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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.220 Lisboa set. 2016

 

RECENSÃO

PAIS, José Machado

Enredos Sexuais, Tradição e Mudança: as Mães, os Zecas e as Sedutoras de Além-mar,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2016, 325 pp.

ISBN 9789726713692

 

Simone Frangella*

*Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, Av. Professor Aníbal Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. E-mail: simone.frangella@ics.ulisboa.pt

 

O aparecimento do movimento das Mães de Bragança (Trás-os-Montes) em 2003 foi um evento de grande notoriedade. O movimento, criado a partir de um grupo de mulheres descontentes com a infidelidade dos seus maridos e o desvio de dinheiro para gastos nas casas de alterne da cidade, pretendeu expulsar as trabalhadoras sexuais – na sua maioria brasileiras – dessa cidade transmontana. O protesto mobilizou intensamente a cidade, gerando controvérsias entre os atores sociais beneficiados ou prejudicados pela presença das casas de alterne. Impeliu a abordagem policial e dos agentes da imigração, a intervenção de agentes urbanísticos, alterou a economia da cidade e, por fim, ganhou um significativo destaque mediático nacional e internacional.

O movimento também faz pensar e provoca indagações de grande potencial analítico, sobre, por exemplo, o lugar da sexualidade nas transformações sociais em Portugal ou nas relações quotidianas produzidas decorrentes da prática migratória. No entanto, apesar dessa potencialidade, o protesto das Mães de Bragança acabou por ser visto sobretudo enquanto um facto curioso, invocado regularmente como uma alegoria, a reforçar os estereótipos de género e a reiterar a comprovada relação entre discriminação e migração.

O livro de José Machado Pais, Enredos Sexuais, Tradição e Mudança: as Mães, os Zecas e as Sedutoras de Além-mar inova esse quadro de interpretação, complexificando o facto social de forma intrincada e cativante. A análise do movimento e da sua repercussão é apresentada numa dinâmica caleidoscópica, permitindo uma compreensão mais substantiva das transformações sociais em Portugal, da complexidade de representações sobre a imigração, os posicionamentos de género e os papéis sexuais, sem esgotar o movimento nestas perspetivas.

A partir de uma longa e intermitente incursão de campo em Bragança, e através de uma escrita fluida e espirituosa, o autor articula um olhar etnográfico sobre os personagens que viveram a experiência do movimento com uma compreensão sociológica e histórica em torno daquilo que se torna o eixo analítico do livro, nomeadamente a tensão entre tradição e mudança no Portugal contemporâneo, vista por meio do horizonte da sexualidade. As mudanças das formas de conjugalidade e organização das casas nas aldeias transmontanas e os movimentos de emigração e imigração são compreendidos através dos valores e representações sociais tecedores do confronto entre os personagens.

O livro é dividido em oito capítulos, delineando uma trama com efeito caleidoscópico; os dois primeiros capítulos introduzem-nos ao Movimento das Mães de Bragança e aos seus personagens, mostrando-nos o contexto de partida que será decifrado nos capítulos seguintes a partir de ângulos bastante diferentes. No capítulo 1, o episódio é apresentado ao leitor com detalhe: como se iniciou e se alastrou; quem eram os envolvidos; a apresentação formal de um manifesto; a importância dos media, sobretudo com a projeção internacional do evento através da publicação de uma notícia na revista Time. Através das análises dos jornais e websites e de depoimentos recolhidos por Machado Pais, revelam-se os desdobramentos económicos, sociais e simbólicos do movimento de protesto. Já o capítulo 2 explora o mesmo quadro na sua tessitura interna, através das representações e narrativas múltiplas e conflituosas dos atores que participaram ativamente ou enquanto espetadores neste episódio. Com grande riqueza etnográfica, o autor entremeia conversas, anotações de campo, referências aos lugares, sentimentos e perceções das “esposas” de Bragança, dos homens que frequentavam as casas de alterne, das trabalhadoras do sexo brasileiras e de outros residentes da cidade. A ausência de consenso que resulta desta costura descritiva é enunciativa dos complexos mecanismos sociais, os quais delineiam os confrontos de moralidades e sensibilidades, e que passam a ser esmiuçados nos capítulos seguintes.

Os capítulos 3 e 4 remetem para a estrutura social na qual assenta uma tradição, a qual se reinventa consoante as mudanças sociais do mundo contemporâneo. A oposição estabelecida pelas “mães” de Bragança entre a casa da família e a casa de alterne é vista de forma análoga a uma dualidade historicamente constituída, no mundo transmontano, entre casa/património (lugar do lícito) e o mundo fora dela (lugar do ilícito); e numa segunda escala territorial, entre a aldeia (comunidade) e as aldeias vizinhas (exterior). As festas e rituais transmontanos, em transformação ou em vias de extinção, assim como as letras das músicas ditas “pimba”, aludem a um modelo tradicional e de tensões sociais que constantemente o sublinham, e a uma polaridade nunca bem resolvida entre o universo da casa, onde estão as mulheres, o património e a reprodução social, e o exercício da masculinidade e o prazer sexual que se faz fora dela.

