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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa jun. 2016

 

RECENSÃO

Jornal Português: Revista Mensal de Actualidades 1938-1951,

Caixa de 5 DVD, incluíndo 1 brochura ilustrada de 76 pp.

Legendas em Português/Inglês, 1018 min. PAL 4x3 (1:1,37) p&b

Dolby Digital 2.0 (Mono), Edições da Cinemateca Portuguesa

Museu do Cinema, dezembro de 2015

ISBN 9789726192725

 

Sofia Sampaio*

*Instituto Universitário de Lisboa, Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-IUL), Av. das Forças Armadas, Ed. ISCTE – sala 2n7, cacifo 237 — 1649-026 Lisboa, Portugal. E.-mail: psrss@iscte.pt

 

Os jornais ou revistas de atualidades existiram um pouco por todo o mundo, assumindo como principal tarefa a cobertura de atos oficiais e cerimónias públicas que, desde o início do cinema, haviam mostrado grande eficácia quer como atrações cinematográficas, quer como propaganda. Alguns casos famosos de imagens deste tipo incluíram, para citar o caso inglês, o Jubileu de Diamante da rainha Vitória, em junho de 1897; o funeral desta, em 1901; e as coroações de Eduardo VII e Jorge V, em 1902 e 1911, respetivamente. A guerra foi outro tema de eleição, desde, pelo menos, a Guerra dos Bóeres (1899-1902), justificando o envio, em julho de 1915, de operadores de câmara para a frente ocidental da Grande Guerra. A invenção do jornal de atualidades – enquanto montagem de vários filmes subordinados a uma narração (com recurso a títulos ou sonorizada) – é atribuída à francesa Pathé, em 1908, mas outros exemplos se lhe seguiram. Foi tal o sucesso do género que abriram cinemas próprios para a sua projeção contínua. Nas décadas seguintes, as atualidades viram-se progressivamente remetidas para o início das sessões de cinema, como complemento dos chamados “filmes de fundo” (as longas-metragens de ficção). Aí, continuaram a ser projetadas, mesmo depois do aparecimento da televisão e, nalguns casos, até inícios dos anos 80.

É neste contexto cinematográfico internacional que deve ser entendido o jornal de atualidades que a Sociedade Portuguesa de Actualidades Cinematográficas (SPAC) produziu, entre 1938 e 1951, a pedido do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), rebatizado, a partir de 1944, de Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI). Os 101 números que resultaram desta parceria, seis dos quais especiais, todos com uma duração média de dez minutos, encontram-se agora disponíveis numa caixa de cinco DVD que a Cinemateca Portuguesa lançou em dezembro de 2015.

Como tem sido várias vezes sublinhado, o Jornal Português constituiu uma parte importante da estratégia de propaganda do Estado Novo, que encontrou em António Ferro, à frente do SPN/SNI até 1949, um dos principais arquitetos e impulsionadores. Com efeito, apesar de não deixarem de lado os chamados géneros “brandos” (i.e. as variedades, as curiosidades, as catástrofes, os desportos, e os interlúdios pitorescos e turísticos), que os investigadores Rafael Tranche e Vicente Sánchez-Biosca (2006) identificaram no congénere espanhol (o célebre e não menos fascista NO-DO, produzido entre 1943 e 1981), o grande impulso das atualidades portuguesas foi a propaganda política. Grande parte dos números são dedicados à revista das comemorações, encenadas ao milímetro, as quais dão corpo e voz à narrativa nacionalista do regime ou assinalam as suas obras, sempre inauguradas com pompa e circunstância, por mais modestas que pudessem ser (tanto era motivo de festa um novo quartel ou hospital como um parque infantil ou um posto de turismo na fronteira).

O que parece evidente é que o Jornal Português tinha tão pouco de notícias como de atualidade. Aquelas parecem andar a reboque da agenda do SPN, dispensando qualquer esforço jornalístico ou de reportagem por parte dos operadores da SPAC. Daí, talvez, a irregularidade da série, que, na maior parte das vezes, nem chegava a ser mensal. Disso se queixa o próprio gerente da SPAC, Francisco Correa de Mattos Jor., num relatório de 1951, incluído na brochura ilustrada que acompanha estes DVD. Ainda que impostos pela entidade que fizera a encomenda, os temas comemorativos – que culminariam nos números especiais dedicados às comemorações do duplo centenário que ocuparam todo o ano de 1940 – também asseguravam aos filmes uma existência tranquila num “tempo fora do tempo”, perdido entre o presente (que não interessava mostrar) e a intemporalidade própria dos atos rituais, inaugurais e festivos. A marca intemporal resolvia, até certo ponto, o problema da exibição irregular e datada. De um ponto de vista cinematográfico, estes temas permitiam também que o processo de produção fosse relativamente previsível e automático, garantindo resultados eficazes ao nível visual, já que os próprios eventos – exposições, paradas, exercícios militares, juramentos de bandeira, procissões, desfiles de bombeiros, missas campais, cortejos “etnográficos”, “folclóricos” e “históricos” – forneciam à câmara, a custo zero, uma inesgotável e apreciada mise-en-scène.

