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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.220 Lisboa set. 2016

 

RECENSÃO

JOAQUIM, Graça

Viajantes, Viagens e Turismo,

Editora Mundos Sociais, CIES, ISCTE-IUL, Lisboa, 2015, 260 pp.

ISBN 9789898536457

 

Elisabeth Kastenholz*

*Universidade de Aveiro, DEGEIT, Campus Universitário Aveiro — 3810-119, Aveiro,Portugal. E-mail: elisabethk@ua.pt

 

Este livro escrito por Graça Joaquim apresenta-se-nos como uma obra preciosa, pertinente e curiosa sobre o significado da viagem, aos olhos dos viajantes, num contexto de turismo contemporâneo global e globalizante.

Penso que este resultado dos cinco anos de trabalho intenso (ou de “obsessão”, como a própria autora diz) de doutoramento em sociologia, trabalho orientado por António Firmino da Costa e enriquecido pelas narrativas e reflexões partilhadas de 17 viajantes “profissionais”, merece a atenção de todos aqueles que refletem sobre a essência sociopsicológica do fenómeno turístico, sobre aquilo que motiva e aquilo que significa a viagem para quem a realiza e até para a nossa sociedade contemporânea. A ênfase está, efetivamente, na experiência turística procurada e desejada por tantos, experiência vivida de forma mais ou menos intensa em contextos distintos, em viagens por vezes de natureza mais “recreacional”, banal e transitória ou porventura mais demorada, “experiencial”, profunda e transformadora, numa procura e descoberta do “Outro” ou do “centre out there”, i.e. numa autodescoberta através da relação com o “Outro”, como sugerido por Cohen (1979).

Enquanto investigadora e professora de ensino superior na área do turismo, sobretudo nas áreas do “comportamento do consumidor em turismo” e do “marketing de destinos turísticos”, apologista de abordagens interdisciplinares ao estudo do complexo fenómeno turístico, destaco a qualidade, rigor e clareza desta obra que irei certamente usar como referência em aulas e orientações, bem como na minha própria investigação futura sobre temáticas relacionadas com a experiência turística. Partilho, efetivamente, a visão da autora sobre a centralidade da experiência turística na compreensão do fenómeno do turismo, para a grande maioria das abordagens de investigação neste campo, sendo estas de índole sociológica, geográfica, ­económica, de planeamento, gestão ou do marketing turístico. Sem compreender o que o turista1 ou viajante (por autodefinição ou definição simbólica) procura e vive como experiência nas suas viagens, que significados lhes atribui, como a experiência se enquadra no seu percurso autobiográfico, dificilmente se conseguirá entender o fenómeno turístico e muito menos planear e geri-lo de forma a contribuir para um desenvolvimento de facto ­sustentável.

A autora apresenta-nos, nesta sua obra, tanto uma reflexão rica, bem estruturada e muito bem fundamentada em autores consagrados e mais recentes da sociologia do turismo, sobre a experiência turística como objeto de estudo sociológico, na sua complexidade, natureza multifacetada, pluralidade de conceptualizações e práticas, tipologias e modelos sugeridos, perspetivas em evolução, como nos brinda com uma análise qualitativa interessantíssima sobre esta temática, rica em narrativas curiosas e inspiradoras, com base em entrevistas de profundidade com 17 viajantes “profissionais” e/ou de “modo de vida”, como a autora os designa, alguns dos quais bem mediáticos e conhecidos do público português (como Miguel Sousa Tavares, Gonçalo Cadilhe ou Gonçalo Velez). Graça Joaquim optou, assim, por focar a atenção não em narrativas representativas do fenómeno do turismo massificado e estandardizado, na viagem habitual de férias da maioria de turistas que comummente recorrem à indústria turística, por muito discutível que seja uma generalização destas práticas. Ela escolheu como objeto principal do seu estudo empírico um grupo de viajantes sui generis, “os viajantes que têm a viagem como modo de vida e a sua relação com a viagem e o turismo, através das suas práticas, modos de vida, narrativas e representações sociais sobre a viagem e o turismo” (Joaquim, 2015, p. 1). São indivíduos, por um lado, produtores de narrativas de viagem (através da literatura e jornalismo de viagens ou como operador/guia especializado num contexto de turismo de aventura), i.e. assumindo um papel ativo na (re)produção do imaginário turístico, e, por outro lado, pessoas que assumem a viagem como “modo de vida”, viajantes de longa duração. É, contudo, através do olhar deste grupo minoritário de viajantes, tipicamente num contexto de experimentação ou até “existencial”, i.e. de procura de um “center-out-there” (Cohen, 1979), que se percebe melhor a diferença – tanto de imaginários, ideais e significados como de práticas – em relação ao turismo mais organizado, massificado e estandardizado, oferecido pela indústria turística e consumido por um turista, num modo de recreio ou de “diversão” (Cohen, 1979).

