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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa jun. 2016

 

RECENSÃO

CALADO, Virgínia Henriques

A Proposta Macrobiótica de Experiência do Mundo,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2015, 340 pp.

ISBN 9789726713531

 

Vasco A. Valadares Teixeira*

*Universidade de Lisboa, ICS-UL, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 — 1600-189 Lisboa, Portugal. E.mail: vasco.teixeira@ics.ul.pt

 

Esta obra constitui a versão revista e reformulada da dissertação de doutoramento, ÀMesa com o Universo, a Proposta Macrobióticade Experiência do Mundo, apresentada por Virgínia Calado, em 2012, ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. A sua estrutura contém, além dos agradecimentos formais: prefácio (do diretor do Instituto de Macrobiótica de Portugal, IMP), a introdução, 5 capítulos, considerações finais e apêndices.

Partindo da teoria e conceitos das ciências sociais (antropologia, sociologia, história), é sobretudo a antropologia da alimentação que proporciona a estrutura de todo o questionamento do fenómeno “macrobiótica”. A resenha das mais significativas abordagens antropológicas à alimentação, dos autores clássicos às principais tendências da contemporaneidade, abrange, de igual modo, o contexto dos estudos relativos ao tema produzidos em Portugal. A apresentação das perspetivas pelas quais as questões da alimentação têm sido problematizadas no país é feita através da identificação de autores e estudos realizados (culinárias de inspiração religiosa, identidades, cozinhas regionais, patrimonialização, nacionalismo, classes e grupos sociais, cosmopolitismo, práticas, expressão de consumos, estratégias e manipulações). Aliás, a autora desenvolve a sua investigação tendo como pano de fundo a situação nacional. O seu primeiro contacto com a macrobiótica surgiu, afinal, por via da ementa oferecida na cantina da Cidade Universitária em Lisboa.

A metodologia aplicada na investigação revela-se cuidada e adequada aos objetivos. A consulta de um número apreciável de fontes documentais e a vasta bibliografia apresentada traduzem um grande esforço de conceptualização do projeto, na sua transversalidade de conhecimentos científicos. Também se afigura notável a profunda investigação de terreno, mediada entre 2001 e 2009, que a complementa em termos etnográficos. Esta envolveu nomeadamente o recurso a informantes ligados a instituições ou a vivências fundamentais no percurso e nas práticas da macrobiótica em Portugal (desde finais dos anos 60 do século XX) e a formação adquirida no seu estrito domínio (cursos de cozinha macrobiótica e de terapêutica zen shiatsu, em Braga, e suas práticas, frequência de campos de Verão, de palestras e conferências temáticas em Lisboa, curso curricular de macrobiótica Michio Kushi, frequência do Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), o principal centro de divulgação). Neste último, procedeu ainda a uma intensa recolha de dados, na qual se inclui a observação e participação em situações de aconselhamento terapêutico (consultório de orientação).

Num sentido mais comum, a macrobiótica envolve a influência de filosofias e religiões orientais (budismo zen, taoismo, confucionismo) às quais se ligam práticas alimentares específicas, essencialmente vegetarianas, onde predomina o arroz integral (entre outros cereais), a soja e determinadas algas. Contudo, o carácter sui generis e a complexidade dos elementos implicados no seu todo — e o seu todo contempla uma cosmovisão holista dotada de uma dinâmica que procura o equilíbrio na complementaridade de dois princípios de diferenciação opositiva intrínsecos a todas as entidades manifestas no universo (yin-yang) —, transcendem o simples entendimento da macrobiótica como sistema ou modelo alimentar ou, sequer, como simples regime nutricional ou dietético.

A descrição e caracterização da macrobiótica é desenvolvida a partir da sua expressão como ideologia (cosmovisão), que incorpora, num todo, um sistema ou modelo alimentar e a intrínseca aceção de sistema terapêutico, e a sua dimensão como produto social. Configura-a a manifesta hibridez de uma construção dinâmica feita de constantes reformulações e adaptações conjunturais que refletem, nas palavras da autora, “contaminações e influências diversas”. Estas são identificadas e compreendidas na dinâmica histórica e social que acompanha a sua construção e permanente atualização.

A génese e a historiografia da macrobiótica são apresentadas, por um lado, logo pela referenciação linguística (raiz grega) e conceptual reconhecidas desde a Antiguidade (Heródoto, Hipócrates, Aristóteles) e pela sua disseminação no Ocidente, com menção específica registada a partir do século XVIII (Hufeland, A Macrobiótica ou a Arte de Prolongar a Vida Humana, 1797); por outro lado, pela sua formulação moderna, de origem japonesa, em meados do século XX, com implantação e progressiva expansão a partir dos Estados Unidos da América e posteriormente na Europa Ocidental.

