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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

CLEMINSON, Richard

Catholicism, Race and Empire. Eugenics in Portugal, 1900-1950,

Budapest, CEU Press, 2014, 350 pp.

ISBN 9789633860281

 

Luís Timóteo Ferreira

*Centro0 de Estudos Interdisciplinares so Século XX - CEIS20, Universidade de Coimbra, Rua Filipe Simões, n.º 33 - 3000-186 Coimbra, Portugal. E-mail: timoteo.ferreira@live.madeira-edu.pt

 

Richard Cleminson (Universidade de Leeds) publicou nos últimos 15 anos vários trabalhos que revelam o seu interesse pelos discursos sobre a sexualidade e as suas relações com as ciências da vida e com a medicina. Nos seus primeiros trabalhos, a ligação entre a identidade sexual, a medicina e o poder estiveram centrados em Espanha e no movimento anarquista da Catalunha. Desta vez dedicou-se ao aparecimento dos discursos eugénicos em Portugal, após ter iniciado o projeto com a publicação de dois artigos (Cleminson, 2011 e 2012). Esta obra é, sem dúvida, o mais completo estudo sobre o eugenismo em Portugal até ao presente e só por este facto deveria merecer a atenção da comunidade científica.

Cleminson começa por rever a historiografia internacional e nacional sobre o tema – da qual fornece uma extensa e atualizada bibliografia – e as questões teóricas sobre a eugenia que se repercutem na historiografia portuguesa (capítulo I). Daí passa para a análise da receção dos discursos eugénicos em Portugal durante o primeiro quartel do século XX (Capítulo II), discutindo sobretudo as posições de Miguel Bombarda e Egas Moniz. A seguir (Capítulo III), partindo de 1927, data da conhecida obra de Mendes ­Correia, como marco do período de consolidação do eugenismo entre nós, sustenta que a fraca institucionalização das práticas eugénicas (p. 64) está relacionada com as características do regime e com a influência da igreja católica. Destaca o papel da Liga Portuguesa de Profilaxia Social como promotora não estatal e não coercitiva das ideias e práticas eugénicas porque guiadas “by voluntary measures, hygienic discourse and the mediation of the Catholic family doctor” (p. 87). O capítulo IV, o maior e o mais extensivamente documentado, trata do apogeu e declínio da institucionalização da eugenia em Portugal, preparada desde o final da década de 1920, consubstanciada na constituição da Sociedade Portuguesa de Estudos Eugénicos, em 1937, e nas suas relações com a academia de Coimbra, não só a principal com o Departamento de Antropologia, mas também a que se traduz na presença do discurso eugénico nas instituições criadas e promovidas pelo Estado Novo (Obra das Mães pela Educação Nacional, Mocidade Portuguesa, Instituto Nacional de Educação Física, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), nas ideias de puericultura, economia doméstica, educação e higiene privada. Relaciona ainda o pensamento católico internacional sobre a eugenia com os debates entre os católicos e as suas resistências às ideias eugénicas, problematiza a noção de eugenia latina na historiografia e na sua relação com um suposto modelo católico de eugenia. O capítulo V trata das incidências do discurso eugénico nos temas da miscigenação, da mestiçagem e da conservação ou degeneração da suposta “raça” portuguesa no âmbito do império colonial português. O capítulo seguinte retoma e clarifica muitas das conclusões que vinham sendo já avançadas ao longo do livro.

