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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa jun. 2016

 

RECENSÃO

DUQUE, Eduardo

Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas. Perfis e Tendências da Religiosidade em Portugal numa Perspetiva Comparada,

Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2014, 338 pp.

ISBN 9789897550515

 

Helena Vilaça*

*Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Departamento de Sociologia, Via Panorâmica, s/n — 4150-564 Porto, Portugal.E-mail: hvilaca19@gmail.com

 

O fenómeno religioso não tem sido objeto de uma reflexão sociológica aprofundada na sociedade portuguesa e os estudos teórico-empíricos sobre a religião enquanto fenómeno macrossocietal permanecem insuficientes. Por essa razão, o livro de Eduardo Duque representa mais um importante contributo para uma área de conhecimento sociológico bastante lacunar.

Em Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas, o autor tem como propósito central identificar os fatores “que configuram e atuam de um modo explicativo na religiosidade dos portugueses”, tomando em conta as transformações socioculturais que, ao longo das últimas décadas, têm recolocado a sociedade portuguesa no quadro da sociedade moderna e globalizada. Embora centrado em Portugal, o trabalho resulta de uma análise comparativa e longitudinal com outros países europeus de tradição e maioria católica.

O livro está organizado em sete capítulos sendo o primeiro introdutório e o último conclusivo. Na introdução, Duque procura esboçar em termos breves os principais momentos histórico-sociais da questão religiosa em Portugal, evidenciando por isso as relações entre o Estado e a religião maioritária, a Igreja Católica Romana. A este propósito, enuncia três grandes vértices do catolicismo em Portugal, ao longo do último século, desde as reações à laicização da I República até à liberdade individual, consequência da revolução democrática de 1974, do processo de descolonização e da integração na União Europeia, passando pelas respostas à secularização concomitante da modernidade e que o autor situa em especial no pós-2.ª Guerra Mundial. Respeitando as fases estabelecidas pelo autor, será de recordar, contudo, que mesmo depois da 2.ª Grande Guerra o país continuou a pautar-se pelo fechamento em relação ao resto da Europa sob um regime político que procurava ancorar-se numa autolegitimação religiosa, promovendo a presença do catolicismo nas várias instituições estatais e no espaço público em geral. A par disso, recorde-se que os indicadores de identidade e prática religiosa eram muito elevados. O verdadeiro confronto de Portugal com a modernidade foi retardado pela ditadura, operando-se na sequência da revolução democrática.

Partindo das hipóteses tradicionais da teoria da secularização, Eduardo Duque associa secularização a pluralismo religioso consubstanciando este em duas dimensões: individualização das crenças no quadro da privatização da vida social e desinstitucionalização religiosa, resultante da descredibilização mais generalizada das instituições típicas da modernidade. Ora, o pluralismo também se carateriza pela proliferação de grupos religiosos com graus de institucionalização variável. As Testemunhas de Jeová ou a Igreja Universal do Reino de Deus, ainda que profundamente diferentes entre si, são exemplos de organizações religiosas pautadas por princípios de racionalidade formal que proliferam na modernidade tardia e que têm contribuído para a pluralização da paisagem religiosa portuguesa.

Tendo sempre presentes premissas da secularização, o autor procura explicar a reconfiguração religiosa em curso através de uma tendência para a individualização e da passagem do materialismo ao pós-materialismo, identificando assim o suporte teórico que virá a ser desenvolvido no capítulo seguinte. Sem pretender pôr em causa a validade daqueles instrumentos analíticos, pode questionar-se se não seria igualmente pertinente entender a realidade religiosa portuguesa recorrendo ao conceito de modernidades múltiplas de Shmuel Eisenstadt, acautelando-se, por essa via da unilinearidade da secularização, das limitações da dicotomia materialismo, pós-materialismo e dispondo de outros elementos para explicar a singularidade do catolicismo português face a outros catolicismos europeus. Essa abordagem permitiria, acima de tudo, não ficar cativo do pressuposto de que a modernidade tem de coexistir necessariamente com a perda da importância social da religião. Nos Estados Unidos, a modernização caminhou lado a lado com a vitalidade religiosa e em Portugal certas mudanças associadas a cosmovisões seculares e modernas (caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo) não afetou o catolicismo em termos de crença e de prática.

