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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

CUNHA, Manuela Ivone (org.)

Do Crime e do Castigo. Temas e Debates Contemporâneos,

Lisboa, Editora Mundos Sociais, 2015, 200 pp.

ISBN 9789898536471

 

Miguel Chaves*

*Universidade Nova de Lisboa, FCSH, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – CICS.NOVA , Avenida de Berna, 26-C — 1069-061 Lisboa, Portugal.e-mail: miguel.chaves@fcsh.unl.pt

 

Do Crime e do Castigo consiste numa coletânea de 11 artigos organizada por Manuela Ivone Cunha, que congrega alguns dos mais importantes investigadores nacionais que trabalham na área “do crime e da justiça”. De entre os múltiplos motivos de interesse e de relevância da obra, evidencia-se, desde logo, o seu elevado cunho pedagógico. Estudantes de mestrado e de doutoramento poderão encontrar aqui, além de ­estados da arte sobre temas enquadráveis naquela extensa área, fontes de inspiração para definirem ou reequacionarem os seus objetos de estudo e as suas teses.

Numa excelente nota de apresentação inicial, Manuela Ivone Cunha assinala dois elementos centrais de convergência dos autores reunidos: o facto de conceptualizarem o crime como facto social e o de entenderem as dinâmicas de constituição, difusão, aplicação das ­normas e leis como processos socioculturais. Essa diversidade subtemática consiste, naturalmente, num aspeto benéfico, pois permite abranger um público mais lato, mas torna mais difícil a cada leitor mapear o seu percurso, pela obra, dificuldade acrescida pelo facto de os textos não serem aqui acompanhados por quaisquer resumos. Conta-se, talvez de forma excessiva, com a disposição dos leitores para mergulhar em textos totalmente desconhecidos, num momento em que já é difícil assegurar que livros (sobretudo em formato de papel) disputem a atenção com a miríade de leituras propiciadas pelas revistas científicas online.

A ausência de resumos, aliada à circunstância de, no breve espaço desta recensão, ser manifestamente impossível proceder simultaneamente ao sumário e à crítica de 11 capítulos díspares, sem ceder à superficialidade, levou-nos a optar pela elucidação dos seus propósitos e argumentos nucleares, secundarizando a identificação dos aspetos que mais reservas nos suscitam.

No capítulo inaugural, Manuela Ivone Cunha e Patrícia Jerónimo problematizam a inclusão dos “aspetos culturais” na administração da justiça, designadamente no processo de definição da punibilidade e da pena a atribuir a indivíduos concretos. Após revelarem que estas dimensões são sistematicamente desconsideradas pelos tribunais portugueses, investigam as razões para tal denegação, vislumbrando-as, pelo menos em parte, na prevalência de dois pressupostos “equivocados” que irão procurar desmontar – a “persistência de uma conceção essencialista de cultura” e uma “leitura formalista do princípio da igualdade”. Atribuindo a esta reflexão uma dimensão ético-política e estabelecendo profícuo diálogo entre as ciências sociais e o sistema de justiça, as autoras sustentam que a denegação, a priori, dos “aspetos culturais” impede a densificação dos juízos sobre a responsabilidade individual e não faz jus ao princípio de igualdade material, afetando, por essas vias, o propósito anunciado de se proceder a um julgamento justo.

O segundo capítulo, de Jorge Quintas e Helena Antunes, chama a si a análise de três vetores nucleares na regulação das drogas a nível internacional: a capacidade dos diferentes modelos nacionais dissuadirem o consumo; o grau de conhecimento da legislação pelos consumidores e as atitudes da população geral face às normas legais. Recorrendo a diversos estudos internacionais, sugerem, primeiro, que as políticas de regulação, incluindo as mudanças legislativas, têm efeitos reduzidos nas taxas de consumo; segundo, que o conhecimento da legislação é escasso, levantando ceticismo quanto ao efeito dissuasor da lei; por fim, que as atitudes liberais relativamente à cannabis têm vindo a aumentar, tendência que, arriscamos, não se estenderá às “drogas duras”, em relação às quais as atitudes da população se ajustarão de forma bastante mais clara ao proibicionismo hegemónico.