É precisamente por aquilo que mostram que estes filmes prometem trazer um importante contributo – como complemento, interpelação e interrogação – não só para a história contemporânea, como também para as ciências sociais e humanas, que nem sempre têm sabido prestar a devida atenção às imagens. Não obstante as justificadas reservas em relação a uma conceção de imagens fixas e em movimento como documentos transparentes, que “falam por si” e, como tal, podem ser entendidas literalmente, todas as imagens possuem um valor indexical único – ao nível quer dos conteúdos quer dos modos e estilos de apresentação e representação – que seria um erro ignorar. A verdade é que, depois de assistirmos a centenas de imagens pontuadas de saudações nazis, é difícil duvidar do caráter eminentemente fascista do Estado Novo. É igualmente inequívoca a mistura de pragmatismo e ideologia com que o regime corteja, em planos apostos (e com uma candidez que chega a ser confrangedora), representantes da ­Inglaterra e da Alemanha (n.º 1), enaltece os soldados portugueses que lutaram (e morreram) ao lado de Franco, recebe a visita de falanges espanholas e glorifica as italianas.

O meio visual é particularmente útil na análise das presenças e ausências que marcaram o palco de cada evento filmado. O império é repetidamente invocado e celebrado (Lisboa é a “capital do império”), mas nunca mostrado. Das viagens do chefe de Estado “às terras portuguesas de África” só vemos imagens da partida e da chegada, ambas no Terreiro do Paço. Do mesmo modo, dos pavilhões coloniais da Exposição do Mundo Português – relegados para as traseiras do Mosteiro de Santa Maria de Belém – só nos são mostradas breves imagens (n.º 19). Num jornal que se quer “português” não deixa de ser curiosa a ausência de imagens das “províncias ultramarinas”, constantemente proclamadas como “portuguesas” (a exceção é a visita do governador do Congo Belga a Angola, em 1950, noticiada no n.º 91). A guerra e a revelação das suas atrocidades (o holocausto) são outras ausências flagrantes.

Por outro lado, entre as presenças mais notórias, estão as crianças e os jovens, que asseguram a simpatia e o afeto dos espetadores, ao mesmo tempo que figuram como “garantia do futuro da raça” e “sinal de uma primorosa ordem educativa” (n.º 17). Eles e elas vêem-se cuidadosamente arrumados em cortejos festivos, dispostos em filas (no caso das “crianças pobres”) para receber a “beneficência” do regime, incorporados nas várias escolas e associações militares e paramilitares – os Pupilos do Exército; a Mocidade Portuguesa; a Mocidade Feminina; a Legião Portuguesa; os Flechas Navais (de Espanha); a Jeunesse Française (n.º 33); e a Juventude Fascista italiana (numa notícia de rara atualidade sobre a visita de Neville Chamberlain a Roma). A câmara detém--se nos movimentos ordenados e sincronizados de marchas, ginástica, saltos de plinto, esgrima, que oferecem imponentes planos de conjunto. “Há bem poucos anos”, diz-nos o narrador a propósito de uma festa de ginástica, “seria impossível apresentar imagens como estas” (n.º 17). “Imagens como estas” são prova viva da atenção que várias entidades dedicavam às faixas etárias mais jovens, em cujos corpos diligentemente se imprimia a ação disciplinadora do regime.

Uma outra presença marcante é a dos naufrágios de navios ao longo da costa portuguesa, e respetivos resgates. Inseridos num dos tópicos que mais atraía o público das atualidades (as catástrofes), estas notícias prestavam-se bem aos usos políticos dos temas favoritos dos descobrimentos e do mar português, para além de proporcionarem o panegírico à moderna “engenharia portuguesa” (n.º 12). Por fim, merecem igual atenção a presença e a ausência das mulheres, que não deixam de “interromper” imagens exclusivamente preocupadas com o espaço público, de caráter predominantemente masculino. As mulheres são, afinal, atores principais no processo de produção e reprodução, não apenas da “grande família portuguesa”, mas também dos rituais que a celebram, nos quais são chamadas a participar enquanto mães, esposas, viúvas, educadoras, cuidadoras e mesmo eleitoras (n.º 5). Entre as muitas razões para se acharem “gratas a Salazar”, a principal é a da não-intervenção portuguesa no conflito armado, que justifica uma escultura oferecida, em seu nome, ao presidente do Conselho, em 1948 (n.º 73).

