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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.220 Lisboa set. 2016

 

RECENSÃO

CUNHA, Adelino

Os Filhos da Clandestinidade. A História da Desagregação das Famílias Comunistas no Exílio,

Lisboa, Esfera dos Livros, 2016, 368 pp.

ISBN 9789896267476

 

Giulia Strippoli*

*Universidade Nova de Lisboa, FCSH, Instituto de História Contemporânea, Av. de Berna, 26 C — 1069-061, Lisboa, Portugal. E-mail: baluginare@hotmail.com

 

“A história da desagregação das famílias comunistas no exílio” – o subtítulo do livro, tal como a imagem da capa – Álvaro Cunhal no meio dum grupo de crianças e outro subtítulo, na contracapa, “A odisseia das crianças enviadas secretamente para o outro lado da cortina de ferro”, apresentam o assunto do livro do Adelino Cunha: a obra parece desenvolver, de maneira bastante dramática, a temática das famílias de comunistas e das crianças separadas dos pais por causa do exílio. Esta impressão tem uma parcial negação ao longo dos capítulos: embora o tom de odisseia permaneça nalgumas partes do livro, o espaço dedicado às crianças enviadas para a Internazionalny Dom, em Ivanovo, ocupa apenas uma trintena de páginas num total de mais de 250. Felizmente, a ideia de que o livro contenha uma “história nova do PCP”, e a promessa da revelação de uma “realidade até agora desconhecida”, não é aprofundada no desenvolvimento desta investigação, que é fundamentalmente uma história do Partido Comunista Português entre 1960 e 1974 do ponto de vista do exílio político. O livro faz um amplo uso da bibliografia sobre a história do PCP e a emigração, a galáxia dos grupos de esquerda, o comunismo mundial. O autor utilizou também testemunhos orais recolhidos em entrevistas realizadas entre 2009 e 2015 sobre experiências de separação do núcleo familiar, mas também sobre outros elementos da história do PCP e do movimento comunista internacional, tal como as atividades dos comunistas fora de Portugal, as divergências internas, a formação da ARA.

A fuga de Peniche de janeiro 1960 introduz a obra para contextualizar as experiências dos comunistas portugueses no exílio e, dentro destas, um aspeto qualificado como uma “dimensão silenciosa”, ou seja a permanência das crianças (fala-se de “mais de uma dezena”)1 em Ivanovo, entre 1963 e 1972.

O primeiro capítulo é dedicado a um estado da arte sobre as fontes e a bibliografia sobre os exilados comunistas portugueses e contem uma reflexão relativa ao papel da transmissão da memória e aos caracteres identitários dos exilados. Alguns dos comunistas que, para além da figura central de Cunhal, são protagonistas do livro, são apresentados no segundo capítulo, focado na luta no exterior para a realização da revolução em ­Portugal, tais como Margarida Tengarrinha (Moscovo), Aurélio Santos (Roménia), Cândida Ventura (Praga), Pedro Soares (Argel), Maria Armanda Serra (Ivanovo). Cunhal é assumido como figura central porque a fuga de Peniche e a assunção, por parte do líder do PCP, da necessidade do seu afastamento de Portugal, são considerados os motores da elaboração da ideia do apoio ao interior a partir do exterior.

