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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

AFONSO, Ana Isabel

Sendim. Planalto Mirandês. Valores em Mudança no Final do Século XX,

Lisboa, Edições Colibri, 2013, 266 pp.

ISBN 9789896893316

 

Xerardo Pereiro*

*Departamento de Economia, Sociologia e Gestão, Escola de Ciências Humanas e Sociais, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Edifício do Pólo II da ECHS, Qinta de Prados - 5000-801 Vila Real, Portugal. E-mail: txperez@utad.pt

 

Este é um livro escrito pela antropóloga da Universidade Nova de Lisboa, Ana Isabel Afonso, com base na sua tese de doutoramento, completada em 1997 sob a orientação dos professores José Manuel Nazareth e Raul Iturra, e que amadureceu com reflexividade longitudinal até à sua apresentação como livro, em 2013. Quem, como eu, já teve a oportunidade de ler a sua tese de doutoramento, após uma primeira análise acabamos por concluir a importância do tempo decorrido e da revisitação do terreno para estudar as mudanças, e o valor que possuem os livros em antropologia, que são como filhos intelectuais de uma génese e parto longos. Esta postura antropológica de defesa dos livros é contra-hegemónica face à sobre-valoração dos artigos e papers, e merece ser seguida e defendida, no meu ponto de vista1.

O livro sobre o qual nos debruçamos é uma espécie de auto-antropologia, no sentido em que a autora é uma transmontana com raízes criadas em Lisboa ou uma lisboeta com raízes em Trás-os--Montes, pois a sua família é natural de Sendim (Miranda do Douro), comunidade que ela estuda com a minúcia do olhar antropológico e com o microscópio da observação participante íntima. Esta multiplicidade e pluralidade identitária é, no meu entender, um traço marcante da biografia da antropóloga e da sua excelente obra, enquadrada numa genealogia de estudos antropológicos com trabalho de campo em Trás-os-Montes, liderados por Brian Juan O’Neill nos anos 1970 no Alto Trás-os-Montes (O’Neill, 2011). Mas, de um modo diferente ao seguido na obra de Brian, que ocultou inicialmente nas suas publicações o nome da comunidade estudada, por questões éticas e de proteção da privacidade dos estudados, nesta obra a autora opta por uma estratégia mais própria dos historiadores, ao desvelar o topónimo e o contexto. Este facto tem promovido uma apropriação afetiva e um acolhimento particular da sua obra na comunidade que estuda e sobre a qual cria um espelho reflexivo da mudança dos modos de viver nessa comunidade.

O objeto de estudo deste livro é a mudança social e a inovação nas relações sociais de 1944 a 1994, com uma revisitação posterior observada sob o prisma de uma antropologia da mudança. O fio condutor da análise é a interligação entre terra, casa e família, isto é, as estratégias de reprodução social numa comunidade rural do nordeste transmontano português, situada entre o rio Douro e o rio Angueira, e com traços culturais ibéricos transfronteiriços (língua mirandesa, contrabando…). A obra está estruturada da seguinte forma: uma introdução, 7 capítulos, um posfácio sobre a revisitação do terreno, bibliografia e anexos.

Já na introdução pergunta-se a autora se a terra será um fator preponderante de diferenciação social, questão a que responderá nos capítulos seguintes. O primeiro capítulo apresenta o contexto regional, Terras de Miranda, num diálogo frutífero entre antropologia e geografia humana e cultural. Aqui a autora questiona um dos clichés mais tópicos para explicar os modos de viver destas comunidades ibéricas, o do isolamento geográfico. De acordo com a autora o isolamento geográfico não é igual ao isolamento social, antes pelo contrário, o isolamento geográfico alavanca mais contactos entre próximos e entre aldeias, portanto há uma relatividade nas relações entre centro e periferia. Ainda mais, pelo facto de tratar-se de uma comunidade fronteiriça, as porosidades da fronteira luso-espanhola acentuam mais as interligações entre vizinhos e as conexões transnacionais.

O segundo capítulo aborda os grandes indicadores da mudança de aldeia a vila, um processo de transformação visto desde uma cartografia social das memórias da mudança (modernização, emigração, menorização da ocupação agrária, construção da barragem do Picote, eletrificação, substituição do centeio pelo trigo e da vaca mirandesa – de carne – pela taurina – de leite…). Os grupos domésticos desta comunidade em estudo são para a autora unidades de produção, consumo e coresidência, uma perspetiva algo diferente da mantida por autores como João de Pina-Cabral para as comunidades rurais minhotas (Pina-Cabral, 1989). E o seu sistema de valores estava ancorado, em meados do século XX, no valor dado à terra (ex. o ditado local “casa onde caibas, terra quanta vejas”).

O terceiro capítulo centra a sua atenção num motor e consequência de mudança social, a emigração, enquadrada de forma original na analogia entre “partir ou ficar”. Aqui a autora aponta chaves interpretativas de análise dos motivos pelos quais uns ficam e outros vão embora, o despovoamento e os retornos. Este capítulo, e também os seguintes, representam um grande contributo para a compreensão das mudanças nas estruturas sociais portuguesas de segunda metade do século XX. Face à hierarquia tradicional rural transmontana – proprietários, lavradores e jornaleiros, tão bem analisada por Brian O’Neill e outros autores – Ana Isabel Afonso mostra neste capítulo a organização social dos anos 1940, para no capítulo quarto abordar os agentes sociais diferenciados, as trajetórias biográficas, a pluriatividade e as mudanças sociais e culturais.