A primeira parte da obra da Graça Joaquim apresenta, assim, de forma resumida, um conjunto de debates e reflexões da sociologia do turismo, relacionando e sistematizando conceitos e abordagens teóricas centrais de cinco décadas de evolução da disciplina. Após a definição do turismo como objeto sociológico, a conceptualização do turismo e da viagem, num contexto de diferenciação e pluralidade, ilustrando ainda a sua evolução no âmbito da democratização do lazer e no seio da sociedade do consumo, a autora aponta como mais recente evolução do turismo na modernidade a ­desdiferenciação (Rojek, 1995) com “práticas, marcadas pela pluralidade, pelo efémero, pelo dinamismo e pela fragmentação, características de um capitalismo cada vez mais desorganizado (Lash e Urry, 1994)” (Joaquim, 2015, p. 88).

Identifica temas que se mantiveram centrais no respetivo debate, ao enfatizar o papel relevante da “autenticidade” na explicação desta experiência (mesmo que este conceito também seja sujeito a interpretações diversas), ao destacar a dicotomia antiga (se for legítimo falar em “antigo” num campo científico de pouco mais de 5 décadas) entre turista e viajante (ou melhor entre as representações sociais associadas a estes termos). A autora explica a multiplicidade de perspetivas divergentes sobre a “autenticidade”, desde o “paradigma dos objectos” (autênticos versus encenados), a perspetiva construtivista (que remete para a construção social dos objetos e da atribuição subjetiva e simbólica de significado), a perspetiva pós-modernista que rejeita o conceito da “autenticidade” (remetendo para uma hiperrealidade desenhada para satisfazer o consumo de massas) e colocando o conceito finalmente no contexto da modernidade (reconhecendo a pluralidade e desdiferenciação do consumo turístico), em que a autenticidade é vista não em relação ao objeto, mas definida em função da experiência (intra- e interpessoal) vivida pelo indivíduo (“autenticidade existencial” como sugerido por Wang, 1999).

Este debate torna-se mais explícito quando relacionado com as narrativas dos viajantes que a autora nos apresenta na segunda parte do livro. Centra-se, nesta análise empírica, precisamente na essência do significado da viagem para cada entrevistado, na interpretação da mesma no âmbito da sua vida pessoal e da sua relação com o “Outro”, na perceção da autenticidade daquela experiência, debatendo a dicotomia turista-viajante, chegando-nos a propor uma nova tipologia destes “viajantes profissionais ou de modo de vida” em função das respetivas narrativas e práticas dominantes. São narrativas de memórias e interpretações, histórias de viagens e de vidas, lembradas em diversas facetas, imagens, sons e aromas, muito enriquecidas pelo encontro com o “Outro”, o distante, o diferente, embora refletidas como parte integrante de uma viagem de vida em que a viagem se assume como formadora e transformadora, catalisadora da definição de identidades e significados. Mas são também histórias de mudanças do mundo da viagem, de rejeição de certos fenómenos turísticos (sobretudo os característicos do turismo de massas) e dos seus impactos destruidores de um estado nostalgicamente recordado de locais e comunidades mais “autênticos” e agora deturpados pela mercadorização de paisagens e culturas. São discursos por vezes contraditórios, talvez típicos da era moderna de desdiferenciação, mas são também discursos que permitem uma distinção de três grupos de viajantes no universo minoritário aqui analisado, embora com fronteiras nem sempre muito nítidas, – “Os Puros e Duros”, os “Profissionais” e os “Viajantes Turistas” –, categorias com níveis de afastamento distinto do fenómeno do turismo mais organizado, também e sobretudo em função do papel que assumem quando em viagem, com compromissos e propósitos mais ou menos associados ao fenómeno turístico, na sua vertente mais comercial, por muito “alternativo”, “responsável” e distinto que seja em comparação com o turismo tradicional de massas.

Vale a pena esta leitura da obra da Graça Joaquim, tanto pelo profundo e sistemático debate sobre conceitos centrais da sociologia do turismo, como pela reflexão muito interessante em torno das narrativas de viajantes com grande experiência e postura particular face à viagem, assumindo-a como uma espécie de “modo de vida”. O debate conceptual, as próprias narrativas e interpretações dos viajantes e da autora permitem-nos uma viagem, sem dúvida intrigante, pelo mundo das viagens, dos seus diversos significados e mudanças, num contexto de turismo global que se nos apresenta em constante crescimento e evolução.

 

NOTA

1A Organização Mundial do Turismo (UNWTO, 2014) considera, para fins estatísticos, visitante (visitor) quem se desloca voluntariamente para um local diferente da sua residência habitual e do seu trabalho (por vários motivos, excetuando a obtenção de rendimentos no local visitado). Se o visitante pernoita, é considerado turista. Não distingue turista de viajante, reconhecendo apenas a categoria de “turista”. Cf. Glossary of Tourism Terms. Disponível em http://cf.cdn.unwto.org/sites/all/files/Glossary-of-terms.pdf [consultado a 01-08-2016].

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