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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

SÁ, Tiago Moreira de

História das Relações Portugal-EUA (1776-2015),

Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2016, 645 pp.

ISBN 9789722059374

 

David Castaño*

*IPRI-UNL, Rua D. Estefânia, 195 - 5.º Dto. - 1000-155 Lisboa, Portugal. E-mail: davidmfcastano@hotmal.com.

 

Na sequência de vários estudos dedicados à ação dos Estados Unidos na transição democrática portuguesa e no processo de descolonização iniciado após a queda do Estado Novo, entre os quais se destacam os livros Os Estados Unidos da América e a Democracia Portuguesa (2010) e Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola (2011), Tiago Moreira de Sá, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de ­Lisboa e investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, abraçou um desafio maior que o fez recuar até ao ano em que as 13 colónias norte-americanas declararam a independência da Grã-Bretanha, para analisar as relações luso-americanas desde essa data até a atualidade. Desse projeto de investigação, financiado pela Fundação Luso-Americana para o ­Desenvolvimento, resultou este livro que tem como fio condutor as diversas fases que marcam o relacionamento dos dois continentes que são separados pelo Atlântico norte, e no qual se procura identificar as ocasiões em que o relacionamento bilateral entre Portugal e Estados Unidos se integra ou afasta desse contexto mais abrangente.

Trata-se de um programa ambicioso que abrange praticamente 24 décadas, atravessadas por profundas mudanças, quer ao nível interno dos dois países, quer no sistema internacional, que por sua vez foi profundamente afetado pela progressiva afirmação dos Estados Unidos desde a independência até à unipolaridade do pós-guerra fria.

Perante a vastidão do objeto de estudo, Tiago Moreira de Sá adotou uma feliz estratégia que permite que o livro se ­desdobre em dois. É que no início de cada um dos 12 capítulos que o constituem, é oferecida ao leitor uma visão conhecedora, atualizada e didática do contexto internacional em que se ­inserem os momentos e acontecimentos que, na opinião do autor, marcam as relações luso-americanas. Estes enquadramentos constituem interessantes sínteses da história internacional, desde as revoluções americana e francesa até aos nossos dias, e podem ser lidas autonomamente. É um dos livros dentro do livro. O único senão é que por vezes, no decurso da leitura, esta atenção dada à contextualização e, por outro lado, a descrição exaustiva de alguns momentos da relação entre os dois países, acaba por relegar para um plano secundário o objeto principal do livro que, apesar de claramente indicado na introdução, se dilui nas suas mais de 600 páginas e apenas é retomado com clareza na conclusão, onde se afirma que na maior parte do período em questão as relações entre os dois países se “enquadraram dentro da dinâmica dos ciclos de separação, reencontro e tentativa de unidade atlântica” salvo as exceções que confirmam esta regra, ou seja, os períodos em que Portugal se antecipou ou, pelo contrário, se atrasou relativamente às grandes tendências das relações transatlânticas.

Para chegar a esta conclusão, além das já referidas sínteses contextualizadoras, Moreira de Sá optou por retratar o relacionamento entre portugueses e norte-americanos a partir de momentos e episódios marcantes na vida dos dois países. É o segundo livro dentro do livro. Não se trata pois de um filme, contínuo, que analisa de modo tradicional, por ordem cronológica, as relações diplomáticas bilaterais no quadro da política externa de cada um dos países em questão, mas um conjunto de retratos que não foram, no entanto, capturados todos do mesmo modo. É que os primeiros capítulos, que vão da independência dos EUA até ao início do século XX, alicerçam-se em parte no trabalho pioneiro de José Calvet de Magalhães, dedicado ao estudo da História das Relações Diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos (1776-1911), o período do Estado Novo estriba-se nos estudos e investigações de António José Telo e de Luís Nuno Rodrigues, sendo o capítulo 11 fruto, essencialmente, da pesquisa e recolha de fontes primárias levada a cabo pelo próprio autor. Apesar destas diferenças, Moreira de Sá revela, ao longo de todo a obra, grande mestria na conjugação e procura de equilíbrio entre fontes primárias e secundárias, sendo notório o esforço em dar voz tanto aos vários autores que têm estudado as relações luso--americanas, a história internacional e mesmo as histórias domésticas dos dois países, como à documentação diplomática norte-americana e portuguesa produzida nos últimos séculos, evitando ao mesmo tempo cair na tentação de desenvolver mais detalhadamente o período que conhece em maior profundidade e do qual estamos mais próximos. Deste esforço resulta um livro que vem preencher uma lacuna na história das relações entre os dois países e que se por um lado recupera o que se tem escrito sobre esta questão, por outro lado é um importante contributo para melhor compreendermos o presente e perspetivarmos um futuro que, como sempre, se afigura incerto nas suas múltiplas variáveis e opções.

No fundo, o livro ilustra a história contemporânea através do relacionamento de dois países que se situam não apenas em lados opostos do Atlântico, mas que também se encontravam, na maior parte do tempo, separados política e ideologicamente. Este é também, ou fundamentalmente, um retrato de decadência e ascensão e de um relacionamento que tendo começado com algum equilíbrio entre as partes ficaria marcado por uma progressiva desproporcionalidade.

