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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.220 Lisboa set. 2016

 

RECENSÃO

OLIVEIRA, Ricardo Soares de

Magnífica e Miserável. Angola Desde a Guerra Civil,

Lisboa, Tinta-da-China, 2015, 375 pp.

ISBN 9789896712815

 

Alberto Oliveira Pinto*

*Universidade de Lisboa, ISEG, CEsA – Instituto de Estudos sobre África, Ásia e América Latina, Rua Miguel Lupi, 20, 1249-078 Lisboa, Portugal. E-mail: alberto.o.pinto@gmail.com

 

Há cerca de um ano, concluímos uma ousada e exaustiva História de Angola, para a qual optámos por escolher como baliza cronológica final o ano de 2002 – o do início da paz –, por entendermos extemporânea uma análise historiográfica suficientemente distanciada de um tempo tão recente que nem sequer atinge década e meia. Mal suspeitávamos de que, pela mesma época, outro investigador, Ricardo Soares de Oliveira, através de um trabalho meticuloso de análise documental e de entrevistas – Magnífica e Miserável. Angola desde a Guerra Civil –,deixava um contributo incontornável para a história angolana deste primeiro quartel do século XXI. Pelo menos no que diz respeito ao percurso do MPLA, aquele que, em tempos, Jean-Michel Mabeko Tali (2001b, pp. 169-175) designou assertivamente como sendo em Angola, desde a independência em 1975, o “partido-Estado”.

Advertindo o leitor de que, em todo o livro, “termos como “estado”, “partido”, “governo” e “regime”, conceitos distintos em ciência política, são utilizados um pouco indistintamente, refletindo, por um lado, o modo como são usados em Angola e, por outro lado, a indefinição de barreiras num sistema totalmente controlado pelo MPLA” (p. 48), o autor divide o estudo em cinco partes, às quais acrescem uma Introdução e uma Conclusão merecedoras de leitura atenta. Sobre a Introdução, destinada a localizar o leitor com uma resenha histórica do colonialismo português em Angola durante a Guerra da Independência, entre 1961 e 1974, e do desencadear da Guerra Civil em 1975, limitamo-nos a assinalar a nossa discordância com a adesão do autor à doutrina da “crioulidade”. A chamada “elite crioula” mais não é do que o resultado de um processo de perda das culturas tradicionais, mercê da adesão a valores ocidentais, adveniente das migrações do interior para as cidades coloniais portuguesas do litoral (Margarido, 1992, p. 163; Vera Cruz, 2005, pp. 112-122; Pinto, 2013, pp. 206-210). Esta transculturação, contrariamente ao que é repetidas vezes afirmado no livro, nunca se restringiu aos militantes e simpatizantes do MPLA. As migrações para as cidades, remontando ao século XIX, prolongaram-se pelo século XX e acentuaram-se, evidentemente, depois da independência, devido à guerra civil, que perdurou até 2002.

O capítulo I incide sobre os anos da guerra civil e do advento do petróleo como sustentáculo quase exclusivo da economia angolana e da “construção do estado paralelo” (pp. 51-84). Já sabíamos, pela leitura de Jean-Michel Mabeko Tali, que, ainda no tempo de Agostinho Neto, o MPLA, mediante acordos de parceria com companhias petrolíferas estrangeiras criou, em 1976, a sua própria companhia distribuidora, a SONANGOL. Mas ignorávamos como é que José Eduardo dos Santos (JES), que sucedeu a Neto na presidência de Angola em finais de 1979, conseguiu habilmente, quer ao longo da década de 1980 – ainda marcada pelo marximo-leninismo –, quer durante a de 1990 – após a aprovação do princípio do multipartidarismo e o abandono do marxismo-leninismo pelo MPLA –, chamar a si o controlo dos desígnios da ­SONANGOL, tornando-a “a pedra de toque do sistema [estadual] paralelo” ou, como o afirmou um dos entrevistados, “o milagre angolano” (p. 65). Além de determinante no esforço de guerra contra a UNITA, a SONANGOL operava, na viragem para o século XXI, “em sectores tão distintos como o transporte marítimo, o aéreo, os seguros, a banca, o imobiliário, a restauração” (p. 64).

Durante a década subsequente à morte de Savimbi e à capitulação da UNITA, em 2002, Angola assiste ao “Espectáculo da Reconstrução” – é este o título do Capítulo II –, viabilizado por dois fatores determinantes: a alta internacional dos preços do petróleo e a parceria com a China, encetada em 2005. Se a recuperação rodoviária teve algum êxito, o mesmo não se pode dizer do sistema ferroviário, e muito menos se pode falar em qualquer melhoria na distribuição da energia elétrica ou no fornecimento de água potável. É com fundamentação sólida que o autor afirma: “Os projectos de construção e reabilitação das vias de comunicação foram uma componente relevante do desvario que dominou os anos do pós-guerra em termos de reconstrução, mas a pressa com que o governo quis alterar a paisagem física de Angola vai muito para além deles. A lista das obras gigantescas, mas inúteis, é demasiado longa para ser citada. […] O gigantismo está em sintonia com a sensibilidade dos decisores, mas as motivações subjacentes a estes projetos de capital intensivo não se esgotam aí: segundo um jornalista angolano, “quanto maior, melhor, quanto mais caro, melhor, pois maiores serão os ganhos [dos elementos próximos do regime]” (p. 98). Sem se poupar a críticas pertinentes à falta de transparência da Zona Económica Especial (ZEE) e à prodigalidade subjacente à inadequada ampliação do parque habitacional (pp. 103-115) – com destaque para o “desvario” do dormitório do Kilamba Kiaxi –, Soares de Oliveira não hesita em acrescentar: “o objectivo é fazer de Angola um país que se autodenomine moderno, dando ênfase às infra-estruturas […]. O ­investimento em recursos humanos e na criação de instituições são factores secundários nesta visão [e] no plano social, o destinatário das políticas governamentais não é a maioria pobre da população” (pp. 127-128). Embora reconhecendo que, no pós-guerra, houve algum alargamento da chamada “burguesia nacional”, o autor delimita-a a “cerca de meio milhão de angolanos para uma população total estimada em vinte milhões de habitantes” (p. 128), concluindo: “os benefícios globais decorrentes do processo de reconstrução foram escassos, decepcionantes e distribuídos de forma desigual, o que faz da sociedade angolana uma das mais desiguais de todo o mundo” (p. 136).