A explicação da estratégia do PCP do levantamento nacional e da insurreição popular armada contextualizam o “exílio político funcional”, no sentido do afastamento de Portugal, garantindo porém o apoio à luta no interior e a necessidade da defesa do partido.2 Os relatos autobiográficos e os testemunhos de Carlos Antunes, Margarida Tengarrinha, Zita Seabra, Flausino Torres, Carlos Brito e Silva Marques, fundamentam as perceções que os exilados tiveram do trabalho político no exterior. O autor abre depois um discurso geral sobre o significado do exílio (capítulo 3). A diferenciação que é feita entre exilados, expatriados, refugiados e emigrados tem o objetivo de corroborar a ideia do exílio político como um afastamento temporário, ligado ao compromisso político e à luta contra o regime de origem. A fuga de Peniche, que introduz a obra, volta no início do quarto capítulo, no qual o autor traça os momentos da instalação do Secretariado do PCP no exterior e a consequente criação de coletivos de exilados comunistas na União Soviética, na Checoslováquia e na Roménia e, do outro lado, a organização do aparelho clandestino em Portugal. Seguem-se dois capítulos dedicados, respetivamente, à Argélia e à instalação de Cunhal em Moscovo. O caso da Argélia é considerado significativo pelas experiências de exílio vividas pelos comunistas portugueses; Cunha percorre então a história da Frente Patriótica de Libertação Nacional, foca-se nos papéis de Humberto Delgado, de Cunhal e nos contactos que o PCP soube manter com os movimentos nacionalistas, dinamizando também a ligação entre estes e Moscovo. A deslocação de Cunhal a Moscovo e o prestígio assumido por ele no quadro do comunismo internacional explica, na perspetiva do autor, a dinâmica – chamada outra vez “silenciosa” – do exílio das crianças – outra vez quantificadas como “mais de uma dezena” – para a escola de Ivanovo. Neste capítulo lembra-se o impacto que o Congresso de Kiev de 1965 e a aprovação de Rumo à Vitória tiveram no PCP, para se focar depois em diferentes experiências fora de Portugal. Chega-se finalmente às histórias das crianças que estiveram em Ivanovo (capítulo 7). As fotografias acompanham a narração dos testemunhos e das experiências de Odete Graça Silva, Manuel da Silva, Joaquim Carvalho Paula e Ana Carvalho Paula, Luís ­Carlos Lagarto, José Leal, José Serra, Catarina Esteves, Alberto Caeiro Costa, Luís Costa, Maria Armanda Serra (professora de português das crianças). A descrição da rotina na escola é um dos elementos comuns às histórias; os outros têm a ver com a dor da separação, a sensação de abandono, a difícil adaptação à vida na URSS, mas também com os casos de uma integração social mais fácil na União Soviética, e as dificuldades ou a recusa do regresso a Portugal. O autor dedica os três restantes capítulos à primavera de Praga, à Roménia e ao caso da França. Os acontecimentos na Checoslováquia servem ao autor para falar do coletivo dos exilados portugueses em Praga e da desagregação do grupo depois da intervenção armada da União Soviética e do apoio do PCP a Moscovo. Vários protagonistas, portugueses, mas não só, dinamizam este capítulo. As experiências, e as vozes, de Cândida Ventura, Flausino Torres, António Bastos Lopes, Georgette Ferreira, Santiago Carrillo, Carlos Brito são alguns dos recursos utilizados numa secção que mescla vários argumentos: o comunismo na Checoslováquia, o PCP em Praga, a posição dos comunistas espanhóis, os acontecimentos em Moscovo, a elaboração do eurocomunismo. No capítulo seguinte, os relatos de Cláudio Torres e de Rui Perdigão descrevem o ambiente vivido pelos comunistas na Roménia e a atividade da Rádio Bucareste e da Rádio Portugal Livre. O autor concentra-se nas relações diplomáticas entre a Roménia e Portugal e na fase vivida pela propaganda comunista através da RPL, com base nas experiências dos comunistas que dinamizaram o projeto: Rui Perdigão, Fernanda Silva, Carlos Antunes, Teresa Mendes e Veríssima Rodrigues. Para além da narração dos exilados comunistas em Bucareste, estas páginas falam dos exilados na Roménia desligados do PCP e da deslocação, sempre em Bucareste, de Jorge Alves, o GNR cujo apoio determinou o sucesso da fuga de Peniche. O último capítulo é dedicado à aproximação de Cunhal a Portugal, ou seja à instalação dele em Paris, em 1967. A vigilância da PIDE, os acordos entre os governos português e francês, a emigração dos portugueses em França e uma ampla parte sobre os movimentos chamados “de extrema esquerda” são os assuntos-chave destas páginas.

Nos anexos conclusivos encontram-se três quadros: um sobre o exílio político funcional, outro sobre as diferenças entre emigrado, refugiado, expatriado e exilado e o terceiro sobre os filhos da clandestinidade, onde o autor fornece as informações sobre a experiência das crianças em Ivanovo. Indica a idade de chegada a Ivanovo e a duração da permanência de dez crianças e de Maria Armanda Serra; de outras duas crianças faltam o ano de chegada e a duração da estadia.

O assunto prometido no título é na verdade uma parte relativamente pouco aprofundada da obra e as entrevistas não foram utilizadas no sentido de explorar a experiência das crianças em Ivanovo em termos de vida relacional, de contactos com outras crianças, de impacto na escolha de militância ou não, na formação política, na perceção do comunismo russo e internacional, etc.

Os arquivos e a bibliografia citados fazem supor um trabalho extenso e profundo; porém, a história da desagregação familiar no âmbito da clandestinidade e do exílio dos comunistas (argumentos que não são a revelação de uma realidade desconhecida)3têm um papel relativamente marginal numa história que se circunscreve a alguns anos do PCP. Defacto, a interpretação histórico-política sobre o exílio dos comunistas portugueses4, que parece ser a temática central da obra, quase não emerge ao longo dos capítulos.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 

BARRADAS, A. (2004), As Clandestinas. Lisboa, Ela por Ela.         [ Links ]

DIAS, M.L.C. (1982), Crianças Emergem da Sombra. Contos de Clandestinidade, Lisboa, Avante!.         [ Links ]

MADEIRA, J. (2013), História do PCP, ­Lisboa, Tinta-da-China,         [ Links ] Lisboa.

NOGUEIRA, C. (2011), Vidas na Clandestinidade, Lisboa, Avante!.         [ Links ]

PEREIRA, J.P. (1993), A Sombra. Estudo sobre a Clandestinidade Comunista, ­Lisboa, Gradiva.         [ Links ]

 

NOTAS

1p. 17.

2 p. 42 e p. 46.

3A interrupção das relações familiares e a separação entre pais e filhos (incluído o envio para a União Soviética) é um tema que já foi investigado e sobre o qual existem obras publicadas. Vejam-se, por exemplo, Dias (1982), Pereira (1993, pp. 168-187), ­Barradas (2004, pp. 42-52) e Nogueira (2011, pp. 92-98).

4O tema do exílio e da circulação dos comunistas portugueses foi amplamente investigado por João Madeira na história do PCP, das origens ao derrube do Estado Novo. O autor interpretou e explicou as reconfigurações das estruturas do partido no interior e no exterior ao longo das décadas e conforme a elaboração política dos organismos dirigentes do partido. V. Madeira (2013), sobretudo as páginas 543-564 sobre o PCP em França e em Argel na segunda metade dos anos 1960.

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