É um retrato da decadência de uma monarquia imperial que assiste com natural receio à revolta queabala fortemente a sua grande aliada, que se bate pela sobrevivência e que ensaia um movimento de antecipação que, se bem-sucedido, poderia ter tido importantes consequências ao nível global. A tentativa de transformação de uma colónia em cabeçadeum império constitui uma extraordinária originalidade eéoúltimomomento em que Portugal e Estados Unidos se relacionam, apesar das já notórias diferenças, no mesmo patamar. Caso tivesse vingado, o Reino Unido de ­Portugal, Brasil e Algarves representaria uma séria ameaça à doutrina Monroe, ainda em fase embrionária. Sucede que este projeto constituía também uma ameaça aos interesses da Grã-Bretanha e da Espanha. Neste campo, velho e novo mundo partilhavam a mesma visão. Este é, porventura, o episódio que mereceria maior desenvolvimento. É que no livro se verifica uma tendência para aceitar um certo determinismo histórico que deveria ser refreado, notando-se uma propensão para analisar e descrever a fulgurante ascensão dos Estados Unidos como algo de inevitável. Quer o processo de independência, quer mais tarde a guerra civil, contêm vários momentos que revelamque a história poderia ter seguido outro curso. Hoje, aoolharmos para osúltimos 250 anos vemos o percurso invulgar de uma colónia que consegue a independência, que promove asua própria expansãoterritorial, que afasta outras potências coloniais europeiasdas suas imediações e que apesar da constante propensão para o isolacionismo se afirmou como grande potência à escala global. Sucede que este trajeto não estava destinado ao sucesso. Por outro lado, é natural que primeiro a monarquia, depois a República, e finalmente o Estado Novo, todos eles regimes empenhadosna manutenção das colónias, colocassem reservas face a uma excessiva aproximação aos Estados Unidos.

Ao lermos o livro ficamos com a ideia de que o autor defende que se Portugal tivesse conseguido estabelecer mais cedo um relacionamento mais próximo com os Estados Unidos poderia ter colhido os frutos e beneficiado dessa antecipação. Por exemplo, a determinada altura podemos ler: “Tal como já tinha acontecido várias vezes durante a monarquia, os líderes republicanos também não perceberam o potencial estabelecimento de fortes relações bilaterais com os Estados Unidos utilizando para o efeito, os Açores, resistindo às tentações de Washington” (p. 333). Talvez sim, talvez não. O que hoje é visto como uma oportunidade perdida, na altura era visto por muitos como uma ameaça. No decorrer da Primeira Guerra Mundial, uma vez garantida a concordância britânica, Lisboa acabou por aceitar o estabelecimento de uma base naval norte-americana em Ponta Delgada que veio a ser desmantelada um ano após o final do conflito. Moreira de Sá conclui que esse desfecho invalidou mais uma hipótese de criar “uma relação bilateral relevante entre Portugal e os Estados Unidos” (p. 343), não dando o mesmo relevo a outro aspeto que tinha referido na página anterior. É que o comandante dessa base tinha fomentado as tendências autonomistas existentes no arquipélago. Um maior interesse dos EUA nos Açores não teria sido prejudicial para as relações luso-americanas na medida em que, se levado ao extremo, esse interesse poderia implicar o fim dos laços do arquipélago com Portugal? Porque é que é excluída uma ideia que esteve sempre presente nas cabeças de várias gerações de responsáveis políticos portugueses, que, com alguma razão, dado os vários casos relatados no livro, temiam que um grande interesse dos EUA pelos Açores poderia simplesmente significar a sua perda?

A questão da independência dos ­Açores voltaria a emergir durante o período revolucionário que se seguiu ao golpe militar de 25 de Abril. No entanto, ainda não é desta vez que ficamos a conhecer o envolvimento dos Estados Unidos com os independentistas açorianos. Talvez um dia, quando for possível aceder completamente aos arquivos norte-americanos, Tiago Moreira de Sá nos conte essa história.

Na natureza existe um fenómeno conhecido por simbiose. Trata-se de uma associação entre dois indivíduos diferentes na qual pelo menos um deles obtém vantagens. Os biólogos identificaram três tipos de relações simbióticas: mutualismo; comensalismo; parasitismo. No primeiro, ambos os organismos beneficiam dessa associação, no segundo caso, um dos organismos retira benefícios e o outro não é prejudicado nem beneficiado pela associação e finalmente, no terceiro tipo um dos organismos é beneficiado mas o outro é prejudicado. Nas relações entre Estados ligados por alianças políticas e militares é natural que as suas relações se assemelhem ao mutualismo. No entanto, as últimas décadas das relações aqui retratadas fazem lembrar o comensalismo. O exemplo típico desta associação é a relação entre o tubarão e a rémora, um peixe que possui uma ­barbatana transformada em ventosa que lhe garante contacto direto com esse grande predador que, além de fornecer proteção, oferece também alimento. A perda de importância geoestratégica dos Açores e o futuro dos laços transatlânticos ditarão a evolução das relações entre estes dois países. Apesar do otimismo manifestado por Moreira de Sá, o cenário não é animador.

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