tanto criticara. Mas tal retorno deveu-se, em última análise, ao prévio retorno triunfante da utopia do mercado auto-regulado. Nesse mesmo sentido, o capítulo 6 compara as revoluções (punitivas e pró-mercado) nos sistemas de “welfare” que ocorreram, primeiro na Inglaterra, por alturas da reforma da “Poor Law” (1834), e, depois, muito mais recentemente, nos EUA, durante a presidência Clinton, com a lei de 1996 (PRWORA), notando as similitudes dos processos, que se devem ao retorno da utopia do mercado auto-regulado e à reciclagem do “naturalismo social” malthusiano, ao passo que o capítulo 7 busca contribuir para a explicação das divergências significativas entre Europa e EUA em matéria de regulação e limitação dos mercados nas respetivas economias, as quais se deveriam justamente à força relativa que a ideologia do fundamentalismo de mercado teria ganho num dos lados do atlântico por comparação com o outro.

Na leitura dos autores, o ideal utópico do mercado auto-regulado assenta em 3 pressupostos essenciais: (1) a ideia de que o poder reside exclusivamente no aparelho de Estado (p. 101); (2) a ideia de que, portanto, na esfera económica (no mercado) não existe poder propriamente (p. 105); (3) a ideia de que o poder político é sempre (e sobretudo) uma ameaça permanente à liberdade e ao comércio (p. 101). Daqui decorreria que, se no mercado não existe poder, expandir a esfera do “mercado livre” e reduzir a interferência do Estado, implicaria aumentar a esfera da liberdade humana, aumentando o espaço “livre de poder” onde cada um se poderia mover e realizar-se. Como a política é vista, regra geral, como aquela instância onde ocorrem desagradáveis conflitos de valores, que resultam em compromissos eticamente insatisfatórios entre grupos de interesse e a coação explícita dos recalcitrantes, a utopia do mercado auto-regulado é profundamente sedutora precisamente em razão dessa visão alternativa e mirífica em que o âmbito da política é reduzido – já que o mercado se encarregaria de satisfazer os interesses e sanar as divergências por via contratual e consensual. De certo modo, para os autores, a visão marxista da sociedade sem classes, em que o estado desapareceria paulatinamente, por inútil, padeceria do mesmo irrealismo contra o qual o realismo de Polanyi seria o melhor antídoto: o Estado, o poder, e a regulação serão sempre necessários na constituição de uma sociedade irremediavelmente complexa. Ignorar isto seria embarcar numa utopia cujos efeitos no longo prazo não poderiam deixar de ser distópicos. Associado ao fundamentalismo de mercado surge o “naturalismo social” (pp. 102-105), a mundividência segundo a qual a sociedade e a natureza são uma e a mesma coisa, um sistema auto-regulado, ao qual se aplicam inexoravelmente as leis da natureza. A esfera privada do mercado e a sociedade civil seriam fenómenos naturais, previsíveis e benfazejos às quais se oporiam as instituições políticas e o Estado, inerentemente perversas e não naturais: “arbitrary, coercive, hierarchical, and a continuing threat to the ‘system of natural liberty’” (p. 168). Querer desviar-se dessas regras da natureza só poderia engendrar desequilíbrios – a tese da perversidade de Hirschman (p. 103).

Isto vai desembocar, no capítulo 8, na acusação de que os social-democratas teriam perdido as suas convicções social-democratas (p. 223) e de que, dessa forma, não teriam sabido suster o avanço da doutrina do ­mercado-livre. No fundo, perderam a batalha ideológica e filosófica que Polanyi travara em 44 contra Hayek, não tendo para ­oferecer, como contraponto à visão dos ­fundamentalistas de mercado de um mundo sem política nem coerção, uma conceção adequada de liberdade humana, em que a ação estatal, longe de ser apenas destrutiva da autonomia e liberdade humanas, seria uma condição para a sua preservação e expansão, atendendo à “realidade da sociedade”, isto é, à omnipresença de riscos e poderes a que os homens estão sujeitos na esfera económica – e não apenas face ao Estado (pp. 228-234) – e à inevitabilidade da regulação e intervenção estatal para proteger a sociedade dos efeitos mais destrutivos do mercado. Terminam defendendo uma reincrustação democrática da economia, na esteira de Polanyi, que combine, numa síntese profícua, direitos socioeconómicos com as tradicionais liberdades negativas, realizando o antigo projeto de Roosevelt de acrescentar uma “second bill of rights” à primeira.

Esta é uma obra que bem merece a atenção dos cientistas sociais. Em primeiro lugar, pelo esforço bem-sucedido de interpretação e clarificação do pensamento de Karl Polanyi, incluindo as contradições e deficiências da sua teoria social. Em segundo, pela aplicação – com um interessante enfoque institucional e histórico – de uma versão reciclada da mesma a fenómenos contemporâneos. Finalmente, pela crítica bem fundamentada que constrói ao fundamentalismo de mercado e aos seus pressupostos ideológicos, nomeadamente a ideia da inevitabilidade económica e a miragem de uma sociedade onde a política e a coerção seriam minimizadas, que são recorrentemente esgrimidos para desarmar os críticos do neoliberalismo.

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