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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa jun. 2016

 

RECENSÃO

VICENTE, Filipa Lowndes

Entre Dois Impérios: Viajantes Britânicos em Goa (1800-1940),

Lisboa, Tinta da China, 2015, 362 pp.

ISBN 9789896712945

 

Elsa Peralta

*Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Estudos Comparatistas, Alameda da Universidade — 1600-214 Lisboa, ­Portugal. E-mail: elsa.peralta@campus.ul.pt

 

Filipa Lowndes Vicente já nos habitou ao rigor com que conduz a sua investigação. Este livro não é exceção. Fruto de mais de dez anos de pesquisa, Entre Dois Impérios: Viajantes Britânicos em Goa (1800-1940) oferece-nos uma “abordagem histórica de múltiplas faces”, feita de comparações e cruzamentos coloniais, à forma como o outro se torna visível e imaginado na Europa através de imagens e de uma ampla cultura visual, mas também através de relatos escritos. No concreto, debruça-se sobre os viajantes britânicos em Goa e no papel das suas narrativas de viagem na produção de uma imaginação dupla: por um lado, a supremacia e a vitória do modelo colonial britânico; por outro, a inferioridade, decadência e anacronismo do português. No caso em estudo, esta representação tem no seu centro a imagem (visual e escrita) da Velha Goa em ruínas e semiabandonada do século XIX, “a metáfora perfeita para a história do auge e declínio do império português”.

O livro está organizado em duas partes, precedidas de uma longa Introdução, com o título “Conhecimentos e cruzamentos coloniais”, na qual estão bem firmadas as opções metodológicas e a grelha analítica a partir da qual se devem ler as descrições das viagens e dos viajantes ao longo do livro. Este é um livro de comparações entre mundos e posições, que se encontram e embatem no quadro de relações assimétricas de poder, dentro dos impérios e entre impérios. Olhando para as tensões e negociações implicadas em tais encontros coloniais, Filipa Lowndes Vicente apoia-se no conceito de “zonas de contacto” de Mary Louise Pratt (1992), numa abordagem consistente, onde se podem entrever também os contributos de Frederick Cooper e Ann Laura Stoler (1997), que problematiza as próprias categorias de colonizador e colonizado dentro do sistema colonial. Seguindo esta abordagem, os encontros coloniais são simultaneamente perspetivados a um nível macro e a um nível micro. O cisma religioso entre católicos e protestantes, com suas respetivas hierarquizações culturais entre Europa do Norte e Europa do Sul, os alinhamentos geopolíticos europeus em relação à questão colonial, colocando Portugal numa posição subalterna em relação à Grã--Bretanha, os grandes conflitos políticos europeus, desde as lutas entre absolutistas e liberais até à segunda guerra mundial, perspetivam os encontros coloniais numa dimensão macroestrutural capaz de enquadrar devidamente os modos de dominação locais. Mas por outro lado Filipa Lowndes Vicente localiza o seu olhar, dando evidência dos múltiplos contactos, entrecruzamentos e vozes implicados nos encontros coloniais. São muitas e diversas as vozes que escrevem sobre a Índia portuguesa e se bem que o seu valor autoral esteja remetido para o domínio britânico e para a autoridade masculina, Filipa Lowndes Vicente dá-nos a ver os muitos paradoxos que atravessam as posições de poder, desde as ambivalências posicionais de género e de classe, à identificação de diferentes grupos entre os habitantes locais e formas de exclusão entre si e às muitas formas de resistência às hierarquias coloniais.

Com efeito, este livro pode ser entendido como versando sobre a enorme teia de ambivalências e relações cruzadas que emaranham a relação colonial, sem que contudo a autora perca vista do sentido linear da relação de dominação existente: colonizadores dominam sobre colonizados; homens dominam sobre mulheres. Mas na relação colonial há instâncias em que mulheres (da nação colonizadora) dominam sobre homens (colonizados), colonizados resistem às hierarquias coloniais, e colonizados dominam outros colonizados. Tudo isto atravessado por cismas religiosos, tensões geopolíticas e conflitos europeus. Adotando uma abordagem que privilegia a descrição empírica, Filipa Lowndes Vicente apresenta-nos assim um sofisticado modelo teórico e analítico a partir do caso das narrativas dos viajantes britânicos a Goa.