Se as imagens do Jornal Português sugerem, em regra, um horror ao inesperado (i.e. ao evento, na verdadeira aceção da palavra), que relação tiveram elas com o quotidiano, fonte das notícias “brandas” que atraíam o público desde os primórdios do cinema? Rafael ­Tranche e Vicente Sánchez-Biosca (1993, 2006) defenderam a “permeabilidade” do NO-DO ao quotidiano, sobretudo depois da guerra, quando a invetiva ideológica abrandou para dar lugar à “vida surpreendida” pela câmara (1993, p. 43). Os operadores da SPAC não deixam de sublinhar os momentos (raros) em que conseguem registar imprevistos, como quando a nau “Portugal”, uma das atrações da exposição do Mundo Português, tomba durante o lançamento ao mar (n.º 22).

No entanto, o final da guerra não traz mudanças significativas, nem no regime nem no Jornal Português, que continua a registar os eventos comemorativos da nação e do regime, onde se contam as festividades dos 20 anos da “Revolução Nacional” (n.º 59) e vários cortejos histó­ricos (n.º 70) e etnográficos. Os últimos multiplicam-se, agora sob o pretexto assistencialista, pelos “cortejos das ­oferendas” que têm lugar em Évora, ­Covilhã e Castelo Branco (n.º 64, 66 e 71). Em janeiro de 1948, assinala-se o encerramento das comemorações centenárias de Lisboa (n.º 72), mas as comemorações não cessam. Seguem-se, no mesmo ano (n.º 79), a inauguração do Museu de Arte Popular, rebento tardio da Exposição do Mundo Português e último legado de Ferro, e a visita do General Franco, em 1949, motivo de três números especiais (n.º 86, 87 e 88).

Dito isto, outros temas também emergiram ou conseguiram afirmar-se no pós-guerra. São noticiados os vários “melhoramentos” em curso: ferroviários, na educação, na saúde, no abastecimento de água e luz, nas vias de comunicação (construção de barragens, pontes e estradas), e no turismo (inauguração de pousadas e hotéis). O esforço de industrialização do país, segundo um paradigma nacional-desenvolvimentista, é mostrado e elogiado – por exemplo, a propósito da inauguração da MABOR, a primeira fábrica de pneus em Portugal (n.º56). A participação americana neste evento é um indício (confirmado em números seguintes) da influência crescente dos Estados Unidos, parceiro da Aliança Atlântica (de que Portugal foi membro fundador) a partir de 1949. O Jornal dá relevo às várias visitas da marinha americana, sublinhando a “simpatia” e “amizade” que une os dois povos (n.º 62, 72). Por fim, um outro tema que sobressai é Fátima, que aparecera pela primeira vez em 1944 (n.º 42), e que se torna num local de peregrinação e turismo obrigatório, sobretudo depois da visita do Legado Pontifício, em 1946 (n.º 58).

Um desenvolvimento interessante, ainda que subtil – que vem no sentido da “permeabilidade ao quotidiano” supracitada – é o destaque que se começa a dar a espetáculos que atingem grande ­popularidade. É o caso da chegada ao Estádio Nacional da XI Volta a Portugal em Bicicleta, dos jogos de futebol com a França (n.º 57) e com a Espanha (n.º 65), e da tourada oferecida às forças navais americanas em visita a Lisboa (n.º 62). Todos eles merecem reportagens longas, que vão muito além da mera comunicação dos resultados ou da “mensagem” propagandística, já que também incluem informação específica e pormenorizada sobre cada modalidade e performance. No caso da Volta a Portugal em Bicicleta, descrita como “a mais importante jornada desportiva do nosso país”, também se dá conta dos distúrbios com o público, que tem de ser afastado pela polícia. O narrador demora-se ainda no relato dos jogos de futebol (amplamente ilustrados por imagens), num estilo coloquial em que interpela o espetador.
O jogo Portugal-Espanha, a que se atribui uma assistência de 80 000 pessoas, ocupa os 10 minutos do filme. Dir-se-ia que o Jornal está mais atento aos elementos de espetáculo e entretenimento destes eventos, procurando trazê-los para a sala de cinema. O caráter de espetáculo do próprio cinema é, assim, também ele assumido e reforçado.