O capítulo quinto aborda a urbanização da aldeia, a conversão oficial em vila (ano 1990), e a nova estrutura social resultante de vários processos sociais que convergem, como a desvalorização do trabalho manual, a valorização da ­educação como via de mobilidade social, a quebra do número de ­agricultores, a diluição da hierarquia camponesa ­tradicional, a emigração por falta de terras, as transferências de propriedade dos ricos para os pobres, o retorno de divisas da emigração, a adoção de patrões de vida urbanos e de mais conforto, etc. A nova estrutura social vai ser protagonizada por novos tipos sociais: “os filhos da terra ausentes”, “os doutores”, “os regressados”, “os aldeãos”, “os das vacas” e “os ciganos”. Da antiga economia assente na terra, que levava, por exemplo, a que o critério principal de escolha matrimonial fosse a propriedade, passamos a uma economia e reprodução social mais multidimensional, assente na educação, na emigração, na construção civil, no comércio e no artesanato. Agora, ao valor da terra sobrepõe-se o valor da casa-vivenda e outros bens simbólicos de consumo, coexistindo elementos tradicionais e modernos neste cronotopos comunitário que se reinventa e ressignifica.

O capítulo sexto analisa a relação entre tempo de trabalho e tempo de festa como construtores de sociabilidades comunitárias, já em dois tempos (verão/inverno). A festa já não é vista como uma forma de afirmação da identidade comunitária e sim como um espetáculo também para os de fora, para ver e ser visto. Face a uma imagem de um mundo rural semideserto e semiabandonado, a autora apresenta aqui um retrato do grande dinamismo desta vila que eu classificaria como rurbana (Pereiro, 2005), isto é, resultado de uma mestiçagem entre universos culturais rurais e urbanos.

O capítulo sétimo fecha a obra com um conjunto de conclusões que sumariam o processo e os motores de mudança nesta comunidade glolocal. Sublinha nestas conclusões o afrouxamento da gerontocracia (o poder dos mais velhos) nas relações familiares, o alargamento das trocas matrimoniais e a dificuldade de fixar as mulheres na vila, ao emigrarem e emanciparem-se em novos circuitos sociais.

Num breve posfácio a autora debruça--se reflexivamente sobre a sua revisitação de Sendim, já no século XXI, num tom de compreensão íntima e suficientemente distante igualmente, o que sem dúvida outorga a esta investigação longitudinal uma profundidade maiúscula. A autora não apenas descreve a mudança em termos longitudinais-temporais, como explica a mudança em termos estruturais e agenciais, e interpreta-a em diálogo antropológico com os seus agentes sociais, que criam as suas próprias teorias nativas. Além do mais, também vive experiencialmente a mudança ao revisitar um terreno familiar que leva para Lisboa desde há muitas décadas. Esta sedimentação do saber antropológico transparece nesta obra sobre a mudança axiológica do ethos, do pathos e do nicho ecológico da vila de Sendim. No posfácio destaca três fatores: a perda de juventude, os fatores exógenos de mudança e a revalorização do local.

Relativamente ao primeiro aspeto, a autora destaca a contínua perda de população (8%) de 1990 até 2011, o que se faz sentir na camada mais jovem da população. Os jovens emigram para as cidades nacionais e estrangeiras para trabalhar e estudar, regressando a Sendim só para férias. A consequência é a falta de empreendedorismo e a divisão sazonal da vila em dois tempos (verão/inverno). Sendim, portanto, é uma metáfora de uma comunidade transnacional multiterritorial. No segundo elemento em análise sublinha a atração da vila para os neo-rurais e o novo dinamismo que estes trazem para a comunidade. Estes recém-chegados são geradores de eventos e reinventores de tradições, com redes e influências além-fronteiras da comunidade, o que a tornam mais translocal ainda. Um exemplo disto último é o Festival Intercéltico de Sendim, que cria esperanças de reprodução social e sonhos de verão para uma comunidade algo fragilizada. O terceiro e último aspeto foca um ponto que outros autores têm apontado com insistência noutros contextos (Roseman, 2008), a revalorização do local, associada à diferenciação territorial (ex. reconhecimento da língua mirandesa) e aos seus desafios (ex. os jovens não se identificam com os campos a cultivar, que permanecem semiabandonados).

Em jeito de sumário, este magnífico livro é um exercício de construção das memórias próximas e íntimas da aldeia-vila de Sendim, abordando um problema humano tão complexo como o da relação entre parentesco, comunidade e reprodução social. Com uma boa ilustração fotográfica, desenhos de Manuel João Ramos e uns adequados mapas de leitura de um território ibérico em mudança, a leitura do texto fornece uma nova interpretação das mudanças socioculturais do interior norte de Portugal e um retrato exaustivo e profundamente reflexivo das novas estruturas sociais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

O’NEILL, B.J. (2011 [1984]), Proprietários, Lavradores e Jornaleiras. Desigualdade Social numa Aldeia Transmontana. 1870-1978, Porto, Edições Afrontamento.         [ Links ]

PEREIRO, X. (2005), Galegos de vila. Antropoloxía dun espazo rurbano, ­Santiago de Compostela, Sotelo Blanco.         [ Links ]

PINA-CABRAL, J. (1989), Filhos de Adão, Filhas de Eva. A Visão do Mundo Campo­nesa no Alto Minho, Lisboa, Publicações Dom Quixote.         [ Links ]

ROSEMAN, S.(2008), O Santiaguiño de Carreira. O Rexurdimento dunha Base Rural no Concello de Zas, A Coruña, Baía Edicións.         [ Links ]

 

NOTA

1 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projeto UID/SOC/04011/2013.

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