A fineza da análise está patente a muitos níveis, alguns deles menos evidentes. Este livro é um importante contributo para a análise do que a autora designa de um “duplo orientalismo”, ele próprio consequente de uma “dupla colonização”, em que representações de superioridade e de inferioridade têm uma clara intencionalidade política. Mas é também um importante contributo para o estudo comparativo entre orientalismos, identificando o orientalismo português como um orientalismo católico, ao contrário do britânico, inseparável de uma política de conversão religiosa. Por outro lado, este livro tem o grande mérito de complexificar as definições do colonial, quebrando o esquematismo do alinhamento convencional de sujeitos coloniais – Negro/Branco, Eu/Outro. Na senda de Homi Bhabha (1984), ou mesmo de Franz Fanon (1952), Filipa Lowndes Vicente aborda a diluição de fronteiras entre “europeus” e “hindus” no contexto colonial da Índia portuguesa como resultado de uma operação mimética feita pelo contacto, pelo tempo (longo) e pela mudança cultural, a qual, sendo submetida a processos de construção de imaginários sobre a história e a identidade, por via da escrita e da fotografia, passa a ser imaginada como mistura e hibridismo. Talvez estejam aqui, como Filipa Lowndes Vicente sugere, as raízes visuais e textuais da proposta lusotropicalista de décadas posteriores. Mas isso só aconteceria depois. O primeiro encontro dos viajantes britânicos com a Índia portuguesa é ainda um encontro selvagem, não enquadrável nas categorias estabilizadas da diferença percebida e, pelo tanto, sem correspondência com as suas expectativas de alteridade.

Com o título “Colonizar a colónia vizinha: viajantes britânicos em Goa”, a Parte I do livro fala-nos precisamente desse encontro, descrevendo e analisando as incursões dos viajantes ao território de Goa, as quais revelam, através das narrativas resultantes, o olhar do mundo sobre o seu tempo, mas também olhares marcados por posições sociais e idiossincrasias individuais. Em dez capítulos, Filipa Lowndes Vicente acompanha o tempo da instituição colonial britânica no subcontinente indiano a partir dos relatos e narrativas destes viajantes, desde finais do século XVIII até 1940, nas vésperas do fim do ciclo de auge da presença britânica na Índia. São todos britânicos, com exceção de um francês, e são todos homens, com exceção de uma mulher. Índices da masculinidade inerente ao próprio projeto imperial britânico – racional, progressista, militarizado e explorador – estas narrativas simultaneamente traduzem e constroem a hegemonia da modernidade (britânica) face ao medievalismo das doutrinas religiosas e práticas culturais (portuguesas), expressas concretamente na comparação entre a supremacia do império britânico e a decadência do português. É este o tema central desta coletânea de narrativas de viagem a Goa, manifesto no menosprezo em relação aos portugueses e ao seu proselitismo católico, na jocosidade sobre a pobreza material e educacional da colónia portuguesa ou na crítica à “preguiça” dos portugueses. São comparações condescendentes, algumas delas quase humorísticas, que nos dão conta do embate entre diferentes sistemas de conhecimento, no concreto o britânico e o português, revelados no contexto mais lato de uma Europa dividida entre protestantes e católicos, e entre Norte e Sul. O caso português surge então para os britânicos como uma lição histórica a não repetir e da qual tirar ensinamentos. Surge também como um caso a disciplinar no quadro do desígnio imperialista britânico. O moral confunde-se com o instrumental, e as diligências em prol do progresso e do esclarecimento facilmente se tornam explícitas nas sugestões da transferência do governo de Goa para os britânicos. Mas os mecanismos da dominação não se reduzem à relação entre dominantes e dominados, antes se complexificando em escalas intermédias que se revelam em tensões e negociações entre dominantes-dominantes e dominados-dominados, nos muitos níveis das relações do quotidiano, desde os modos de resistência local à presença britânica em Goa ou às subtilezas das negociações de poder entre diferentes grupos sociais.