O Jornal Português deixou de ser produzido em 1951, data do relatório de Correa de Mattos, que terá pretendido renovar o contrato entre a SPAC e o SNI, sem sucesso. Os parcos recursos de que dispunha, a não-obrigatoriedade da sua exibição nos cinemas, a impossibilidade de incluir “assuntos estrangeiros” que o tornavam falho em notícias e, consequentemente, irregular (queixas que o gerente da SPAC refere na sua missiva) – e, claro está, a sua submissão à agenda propagandística – poderão ter ditado o seu fim.

Apesar do seu estatuto inabalável enquanto monumento da propaganda do Estado Novo, o Jornal Português continua a levantar dúvidas sobre a sua receção. É através do público, para o qual existe, que o cinema se relaciona com o presente. É essa relação que faz com que queira ser propaganda ou, pelo contrário, que queira ou seja forçado a deixar de o ser. Mesmo quando foi visto, o Jornal Português teve de contar, como qualquer outro filme, com as expectativas do público, que se deslocava ao cinema por várias razões, e que respondia ao que via também de diferentes modos. O encontro dos filmes com o público é um espaço sombrio, de difícil investigação, mas não pode ser ignorado. É importante notar que, no reverso do discurso oficial, as paradas assistencialistas lembravam a fome e a miséria que grassavam pelo país; as condecorações dos familiares de guardas da  GNR mortos “em defesa da ordem” (n.º 63) forneciam um testemunho involuntário dos focos de desordem persistentes (que podiam ter causas políticas); o próprio lema assistencialista, “os que podem a favor dos que precisam” (n.º 71) deixava transparecer um país dividido em dois, numa polarização que, para muitos, era cada vez mais sinónima de “classe”. A contracultura que se ia organizando pelo menos desde os anos 40 podia ler com alguma ironia o anúncio da inauguração de “mais um parque infantil”. A história do Jornal Português, que espera ainda para ser contada – apesar de uma primeira e meritória tentativa levada a cabo por Maria do Carmo Piçarra (2006; 2011) – terá necessariamente que passar pela história dos encontros e desencontros entre as intenções propagandísticas do seu patrocinador, as expectativas de informação e entretenimento do seu público (formadas no contacto com outras atualidades filmadas), e os esforços de conciliação destes aspetos pelos profissionais que, no dia a dia, faziam e mostravam os filmes.

Não é demais sublinhar o papel crucial que esta coleção de DVD vai desempenhar neste ambicioso projeto. Ao tornar possível o visionamento integral (faltam dois números, considerados perdidos) do Jornal Português fora das instalações do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), esta coleção de imagens, que ultrapassam as 16 horas (incluindo cerca de uma hora de material inédito), vai certamente contribuir para a realização de mais e melhores estudos sobre muitos dos temas e questões que aqui mencionámos e outros que se virão a colocar. As legendas em inglês (a própria brochura é bilíngue) prometem o diálogo, há muito urgente, da cinematografia do Estado Novo com outras cinematografias da mesma época, para lá do bloco ibérico e das usuais comparações (tendencialmente superficiais) com os outros regimes fascistas. Novos elementos poderão surgir sobre questões tão importantes como a propaganda, o papel cultural, social e político das imagens em movimento, ou a própria natureza – e alcance – dos regimes fascistas.

Por fim, não podemos deixar de saudar a iniciativa da Cinemateca Portuguesa de abrir uma linha de edições próprias neste suporte. A disponibilização de conteúdos do vasto e rico acervo conservado pelo ANIM vem cumprir uma das mais importantes missões desta entidade pública – a de garantir o acesso a estes conteúdos – e só poderá beneficiar a investigação e divulgação destas imagens. Outros lançamentos do género serão igualmente bem-vindos.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 

PIÇARRA, M. do C. (2006), Salazar vai ao Cinema: O Jornal Português de Actualidades Filmadas, Coimbra, Minerva.         [ Links ]

PIÇARRA, M. DO C. (2011), Salazar vai ao Cinema II: A ‘Política do Espírito’ no Jornal Português, Lisboa, DrellaDesign.         [ Links ]

TRANCHE, R., SÁNCHEZ-BIOSCA, V. (1993), “NO-DO: Entre el desfile militar y la foto de família”, Archivos de la Filmoteca, 15, pp. 40-53.         [ Links ]

TRANCHE, R., SÁNCHEZ-BIOSCA, V. (2006), NO-DO: El Tiempo y la Memoria, Madrid, Ediciones Cátedra/ Filmoteca Española.         [ Links ]

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