Com as mudanças sociais contemporâneas ocorridas em Trás-os-Montes, os elementos da tradição reposicionam-se. Assim, a emigração e as oportunidades de escolarização propiciaram a circulação de mulheres para fora da aldeia, dificultando a prática comum do casamento preferencial com parceiros do mesmo lugar. As aldeias passaram, assim, a ter um grande défice conjugal. A desproporção de género no mercado matrimonial e a insatisfação sexual já associada ao universo da casa geram um duplo lamento dos homens que parecem retomar o modelo social dual que marca as relações conjugais. As observações colhidas sobre as mulheres transmontanas parecem sugerir que a sua reivindicação é a de que os seus maridos cumpram o seu papel tradicional. Assim, as casas de alterne entram neste quadro como parte desta oposição tradicional, aludindo ao prazer ilícito dos homens e à ameaça à casa.

Continuando a contemplar os rituais e o repertório simbólico do contexto transmontano, e relacionando-os sempre com a dinâmica do movimento estudado, Machado Pais dedica-se, nos capítulos 5 e 6, a perceber os vários sentidos e elementos metafóricos presentes nas festas de máscaras, nas alusões ao diabo e à feitiçaria – acusações regularmente feita às brasileiras das casas de alterne – que fazem parte do contexto estudado. A sexualidade atravessa os sentidos ambivalentes nos hiatos rituais, nos quais o casamento e a afirmação da masculinidade são o tema de transgressões que “renovam sentidos desgastados pelas tensões da própria quotidianidade”, uma desordem que clama a ordem. É à luz da projeção aparentemente desejada que a feitiçaria também emerge como uma explicação ambivalente, que representa a mulher brasileira ora como demoníaca (pelas esposas), ora como salvadora (pelos homens). As lendas atribuídas à feitiçaria e a alusão a um chá misterioso alegadamente administrado pelas brasileiras do alterne compõem um longo trajeto de circulação de significados, de valores de uma certa história partilhada entre o Brasil e Portugal no campo da sexualidade, e que também contribuem para a formação dos estereótipos.

O autor finaliza a análise com dois capítulos que exploram o imaginário social sobre a “brasileira” e o “macho lusitano”, procurando rastrear as suas configurações históricas e destacando o efeito das multiplicidades de sentidos que atravessam a realidade das interações sociais e as retóricas sobre sexualidade. No que respeita às brasileiras, o quadro é aquele já bastante referido nas investigações sobre a migração brasileira para Portugal. O imaginário luso sobre a brasileira é uma herança colonial, de narrações míticas e produções simbólicas, as quais reforçam invariavelmente a mulher sensual, doce (ou submissa), enfeitiçadora, disponível. Características estas que são apropriadas com sentidos ambivalentes. Tidas aqui como positivas para os homens, negativas para as mulheres, com diferentes “valorizações entre a disciplina e o desejo”, mas sempre com este lastro mitificado, estereotipado. Também estão presentes no mundo colonial as referências ao macho português, de grande apetite sexual. Porém, tal estereótipo convive com outras representações do homem português forjadas através deste trânsito colonial e pós--colonial, não necessariamente positivas, e que se insinuam nas interações sociais de agora. O episódio de Bragança permite ver como diferentes padrões de masculinidade vão sendo operados e atualizados.

Qual o legado do Movimento das Mães de Bragança? O que nos conta este episódio sobre possíveis transformações no mundo transmontano? É certo que as “mães” de Bragança inovaram o seu lugar social, ao tornarem-se um movimento social na esfera pública. Ao fazê-lo, também projetaram a sexualidade para fora do domínio do privado, revelando a sua complexa relação com as configurações sociais em transformação. Porém, no limite, o livro faz-nos pensar que, na tensão entre tradição e modernidade, a resistência ao que é exterior e a reprodução de um modelo de género já assente acabam por ser reivindicados, tanto por mulheres quanto por homens. Ainda que sejam constantemente desafiados pela dinâmica contemporânea e lamentados pelos homens insatisfeitos.

O livro apresenta importantes reflexões. Primeiro, tem o grande mérito de perceber transformações da estrutura social, como a emigração e a mobilidade social, a partir da experiência social e pessoal, retratando a tensão social na sua dinâmica quotidiana. Segundo, coloca a migração, neste caso a brasileira, entremeada com outros fenómenos sociais, dando mais inteligibilidade aos efeitos que o processo migratório provoca nos contextos em contínua transformação.

Por fim, Machado Pais mostra-nos como um episódio quase paródico pode ser desvelado nas suas camadas de profundidade e com combinações diversas. Tornou mais ponderado o olhar sobre a oposição entre as expectativas socialmente construídas e as perceções sobre as situações de insatisfação que moveram social e politicamente os personagens deste episódio. O cuidadoso trabalho em torno destas questões faz deste livro uma contribuição essencial para as ciências sociais.

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