O convite a olhar as ambivalências e pensar as dicotomias em espaços cruzados – entre impérios e entre posições sociais –, alarga-se na Parte II do livro, “Mulheres, viagens e escrita: as narrativas de Isabel Burton e Katherine Guthrie em Goa na década de 1870. Cruzando os estudos coloniais com os estudos de género, esta parte do livro de Filipa Lowndes Vicente centra-se nos relatos escritos de duas mulheres britânicas que, como tantas outras, escreveram sobre a Índia britânica, mas que delas se distinguem por também terem escrito sobre a Índia portuguesa. Une-as o facto de serem mulheres, britânicas, e de terem escrito sobre Goa. Mas distingue-as as respetivas vozes autorais, cada uma por si fornecendo um olhar próprio sobre o estranho encontro com a outra colónia. Isabel Burton, um olhar de católica inglesa devota de São Francisco Xavier; Katherine Guthrie, uma abordagem protocientífica a temas antropológicos e de história natural. Mas cumpre perguntar em que medida se distinguem estas duas mulheres dos homens que também escreveram sobre Goa para merecerem estar incluídas numa parte destacada do livro? Nos relatos de ambas podem encontrar-se muitas das assunções e estereótipos sobre os portugueses e sobre a colonização portuguesa já firmados pela autoridade de vozes masculinas, correspondendo os seus escritos às expectativas do público e do mercado editorial britânicos a que se dirigem. Além disso, como Filipa Lowndes Vicente nos informa, nenhuma destas mulheres manifesta preocupações com os direitos das mulheres. Mas é justo reconhecer que a escrita destas mulheres se distingue, não pela sua consciência de género, mas pela posição ambivalente que ocupam na hierarquia colonial, abaixo dos homens, mas acima dos demais sujeitos coloniais, homens ou mulheres. A descrição dos itinerários destas escritoras é assim um observatório perspicaz para a exploração das muitas ambivalências e tensões que atravessam o espaço imperial e um dos contributos mais valiosos deste livro.

Uma nota final de destaque merece ainda ser dirigida à elaboração em torno da ideia de ruína. No âmbito concreto do caso em estudo, a conceção de ruína tem uma significação dupla: por um lado, é a metáfora do declínio (português) e, inversamente, signo da vitória do progresso (britânico); por outro, a ruína é um índice do passado que, assim concebido no quadro do Romantismo, ganha valor de consumo e de imaginação. A consagração da ruína da Velha Goa, a par com o culto da relíquia de São Francisco Xavier, faz parte do processo de imaginação da memória histórica goesa, a qual, tal como noutros locais, se constrói na medida direta da perceção da inevitabilidade do seu desaparecimento, conduzindo a ações de cariz preservacionista e historicista. As narrativas de viagem e os viajantes, as ações de musealização e de restauro, a fotografia, os livros-guias, todos contribuíram para a construção de Goa como um “lugar-museu”. Como refere David Lowenthal na sua obra clássica The Past is a Foreign Country (1985), a ruína é o confronto de uma cultura com o seu fim. A formalização da Velha Goa como ruína é a sinalização do fim da sua grandeza, da sua estrutura e da sua civilização. A “Cidade dos Mortos”, como chamou Isabel Burton à Goa desolada do século XIX, mais que uma legenda do fim, é o corpo desse fim, recordando-nos sobre o poder expressivo das coisas, tanto das vivas como das mortas.

Por todas estas razões este é um livro que revela maturidade teórica, rigor analítico, mas também gosto antiquário, presenteando-nos com uma profusa documentação textual e visual sobre a Velha Goa dos séculos XIX e inícios de XX. Desta coleção de virtudes resulta um livro que nos faz repensar as dicotomias da diferença para nos situar no movimento ambivalente entre raça e género, na contradição entre cultura e classe, e na instabilidade da classificação dos sujeitos coloniais. A sua leitura recomenda-se.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 

BHABHA, A. (1984), “Of mimicry and man: the ambivalence of colonial discourse”. October, 28, pp. 125-133.         [ Links ]

COOPER, F., STOLER, A.L. (eds.) (1997), Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Bourgeois World, Berkeley, University of California Press.         [ Links ]

FANON, F. (1952), Peau noire, masques blancs. Paris, Éditions du Seuil.         [ Links ]

LOWENTHAL, D. (1985), The Past is a Foreign Country, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

PRATT, M.L. (1992), Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation, Londres e Nova Iorque, Routlege.         [ Links ]

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