Um argumento central avançado pelo autor logo nas primeiras páginas é o de que a historiografia contemporânea, ao debruçar-se sobre as especificidades nacionais do eugenismo, e ao perspectivá- -las em função do carácter transversal e transnacional do fenómeno, tem vindo a abandonar o modelo explicativo centro-periferia – “an irreversible shift in terms of the historiography of the field” (p. 14) –, ou seja, o do entendimento da difusão e da receção dos discursos eugénicos a partir da sua aproximação ou afastamento em relação a uma matriz ideológico-científica de eugenia que terá começado com Galton e atingido a consumação com o nacional-socialismo germânico. Neste sentido, e no contexto específico de Portugal, que emerge como um verdadeiro estudo de caso, os elementos preponderantes que moldaram os discursos e as práticas eugénicas teriam sido o catolicismo, um certo modelo de Estado autoritário e a sua dimensão colonial. O equacionar dos problemas relativos à explicação das dinâmicas de receção das ideias eugenistas e da institucionalização de práticas eugénicas, direta ou indiretamente patrocinadas pelo Estado, é um dos principais objetivos do autor.

Cleminson critica com frontalidade e, talvez, com excesso, certos pressupostos que enformam a historiografia portuguesa, denunciando-a como presa de uma conceção acerca da realidade dos objetos históricos que os identifica mesmo antes do aparecimento do léxico que os significa. “To talk of eugenics avant la lettre, therefore, makes no sense; it constitutes an anachronism and obscures comprehension of the eventual reception of eugenics in ­scientific and social milieus.” (p. 13). A crítica inclui Irene Pimentel (1998), Ana Leonor Pereira (2001), o antropólogo Miguel Vale de Almeida (2002) e Cláudia Ninhos (2013). Cleminson identifica nos textos destes autores sobre o tema da eugenia, para além da dimensão analítica avant la lettre, uma análise retrospetiva reveladora de um teleologismo que avalia as concepções eugénicas sempre em relação com o seu ponto de chegada, o seu desenvolvimento extremo, ou seja, o programa nazista de higiene racial. Tal perspetiva é, para ele, uma distorção de natureza historiográfica (p. 11). Na sua ótica, uma análise que traça a eugenia retrospetivamente comporta perigos ou armadilhas e Cleminson admoesta os historiadores, dizendo que eles devem resistir a esta forma de encarar o desenvolvimento de um objeto histórico (p. 17). A principal crítica incide sobre o capítulo da obra de Ana Leonor Pereira, que constitui, em sua opinião, uma exploração muito mais extensiva do que o artigo de Pimentel, ainda que nele divise alguns dos mesmos constrangimentos já existentes neste. Cleminson argumenta que a abordagem que Pereira faz das preocupações acerca da degenerescência, da consanguinidade, das propostas legislativas de proibição do casamento e mesmo da esterilização forçada (pp. 17-18) faz com que estas sejam retrospetivamente classificadas como eugenia negativa.

O suposto anacronismo no tratamento do eugenismo, correlato de uma perspetiva teleológica que vê no eugenismo nazi o ponto de chegada dos outros ­eugenismos, ou a bitola pela qual estes serão medidos e avaliados em função daquele, coloca problemas relevantes que devem ser equacionados. O capítulo de Pereira sobre a eugenia cobre um período de tempo distinto do enquadramento da obra de Cleminson, como também distinto dos textos de Pimentel, Ninhos e Almeida. Aliás, é empobrecedor para o debate historiográfico ou antropológico que nenhum destes três últimos autores citem Pereira e que nenhum dos textos em questão se possam comparar àquele em extensão e profundidade. Se a historiografia pode e deve discutir a tese da “subordinação do espírito eugenista ao campo do higienismo” (Pereira, 2001, p. 483), como o fez Patrícia Ferraz de Matos (2010), é fundamental que se reconheça a importância de estudos que esclareçam as genealogias de ideias e práticas, pois noções como degenerescência e hereditariedade não possuem um sentido claro, tal a ubiquidade como foram usadas, inclusive temporal, e, sobretudo, muito para além ou aquém da conceptualização rigorosamente científica.

Se os supostos anacronismo e teleologismo criticados por Cleminson remetem para questões epistémicas entre o presentismo e o historicismo (p. 11), a sua própria posição epistemológica não está acima da crítica: o seu sócio-construcionismo não essencialista (pp. 10-12) pode, por um lado, ser “historicizado”, ou seja, ser determinado historicamente; e, por outro, pode ser posicionado no debate epistemológico entre realistas e anti-realistas.