Ainda sob a égide das substâncias psicoativas, Luís Fernandes assinala-nos alguns dos pontos centrais de construção do “problema da droga”, para, logo de seguida, sublinhar e sistematizar uma crítica que marcou o seu percurso ­científico: a redução da “droga” a fenómeno psicofarmacológico. Para o autor, aquela representou sempre um “fenómeno social total”, aqui revisitado enquanto elemento perturbador da estabilidade normativa, combatido pelas “instâncias normativas mais poderosas” da modernidade: “a médico-sanitária (…) e a jurídica” (p. 50). Como acontece em qualquer dos seus textos, Fernandes volta a enigmatizar o “fenómeno droga” sugerindo múltiplas frentes e vias de exploração aos investigadores que sobre este assunto se queiram debruçar.

Ximenes Rego oferece-nos, por sua vez, o primeiro capítulo que utiliza diretamente dados etnográficos. Partindo do pressuposto de que o aumento do sentimento de insegurança não converge necessariamente com a intensificação de “ameaças reais”, a investigadora guia-nos a uma zona histórica e degradada do Porto, classificada como muito insegura, sendo os moradores tratados nos media, como “prisioneiros do medo”. Ao mergulhar no contexto analisado, a investigadora descobre, porém, que embora esses residentes afirmem que a rua é perigosa para “os de fora”, se sentem, na realidade, pouco ameaçados. Parte da explicação para esta descoincidência entre imagens externas e internas pode ser encontrada na “familiaridade dos moradores com o território” e na “proximidade das suas condições materiais de existência”, assim como num conjunto de “estratégias virtuosas” associadas à privacidade, ao recato, ao decoro acerca do que se passa “lá fora”, nomeadamente eventuais práticas ­ilícitas. Rotineiramente seguidas, tais estratégias dotam os habitantes de um capital social local de “respeitabilidade” que atenua em muito o sentimento de ameaça predatória.

Numa sequência feliz, o capítulo seguinte, dialoga bem com o de ­Ximenes Rego, precedendo-o em termos lógicos. Nele Sílvia Gomes propõe-nos um curto mas valioso apanhado da literatura científica que vem equacionando o papel dos media na reificação/legitimação da norma e na perceção do desvio. Operando a partir de fechamentos progressivos de escala, a autora começa por situar a importância geral dos media no processo de construção social da realidade, para se cingir depois à análise do modo como esse meios enquadram a questão do crime, convertendo-a em mercadoria. A reflexão prossegue com o questionamento da construção da opinião pública e da relação desta com o crime, para finalmente encerrar centrando o olhar no “pânico moral”, temor que encontra nos mass media, veículo nuclear de disseminação e reprodução.

Vera Duarte e Maria João Leote transportam-nos, por seu lado, para uma abordagem da “delinquência juvenil”, que principia com a hipótese de que esta estará sub-representada nas estatísticas policiais e judiciárias e, em parte por essa razão, em termos políticos. Ao longo do capítulo, as autoras irão percorrer dois trilhos que vêm marcando as suas pesquisas acerca da violência e delinquência de crianças e jovens em Portugal. Num primeiro analisam as ambiguidades ­contidas na própria noção de “delinquência”, destacando a tensão existente entre uma conceção restritiva, que compreende apenas “as infrações às normas jurídicas”, e outra, maximalista, que abrange “interdições sociais e comportamentos ­problemáticos”, bem como a diferenciação entre as noções de “delinquência” e de “criminalidade juvenis” resultante da jurisdição especial associada à “menoridade”. No segundo trilho, explicitam a necessidade de associar o estudo da delinquência juvenil à análise das dinâmicas territoriais de exclusão urbana, sublinhando o impacto que a acumulação de “desvantagens sociais” num mesmo espaço pode implicar na acumulação de comportamentos disruptivos em determinadas zonas da urbe.

No texto de Rafaela Granja, o desvio interseta-se com a problemática do género. A autora procura documentar os principais debates que dominaram o tema do envolvimento das mulheres na criminalidade desde o período anterior à década de 1970, fase em que se encontravam capturados por argumentos biologizantes e psicologizantes, até aos que, a partir daí, vão romper com o androcentrismo da “criminologia tradicional”. A investigadora acentua a extrema heterogeneidade de linhas de investigação que caracteriza o momento presente, sem deixar, porém, de registar a viragem do enfoque das patologias individuais para outro, mais amplo, que contempla a estrutura social, assim como o recurso crescente a metodologias compreensivas que privilegiam a audição “das vozes das mulheres em conflito com a lei”. Para Granja, é inegável que a sobrevivência de reducionismos que interpretam as infrações legais das mulheres “como perversões da feminilidade” obriga à manutenção de uma ciência comprometida, em especial, na desconstrução de estereótipos.

