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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

PEREIRA, Cláudia

Vidas Partidas. Enfermeiros Portugueses no Estrangeiro,

Lisboa, Lusodidacta, 2015, 194 pp.

ISBN 9789898075567

 

Rui Machado Gomes*

*Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Praça Dom Dinis, 3020 Coimbra, Portugal. E-mails: ramgomes@gmail.com

 

Quando, no final do século, se quiser fazer a história dos anos de uma das grandes recessões do século XXI em Portugal, a questão da emigração será certamente um dos aspetos em análise. Não sabemos o que dirão os historiadores na sua construção retrospetiva, mas podemos presumir que continuarão a usar alguns instrumentos e fontes do ofício dos historiadores contemporâneos. E dessas fontes constam os grandes números, as estatísticas, e os testemunhos dos atores que viveram os acontecimentos. É desse material que é feito o livro Vidas Partidas. Enfermeiros Portugueses no Estrangeiro, de Cláudia Pereira.

Cláudia Pereira apresenta-nos uma obra que constará certamente da memória de um tempo de estranhamentos a que a autora reagiu num primeiro momento com espanto. Com a vivacidade própria do ofício de antropóloga, a autora relata-nos como foi adequando o objeto de estudo inicial – os emigrantes qualificados em Londres – a um grupo simultaneamente mais pequeno – os enfermeiros – , mas num contexto geográfico mais amplo, porque, como explica, se deparou com uma emigração multinacional e multicontinental que decidiu estudar.

Os grandes números ­apresentados pela autora são impressivos. Os ­enfermeiros que emigraram para o Reino Unido – destino com o maior fluxo e com a maior oferta de recrutamento – são jovens, solteiros, recém-licenciados e não têm intenção de regressar antes da reforma. Dos muitos gráficos que vale a pena consultar e pôr em diálogo com os testemunhos escritos e com as entrevistas, respigamos alguns dados: mais de 4500 enfermeiros emigraram nos anos 2013 e 2014 para destinos europeus coincidentes com os da emigração global; 77% têm menos de 30 anos e a grande maioria são solteiros; predominam os recém-licenciados (73% licenciaram-se depois de 2009); o rendimento médio dos enfermeiros mais do que duplica no país de destino comparado com o obtido em Portugal; mais de metade dos que se encontram no Reino Unido têm a intenção definitiva de não regressar a Portugal ou não pretendem fazê-lo antes da reforma; uma grande maioria dos enfermeiros emigrados no Reino Unido foram recrutados através de agências de emprego.

As vozes dos atores deste recente movimento emigratório também são usadas através de entrevistas e depoimentos e dão-nos informações vividas muito importantes para pensar a emigração qualificada deste e de outros grupos profissionais. A estratégia seguida pela autora para interpretar todos estes dados consistiu no diálogo com especialistas da área da sociologia das migrações, da economia da saúde e da sociologia da saúde, diálogo que tornou mais legíveis os dados, embora se verifique uma menor atenção à interpretação do material das entrevistas e testemunhos. E o livro teria tudo a ganhar com a proposta de linhas interpretativas que articulassem os percursos individuais com o quadro mais geral em que decorrem.

O livro apresenta muitas pistas para a compreensão do surto de emigração dos enfermeiros portugueses nos últimos anos. Mas ficam muitas questões por responder que ocuparão os investigadores da área das migrações nos próximos anos. Fica aqui um primeiro exercício para esse diálogo cruzado.

No capítulo 4, da responsabilidade de Pedro Pita Barros e de Ana Cláudia Moura, são enunciados vários fatores de emigração agrupados em torno de três questões principais: quais os motivos económicos que motivam esta emigração? Qual o impacto macroeconómico associado à emigração desta força de ­trabalho qualificado? Qual o retorno económico e social para o país da formação de enfermeiros? Visto que estas questões não obtêm respostas totalmente coincidentes com as que eu daria deixo algumas pistas para o debate.

Embora o recrutamento de enfermeiros envolva, na maior parte dos casos, agências de recrutamento que fazem uma intermediação também económica, as entrevistas e os testemunhos ­escritos são muito claros quando descrevem as vantagens individuais da emigração. Os diversos fatores que motivam a emigração confirmam a existência de ­sincronia entre os fatores de rejeição da situação de falta de emprego, precariedade e baixos salários no país de origem e de atração pelos salários mais elevados, conteúdos de trabalho adequados à forma­ção, estímulos ao desenvolvimento da carreira e realização profissional nos países de acolhimento. Ou seja, do ponto de vista da relação custo-benefícios individuais, a decisão de emigrar é racional e tida como útil em face dos riscos que comporta (afastamento familiar, etc). Neste particular parece haver concordância com a análise dos autores deste capítulo.