Cleminson afirma o contexto semântico específico da eugenia (p. 13), mas não parece demonstrar inequivocamente a incomensurabilidade entre higienismo e eugenismo que uma teoria da hereditariedade pós-mendeliana ou pós-weisman­niana possibilitaria. A própria questão semântica é fulcral: que redes de significados e práticas podem constituir, por exemplo, “quasi eugenic understandings” (p. 244) num contexto de (ainda) não utilização do léxico? O que define para Cleminson os limites entre o eugenismo e o higienismo? Num esboço de definição, a eugenia surge dependente de uma teoria da hereditariedade, de uma visão do declínio físico, ­intelectual e moral da população, aliada a uma visão da evolução biológica, de técnicas positivas e negativas de melhoramento humano, em suma, uma biopolítica conduzida pelo Estado (p. 33). No entanto, antes, afirmara uma quase impossibilidade de definição (p. 9) e o entendimento de um objeto que parece pairar, discursivamente hipostasiada, num “world of meaningful interconnections” (p. 10). A matriz eclética e neo-lamarckista das ideias eugénicas em Portugal, que afirma ser a dominante, não revelaria ainda a subordinação do eugenismo ao higienismo? É recorrente na obra de ­Cleminson uma caracterização das ideias eugenistas nacionais que se revela pouco distinta da tradição higienista (p. 12,
p. 6, pp. 47-48, p. 64, p. 121, p. 244, p. 253). É evidente a sobreposição de eugenismo e higienismo num modelo católico e latino de eugenia que é menos radicado numa teoria da hereditariedade e que promove a influência do meio (pp. 138-145). Acaba, assim, por afirmar aquilo que já o foi por outros: a força de conceções eugénicas muito influenciadas pelo neo-lamarckismo, pelas influências do meio e pela preponderância das práticas de higiene pública, privada e social. Comparando as suas afirmações (p. 33) com as de Pereira (2001, pp. 483-484 e pp. 550-552), acerca das influências do darwinismo ou do lamarckismo no pensamento eugénico português, pode-se avaliar o exagero das suas críticas, bem como algum défice no refutar da influência do darwinismo na receção das ideias eugénicas (p. 17).

Sendo, de facto, a primeira grande obra de fôlego sobre a eugenia em ­Portugal, e por si só digna de apreço, é também certo que a reação excessiva aos autores nacionais não contribui para o diálogo académico, diálogo esse que, diga-se em abono da verdade, também parecia não existir, dada a falta de interrelação entre os estudos sobre o tema.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALMEIDA, M.V. de (2002), “Longing for oneself: hybridism and miscegenation in colonial and postcolonial Portugal”. Etnográfica, 1, pp. 181-200.         [ Links ]

CLEMINSON, R. (2011), “Eugenics in Portugal, 1900–1950: setting a research agenda”. East Central Europe, 38 (1), pp. 133-154.         [ Links ]

CLEMINSON, R., MIRANDA, L.S. (2012), “Traces of eugenic thought in the work of Egas Moniz”. Portuguese Studies, 28 (1), pp. 63-76.         [ Links ]

MATOS, P.F. de (2010), “Aperfeiçoar a ‘raça’, salvar a nação: eugenia, teorias nacionalistas e situação colonial em ­Portugal”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 50, pp. 89-111.         [ Links ]

NINHOS, C. (2013), “A discussão em torno da eugenia em Portugal.” In I.F. Pimentel e C. Ninhos, Salazar, Portugal e o Holocausto, Lisboa, Temas e Debates, 2013, pp. 209-242.

PEREIRA, A.L. (2001), Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. Engenharia Social, Coimbra, Almedina.         [ Links ]

PIMENTEL, I. (1998), “O aperfeiçoamento da raça. A eugenia na primeira metade do século XX”. História da Historiografia, 3, pp. 18-27.         [ Links ]

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