A referência à “insidiosa nostalgia do ano de 1973” (p. 130) articula-se com tudo o que será desenvolvido no capítulo III – “A consolidação do MPLA enquanto partido-estado” – e no capítulo IV – “O capitalismo oligarga à maneira de Angola” –, porquanto faz jus ao apelo à “descolonização interior” dos Angolanos, preconizado por vários autores, entre os quais nos incluímos, na convicção de que o neo-colonialismo permanece em Angola, mesmo manifestando-se preferencialmente numa vertente interna. O capítulo III analisa de que modo o partido-estado manipula a sociedade civil – designada com ironia por “sociedade incivil” – ou a juventude, criando instituições na dependência direta de JES; como consegue desacreditar a oposição, reduzida a uma UNITA derrotada e parcialmente subornada, a um PRS condenado ao estigma do regionalismo, e a um promissor CASA-CE; como sustém o paiol de pólvora dos musseques através das igrejas, do futebol e da música (kuduro); ou como, numa pretensa conquista do interior do território angolano, que não dominava antes de 2002, procede a estratégias ardilosas, evidenciando-se o suborno das autoridades tradicionais, os sobas, com base nos mesmos modelos do estado colonial outrora perfilhados pelos portugueses.

O capítulo IV, por sua vez, estabelece a distinção entre os grupos empresariais que acumularam fortunas entre 1992 e 2002, ou seja, após a “democratização” mas ainda em tempo de guerra, e outros que emergiram já na era da paz. Em ambos os casos, trata-se de um “capitalismo rentista”, porquanto na retaguarda está sempre a tríade JES/SONANGOL/petróleo. Mas eis como o autor caracteriza a estratégia seguida pelo partido-estado para diferenciar o segundo caso do primeiro: “utilizar a influência financeira e reguladora do estado para aumentar o seu peso junto do sector privado externo, inicialmente em Angola e logo a seguir no plano dos “investimentos estrangeiros cruzados”; [e] agir como facilitador junto das bases de apoio internas privilegiadas, de maneira a estas participarem nas oportunidades geradoras de lucros resultantes da expansão económica em tempo de paz. Alguns poderão entendê-lo como uma forma evoluída de prática rentista, mais do que como transição para o capitalismo. No entanto, constitui um passo importante quer em dimensão, quer em complexidade, diferente do amadorismo empresarial da década de 1990” (p. 210). No nosso habitual descrédito sobre qualquer roupagem darwinista ou evolucionista, discordamos neste ponto do autor, pois, na nossa modesta opinião, não se tratou de “passo” algum e sim de um “marca-passo”. Em contrapartida, concordamos plenamente com a brilhante abordagem da vida dos oligarcas angolanos desenvolvida no mesmo capítulo (pp. 205-238). E compreendemos o mimetismo do povo angolano em relação à elite, espelhado na frase: “Os angolanos podem desejar livrar-se dos oligarcas, mas também querem transformar-se neles” (p. 224). Ocorre-nos, contudo, uma questão: até quando?

Ricardo Soares de Oliveira parece não lhe ser insensível. Demonstra-o ao insinuar, no capítulo V, as fragilidades das parcerias angolanas no plano internacional – a China, a Coreia do Sul, o FMI, os EUA, ou mesmo os influentes Brasil e Israel ou o subserviente Portugal – e ao reconhecer o descontentamento das novas gerações. E também ao advertir, na conclusão: “um colapso dos preços do petróleo […] abalaria as escolhas do partido-estado e criaria um extraordinário grau de imprevisibilidade na vida angolana” (p. 305). É, indubitavelmente, uma premonição.

Se não partilhamos da bizarria contida nas palavras finais “Angola começa agora” – pois Angola já começou há muito tempo, além de que, na vez delas, preferíssemos as inextinguíveis palavras do poeta, “Sagrada Esperança” –, reconhecemos que as páginas da história de Angola a escrever no futuro serão diferentes. E algumas já constam desta obra fulgurante de Ricardo Soares de Oliveira.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 

MARGARIDO, A. (1992), “O testamento histórico-político de Mário António [Fernandes de Oliveira]”. Finisterra (Revista de Reflexão e Crítica), 9, pp. 161-166.         [ Links ]

PINTO, A.O. (2013), Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das suas Culturas (1924-1939), Prefácio de Isabel Castro Henriques. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia.         [ Links ]

PINTO, A.O. (2015), História de Angola. Da Pré-História ao Início do Século XXI, Prefácio de Elikia M’Bokolo e Posfácio de Adriano Mixinge. Lisboa, Mercado de Letras Editores.         [ Links ]

TALI, J.M.M. (2001), Dissidências e Poder do Estado. O MPLA Perante Si Próprio (1962-1977), Luanda, Nzila (2 vols.         [ Links ]).

VERA CRUZ, E.C. (2005), O Estatuto do Indigenato – Angola – A Legalização da Discriminação na Colonização Portuguesa, Lisboa, Novo Imbondeiro.         [ Links ]

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