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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.221 Lisboa dez. 2016

 

RECENSÃO

COUTINHO, João Pereira

Conservadorismo,

Alfragide, D. Quixote, 2014, 188 pp.

ISBN 9789722054881

 

Pedro T. Magalhães*

*Universidade Nova de Lisboa, FCSH, de Berna, 26-C — 1069-061 Lisboa, Portugal.e-mail: pmagalhaes_15@hotmail.com

 

João Pereira Coutinho notabilizou-se em Portugal como um dos cronistas cimeiros da chamada “nova direita”, assinando colunas de opinião n’O Independente, Expresso e Correio da Manhã. Ora, neste ensaio sobre o conservadorismo publicado quase simultaneamente pela D. Quixote (em Portugal) e pela Três Estrelas (no Brasil), o autor despe as vestes de polemista para nos oferecer um tratamento sobriamente académico do tema em questão.

Que o título da obra não nos leve ao engano, contudo. Conservadorismo não é, nem pretende ser, uma introdução ao pensamento político conservador, globalmente considerado. Dos múltiplos conservadorismos que foram emergindo no Ocidente desde a Revolução Francesa, Pereira Coutinho aborda a tradição que lhe é mais cara – o conservadorismo britânico –, a partir da figura tutelar de Edmund Burke (1727-1797). Com efeito, o autor de Reflections on the Revolution in France (1790), uma das primeiras e mais influentes críticas das ambições progressistas dos revolucionários franceses, já havia estado no centro da premiada dissertação de doutoramento de Pereira Coutinho (Política e Perfeição. Um Estudo sobre o Pluralismo Político de Edmund Burke e Isaiah Berlin, 2008), que terá reaproveitado muito desse trabalho de investigação para este ensaio. Mas Conservadorismo não se apresenta, tão-pouco, como uma análise exaustiva das principais ideias do conservadorismo burkeano. Deve ler-se, isso sim, como uma introdução ao pensamento político de Burke, suplementada por apontamentos que visam atestar a sua relevância contemporânea.

Pereira Coutinho começa por traçar a distinção entre o que, na esteira de Michael Oakeshott, apelida de “disposição conservadora” (p. 33), em sentido assaz lato, e a ideologia política conservadora propriamente dita. Trata-se de uma distinção importante – e envolta em controvérsia. Em boa verdade, como nota o autor, a palavra “ideologia” tende a provocar desconfiança nos espíritos conservadores. O que é compreensível, já que o termo tem a sua origem, segundo o sociólogo Karl Mannheim – porventura a mais grave omissão na bibliografia de Pereira Coutinho, que assim ignora um dos primeiros tratamentos histórico-sociológicos do conservadorismo como ideologia – na pátria e no contexto da Revolução de 1789. A mera invocação de “ideologia” soará, a certos ouvidos conservadores, a inaceitável afirmação de superioridade do pensamento abstrato sobre o “sentido da realidade”, carregando consigo um ímpeto racionalista de transformação política e social que instintivamente rejeitam. Por essa razão, muitos autores conservadores preferem definir o conservadorismo político como “disposição” (ou como “temperamento”, “inclinação”, etc.), ao invés de “ideologia”. Apoiando-se em “Conservatism as an Ideology” (1957), ensaio de Samuel Huntington, que constitui a principal referência das páginas iniciais, Pereira Coutinho procura afirmar o conservadorismo como ideologia política num sentido preciso: trata-se não de uma “ideologia ideacional”, que como o liberalismo ou o socialismo procuraria “cumprir em sociedade um programa ou um ideário políticos” (p. 44), mas de uma “ideologia posicional e reactiva” que emerge “perante uma ameaça concreta aos fundamentos institucionais da sociedade” (p. 47).

Essa peculiaridade da ideologia política conservadora revela-se nos seus princípios fundamentais, que Pereira Coutinho cobre nos capítulos seguintes. Sempre com Burke como referência matricial, o autor aborda, por esta ordem, as noções de “imperfeição humana”, “sentido da realidade”, “testes do tempo” (tradição), “reformar” e “sociedade comercial”.

Os capítulos que versam a “imperfeição humana” e o “sentido da ­realidade” revelam-se os mais interessantes. Neles, o autor condensa o essencial da crítica burkeana ao zelo racionalista dos revolucionários franceses. A “imperfeição humana” de que fala Burke remete, sobretudo, para os inultrapassáveis limites epistemológicos da razão, que a “arrogância” revolucionária ignora ao chamar a si “a tarefa hercúlea de ­construir e reconstruir a sociedade humana de forma radical e perfeita” (p. 54). Ora, apesar do “dramatismo e violência” (p. 58) que atinge a espaços, a crítica de Burke provém de um espírito essencialmente moderado, que não cede à tentação do pessimismo antropológico mais primário que caracteriza boa parte do pensamento contrarrevolucionário continental. Para Burke, a política é uma atividade racional por excelência – mas que deve ser pautada por um uso prudente da razão que evite os perigos tanto da “vaidade” racionalista como, para usar um termo que a mais tardia filosofia política da contrarrevolução haveria de cunhar, do decisionismo irracionalista.