A par, identificam-se os sentidos interpretativos da sua construção, nomeadamente a ligação que a une à ideia de saúde, vida, bem-estar, e a que a funde num entendimento na dualidade corpo/espírito. A crescente expressão no mundo ocidental (inversa à sua divulgação e prática no contexto de origem, Japão, China) é enfatizada, já na presente proposta que a institui, inclusivamente como método terapêutico, por G. Ohsawa (1960) e seus discípulos, dos quais, a exemplo, se destaca Michio Kushi. Contudo, estes factos não deixam de ser referidos como reflexo de um percurso delineado por autores japoneses que, desde finais do século XIX, abordam e sistematizam os modelos tradicionais de conhecimento, valoração e práticas, que se plasmam na alimentação.

O êxito obtido nas diversas vertentes da sua expansão como prática e, de algum modo, também crença (alimentar e terapêutica) no mundo ocidental, a proposta e disseminação de produtos, a comercialização e o seu consumo à escala global, associam-se a propostas de estilos de vida alternativos, em sociedades onde o que se põe em causa é não a carência de alimentos, mas, sim, as soluções encontradas para a sua produção e as suas sequelas. Os problemas colocados pela industrialização da produção agro-alimentar, a segurança alimentar, a defesa da aproximação à natureza, as preocupações ambientais, as propostas de produção biológica, o entendimento ético que conduz ao vegetarianismo (e ao veganismo), as atitudes de oposição (moral e política) ao modelo social dominante, identificam-se como fatores próximos, ou mesmo associados, a esta postura macrobiótica.

A macrobiótica situa-se à margem das normas institucionalizadas, das interpretações e práticas sancionadas pelo poder no que respeita às conceções de vida, de saúde, ao entendimento do corpo e da sua terapia, enfim, ao todo que se consubstancia no regime alimentar e na terapêutica assumida, de algum modo, como um estilo de vida próprio, alternativo aos dominantes. Os membros dos grupos que praticam a macrobiótica constituem redes tecidas na partilha de convicções comuns, e que, de algum modo, assumem um sentido de “movimento” internacional que constitui, em termos geográficos, uma comunidade transnacional.

Existe hoje uma proximidade notória entre as indicações de uma alimentação saudável oriundas dos campos das ciências da nutrição e da biomedicina e as propostas da macrobiótica, tanto no que respeita à articulação em geral entre alimentação e saúde, como no que se reporta aos regimes alimentares prescritos.

A legitimação que tais factos lhe consagra é bem sublinhada pela autora, quando refere o trabalho de Campbell (2006), “Pode pois dizer-se que este estudo científico surge de alguma forma como a ‘prova científica’ das verdades que a macrobiótica procura veicular” (Calado, 2015, p. 89) nos modelos reconhecidos.

Neste retrato perscrutador, a macrobiótica é apresentada numa configuração global que a projeta em dois planos, simultaneamente distintos e complementares. O plano mais restrito, talvez, apresenta-se como um aprofundado e específico estudo monográfico sobre o tema (história, conceções e práticas), de elevado significado e interesse para quem procure uma informação substantiva sobre a macrobiótica. O plano mais abrangente que, não dispensando a contextualização do anterior, desenvolve uma investigação de propósito totalizante, que procura entender o fenómeno nas suas múltiplas dimensões: enquanto sistema e cultura alimentar; como manifestação ideológica que lhe confere uma dimensão terapêutica, uma leitura do corpo e do universo; como uma prática que, circulando no exterior das normas institucionais e suas prescrições, não apenas estabelece com elas um diálogo mutuamente profícuo, como reflete o perfil social dos seus praticantes a quem outorga atributos individuais capazes de os fazer agir, em consciência, para uma mudança que se projeta como a construção de um presente.

Em conclusão, esta obra apresenta uma pesquisa original e rigorosa, cujos contributos são fundamentais para o conhecimento de um movimento social tão influente como é o da macrobiótica. A extensão e profundidade das componentes ideológicas, alimentares e terapêuticas são identificadas como fatores determinantes de um todo que se manifesta, por sua vez, em estilos de vida e atitudes culturais dotados de uma dinâmica própria. A ética e o sentido crítico são reconhecidos como seu produto, em conflito com o sistema social dominante, e salientados, simultaneamente, como mecanismos de resistência e de mudança.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 

CAMPBELL, C. (2006), “T. Colin Campbell’s response to questions raised about the book The China Study. Starling Implications for Diet, Weight Loss and Long-Term Health”. In Vegssource.com. http://www.vegsource.com/articles2/campbell_china_response.htm.         [ Links ]

CAMPBELL, C., CAMPELL, T. (2006), The China Study: The Most Comprehensive Study of Nutrition Ever Conducted and the Startling Implications for Diet, Weight Loss and Long-Term Health, Dallas, Benbella Books.         [ Links ]

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