E quais são os impactos macroeconómicos e macrossociais no país? Dizem os autores que as perdas do investimento em formação podem ser compensadas parcialmente pelo envio de remessas destes emigrantes e/ou pelos acrescentos de produtividade obtidos num eventual retorno depois de alcançadas outras experiências e competências que acrescentem valor à formação inicial. Estes argumentos são sustentáveis no plano teórico, mas apresentam evidentes ­dificuldades de demonstração empírica no caso em apreço. Desde logo porque não existe qualquer evidência sobre o volume de remessas, mas também porque menos de metade dos inquiridos no Reino Unido declara a intenção de regressar e ainda assim sem que saibamos em que período da vida o pretendem fazer. Estes resultados apresentam a mesma tendência de um outro estudo sobre a emigração portuguesa qualificada que coordenei1, segundo o qual o regresso transitório a Portugal apenas é considerado por 42,9% dos inquiridos e a transição pendular ou o regresso a Portugal durante o período de seis anos considerado no questionário abrange menos de 10% da amostra inquirida. Para já nada nos indica que estejamos na presença de um movimento típico da emigração transitória.

Para além destas evidências empíricas que carecem de maior verificação de estudos de natureza longitudinal que venham a confirmar se estamos na presença de fenómenos de emigração definitiva, para toda a vida ou, ao menos, para toda a vida ativa, cabe ainda discutir o problema conceptual sobre o modelo de sociedade que se pretende construir. Com efeito, a apresentação das remessas como uma forma de compensação parece assentar num modelo económico típico de outras épocas do “atraso português”, em que Portugal trocava a sua força de trabalho, bastante menos qualificada na emigração dominante até aos anos 60, pelo envio de remessas que, desse modo, atenuavam as incapacidades endógenas de desenvolvimento.

Não desconhecemos que a mobilidade internacional faz parte da compressão do espaço-tempo que as sociedades contemporâneas vivem. Neste contexto há países que fazem circular o seu capital humano de forma sistemática sem que percam valor. É o caso da mobilidade dos cientistas de muitos países centrais que circulam por países periféricos e semiperiféricos. Mas essa mobilidade é transitória ou pendular. Se observarmos o processo emigratório do lado da globalização verificamos que existem grandes assimetrias nas trocas de ­recursos humanos. Do mesmo modo que na globalização económica e financeira, existem também ganhadores e perdedores na globalização do capital humano. E o retrato que nos é dado de Portugal neste trabalho de Cláudia Pereira é o de um país que constitui uma reserva para as necessidades de enfermeiros especializados que outros países europeus centrais não têm e não formam em número suficiente. Facto, aliás, bem observado por Tiago Correia, que afirma na entrevista que encerra o livro: “Aquilo que nós discutimos da atividade económica, o modelo económico português ou do Sul da Europa serve para quem? Eu direi a mesma coisa do sistema de ensino: é muito mais barato à Alemanha contratar enfermeiros portugueses muito bem formados…) do que reformar o seu próprio sistema de ensino”.

A emigração qualificada parece estar neste entre-dois: por um lado, a ­globalização perdedora e, por outro, os ­percursos biográficos ganhadores. Neste contexto, devo sublinhar que uma parte importante dos testemunhos revela uma consciência muito crua desta realidade. Como diz Cláudia Pereira na sua conclusão: “quase todos os enfermeiros que decidiram sair não o fizeram por vontade de mudar para outro país, mas como escape e solução para a falta de emprego e as condições precárias dos enfermeiros no país. Sentem-se amargurados por as suas capacidades não serem aproveitadas, quando os indicadores internacionais mostram as consequências de um número diminuto de enfermeiros por habitante”.

Acompanhando a autora, prolongo-a numa reflexão final: a mobilidade e a emigração de recursos humanos qualificados tenderá a alargar-se e a tornar--se num fenómeno estrutural por força dos fluxos económicos e financeiros decorrentes das trocas desiguais entre países centrais, semiperiféricos e periféricos. Os fluxos emigratórios qualificados parecem seguir a mesma geografia da restante emigração, com um saldo negativo altamente desfavorável para Portugal. No entanto, os investimentos em educação e as políticas educativas continuam a ser nacionais. Assim sendo, os custos nacionais tendem a ser transferidos para os países centrais a coberto da liberdade de circulação do capital humano, produzindo-se uma circulação assimétrica de cérebros. A questão que se colocará no futuro de modo a assegurar a educação como um bem comum global a que todos devem ter direito independentemente do país ou da região do mundo em que exercerão a sua atividade profissional, é a de saber se não devem existir mecanismos de financiamento globais e regionais que complementem e compensem as despesas públicas nacionais na formação de recursos humanos.

 

NOTA

1 V. metodologia e principais resultados em http://www.bradramo.pt.

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