Tal uso prudente da razão deve assentar num apurado “sentido da realidade”, isto é, no reconhecimento da importância das circunstâncias concretas nas quais está imerso o decisor político e na prioridade daquelas sobre todo e qualquer programa formulado em abstrato e a priori. Este primado do circunstancial sobre o (supostamente) universal revela a faceta pluralista do pensamento conservador burkeano, à qual Pereira Coutinho, ainda que não a explorando até às últimas consequências, sabe dar o devido relevo.

Seguindo de perto John Kekes (A Case for Conservatism, 1998), o autor afirma que “[a] defesa de uma hierarquia rígida de valores como base do pensamento e ação políticas parece ser assim insustentável tendo em conta a natureza evolutiva e plural de qualquer comunidade humana” (p. 73). Ora, na medida em que abre o flanco ao anátema do relativismo axiológico, a constatação deixa o conservador, que por norma não quer, nem gosta, de ser confundido com um pós-moderno, numa posição delicada. O preço a pagar pela recusa do pensamento abstrato do contratualismo iluminista afigura-se, pois, bem alto. Demasiado alto, diria, para a generalidade dos conservadores desde Burke até ao presente, que preferem aceitar uma dose generosa de inconsistência argumentativa a mergulhar no pretenso pesadelo do relativismo. Com efeito, a existência de “valores básicos e fundacionais” (p. 76), que o conservador apesar de tudo se vê na obrigação de afirmar, não é logicamente compatível com a recusa de uma “hierarquia rígida de valores”. Haverá hierarquia mais rígida do que a distinção entre “valores básicos e fundacionais”, que, ancorados na imutabilidade da própria natureza humana, transcenderiam “a natureza evolutiva e plural” das comunidades humanas, e valores “secundários”, sujeitos às contingências do tempo e do espaço?

Que Pereira Coutinho não consiga resolver o problema do pluralismo na perspetiva conservadora dificilmente constituirá demérito grave. Afinal, tal tarefa, porventura tão hercúlea quanto a concretização da mais radical utopia racionalista, não figura nos objetivos centrais do ensaio. Acontece, porém, que o texto começa a perder o foco a partir desse momento. Nos capítulos dedicados aos conceitos de “tradição” e “reforma”, aflora uma crescente dispersão, com o autor a perder-se em apontamentos sumários sobre questões que exigiriam uma abordagem mais matizada (vide a interpretação excessivamente simplista da Revolução Americana como exemplo de uma reforma conservadora, pp. 110-113). Já o capítulo que antecede a conclusão, sobre a chamada “sociedade comercial”, parece tão ou mais preocupado em certificar os pergaminhos conservadores da governação de Margaret Thatcher quanto em responder satisfatoriamente à questão de fundo sobre a relação entre capitalismo e conservadorismo.

Conservadorismo não é uma obra de grande originalidade. Nem julgo que pretenda sê-lo. O seu principal mérito consiste em trazer para a discussão em língua portuguesa um debate anglo-saxónico de longa tradição, mas pouco conhecido – e, logo, pouco influente – entre nós. Quando Pereira Coutinho deu à estampa o seu ensaio, não havia sequer uma tradução das Reflections de Burke publicada em Portugal (falha grave, entretanto colmatada pela Gulbenkian), para não falar de autores contemporâneos como Roger Scruton ou John Kekes, entre outros, que aqui veem algumas das suas ideias apresentadas e discutidas com ­inegável elegância. Para o leitor português de “inclinação” conservadora, trata-se, assim, de uma obra de extrema utilidade, quiçá mesmo indispensável, para alargar os horizontes da sua simpatia político-ideológica. Se era esse o objetivo do autor, foi plenamente conseguido.

O veredito tem de ser outro, todavia, se o leitor esperar do ensaio uma estimulante aventura intelectual no campo da história das ideologias políticas modernas. Porque Pereira Coutinho procura oferecer, ­sobretudo, uma leitura limpa, correta – quase diria, higiénica – da tradição que tanto admira. Uma leitura que, orgulhando-se “de não ter sangue nas suas mãos” (p. 28), dissolve tensões e paradoxos. Burke, entre os grandes clássicos do conservadorismo moderno, não tem apenas primazia cronológica, como é também o mais impoluto dos nomes, aquele que mais facilmente se deixa conciliar com os princípios axiais do liberalismo (aliás, é bem possível interpretá-lo como um liberal). Mas mesmo Burke teve seguidores mais sombrios, entre os quais toda uma chamada “escola histórica” alemã que figura no texto de Pereira Coutinho apenas acidentalmente (em referência a uma conhecida obra de Leo Strauss). Sobre eles, e numa altura em que Carl Schmitt e outros encabeçavam na Alemanha uma paradoxal “revolução conservadora”, Karl Mannheim escreveu uma frase inspirada: “A Alemanha alcançou para a ideologia do conservadorismo o que a França fizera com o Iluminismo – explorou-a até ao limite das suas conclusões lógicas” (Mannheim, “Conservative Thought”. In From Karl Mannheim,1993, p. 268). A ideologia conservadora não é certamente parte ausente das grandes tragédias do século XX. Mas essas águas convulsas – e, porque agitadas, intelectualmente desafiantes – o autor opta por evitar.

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