Pela mão de Susana Durão entramos de novo na etnografia. A autora começa por nos dar conta da evolução da “arquitetura” da polícia urbana em Portugal, nos anos da democracia, destacando as diretrizes de reforço do controlo burocrático da prática profissional e de policiamento orientado para os cidadãos. Trata-se de uma retrospetiva muito útil, não só porque permite fundear a sua análise, mas porque contribui para atenuar a surpreendente escassez de abordagens históricas da PSP. No entanto, é na segunda parte do capítulo, expressivamente intitulada “O que fazem hoje os polícias”, que, recorrendo aos seus estudos nacionais e internacionais, Susana Durão torna patente a originalidade e relevância do seu trabalho em que leva a cabo uma análise da atividade policial “por dentro”. Esta permite-lhe revelar que o projeto democrático de transformação das polícias permanece inacabado: “os agentes trabalham ­frequentemente sem um plano claro” (p. 130) e “o policiamento de proximidade, embora com dinâmicas locais inovadoras, (…) tende a ser adiado para um futuro sempre distante” (p. 138).

Os capítulos 9 e 10 irão familiarizar-nos com o forte input tecnológico que se verifica na investigação e vigilância criminais contemporâneas. Catarina Fróis faculta-nos um levantamento do trabalho académico realizado acerca da videovigilância, polarizado pela ideia de que a proliferação desse meio de controlo não atinge o objetivo primordial de prevenir e dissuadir a criminalidade. Depois de sublinhar esse dado, a autora reflete sobre o dilema político que dele sobrevém. À questão“a tecnologia como um meio ou a tecnologia como um fim?” irá responder pendendo para o segundo prato da balança. Para Fróis, o investimento exponencial em tecnologias de vigilância tem sido conduzido de forma acrítica. E se para explicação desse facto não é alheia a ansiedade social e política causada pelos “novos palcos de guerra”, o “combate ao crime organizado” e a “ameaça terrorista”, éde enfatizar, na senda de Peter Burguess, o papel dos interesses financeiros e do arsenal ideológico dos partidos políticos “que têm definido as premissas da investigação na área da segurança”, nomeadamente na Europa (pp. 156-157).

Reservas relativamente ao fascínio acrítico pela tecnologia encontram-se de novo patentes no artigo de Helena Machado. Numa reflexão plena de atualidade, dada a popularização da “prova genética” e da tecnologia de ADN, em resultado da sua portabilidade, rigor científico, eficácia, celeridade na identificação de infratores, a autora faz um balanço dos estudos sociais centrados na utilização destes novos meios pela justiça criminal. Machado centra-se depois num conjunto de legislação reguladora das bases de perfis genéticos em Portugal e na análise das representações de políticos, especialistas de direito e de genética forense, investigadores criminais, reclusos e generalidade dos cidadãos acerca do uso dos dados contidos naqueles repositórios. O artigo parece contudo ter um desígnio maior: o de promover uma reflexão acerca do papel que assiste às ciências sociais na abordagem destas matérias. Além de lhes caber a tarefa de analisar “novas e velhas” formas de cidadania, que se interpenetram em modalidades de “cidadania genética” (p. 166), caber-lhes-á também desmontar a credulidade acrítica (“mito da infalibilidade”) que pesa sobre estes assuntos numa sociedade “em que a mística associada aos genes tende a imperar” (p. 166).

O livro encerra com um artigo de Manuela Ivone Cunha, que regressa a um dos seus temas de eleição: a relação prisão-sociedade. Neste caso, a investigadora procura elencar diversos subtemas suscitados por esta conexão, alimentando-os do diálogo entre o estado da arte produzido sobre a matéria e os resultados emergentes dos seus próprios trabalhos empíricos. Ao sugerir algumas das mais importantes direções para o estudo da realidade prisional, ao discutir a validade de pressupostos teóricos anteriores, ao propor novos pontos de partida, o texto que aqui nos apresenta é de novo indispensável a todos aqueles que, em Portugal, pretendam trabalhar este tema que, além de multidimensional, estabelece importantes conexões com aspetos macrossocietais.

Importa relembrar, antes de concluir, que este breve escurso por Do Crime e do Castigo está longe de fazer jus à riqueza de muitos dos seus textos, mas não deve também sugerir que todos os artigos estão imunes à crítica, libertos de aspetos menos conseguidos. Por razões que esclarecemos de início, e que se prendem com imperativos de síntese, esse trabalho terá de ser deixado ao leitor que, com proveito, procure entrar nesta obra densa e multiangular.

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