Indubitavelmente, a problematização efetuada no primeiro capítulo tem um desenvolvimento coerente no seguinte através do estado da arte realizado. Há aí um percurso cuidado e bastante extenso de autores clássicos, onde Weber é uma referência fundamental. Deteta-se, no entanto, a ausência de autores e teorias de referência tanto no quadro da secularização como fora desse âmbito. São mesmo os desenvolvimentos mais recentes na sociologia das religiões aquilo que melhor ajudaria a resolver algumas das interrogações formuladas, propiciando ainda a abertura de novas pistas interpretativas dos resultados ­empíricos. Refiro-me, concretamente, tanto a sociólogos emblemáticos da secularização como Bryan Wilson, Steve Bruce ou Karel Dobbelaere, como às reconsiderações do filósofo e cientista social Charles Taylor. Para a inteligibilidade histórica e sociológica da religião em Portugal e, de modo particular, do seu catolicismo, poderia ter sido útil recorrer à tipologia de David Martin sobre monopólios religiosos e pluralismo e ao conceito de vicarious religion – religião de paróquia – utilizado por Grace Davie para a compreensão da religião na Europa no século XXI. Refletindo sobre dois autores fundamentais como Berger e Luckmann, teria sido importante visitar os trabalhos mais recentes destes sociólogos, entretanto distanciados do paradigma da secularização e, no caso de Peter Berger, atentar para a concetualização que ele faz sobre o pluralismo, que considera o elemento mais adequado para descrever o cenário religioso contemporâneo. Se Duque enuncia entre os seus objetivos a análise da desinstitucionalização religiosa e a individualização, a diferença estabelecida por Georg Simmel, nos inícios do século XX, sobre religião e religiosidade (o pietismo) e as obras de Linda Woodhead e Paul Heelas sobre religião e novas espiritualidades seguramente que seriam um bom suporte.

No terceiro capítulo é explicitada a estratégia metodológica do autor. Eduardo Duque justifica, assim, a sua opção por um desenho comparativo e longitudinal. Para o efeito, seleciona outros países europeus historicamente católicos, uns com indicadores de religiosidade elevados (Irlanda, Itália e Polónia) e outros bastante secularizados (Áustria, Bélgica, Espanha e França), utilizando como fonte as bases de dados do European Values Survey (EVS) de 1990, 2000 e 2008. Esta decisão possibilita ter uma perceção do posicionamento de Portugal no mapa europeu nas últimas décadas, bem como a identificação das principais tendências em curso, tendo ainda o mérito indiscutível de dar continuidade à análise que observatórios como o EVS facultam.

Nos três capítulos seguintes, o autor procede à análise dos resultados empíricos, a qual se organiza nos seguintes termos: dimensão religiosa (capítulo 4), dimensão sociocultural (capítulo 5) e inter-relação entre aquelas duas dimensões (capítulo 6). Na dimensão religiosa, as variáveis são agrupadas em autoidentificação, frequência, saliência religiosas, tendo sido no final construído um índice de religiosidade. As análises e testes estatísticos realizados em torno da dimensão sociocultural irão permitir concluir que, tal como previsto nas hipóteses iniciais, a adesão aos valores pós-materialistas é tanto maior quanto o forem os indicadores de individualização e a posição social.

Em termos gerais, a obra constitui um trabalho de relevância dado que o estudo é, sem margem para dúvida, bem-sucedido no que respeita ao exercício de comparabilidade à escala europeia e na correlação que estabelece entre valores pós-materialistas e individualização e atitudes religiosas. Uma visão clara das tendências em curso na sociedade portuguesa é algo que fica, até certo ponto, limitada pelos próprios recursos empíricos utilizados. Teria valido a pena considerar o estudo sobre as “Identidades religiosas em Portugal: representações, valores e práticas 2011” (IRP), coordenado por Alfredo Teixeira. Essa pesquisa inclui variáveis mais afinadas (por exemplo, categorias religiosas mais discriminadas do que as dos recenseamentos), aborda dimensões até à data não contem­pladas e permite aferir um conhecimento mais fino quer do mundo católico, quer dos grupos religiosos minoritários ou mesmo dos “sem religião”. Um olhar sobre esta pesquisa permitiria a Eduardo Duque obter elementos que melhor testariam as suas hipóteses ou responderiam a algumas das suas interro­gações, nomeadamente, ­aquelas ­relativas às novas formas de religiosidade e à pluralização do campo religioso – no Algarve, por exemplo, o peso de católi­cos não chega a 60%, os crentes sem ­religião são 11% e os protestantes 7% –, a desinstitucionalização religiosa e a própria singularidade da sociedade portuguesa e do seu catolicismo.

Em suma, esta publicação contribui para um maior conhecimento da religião e dos valores na sociedade portuguesa principalmente porque permite colocar o país numa perspetiva comparativa, revelando que não há um catolicismo europeu, mas uma Europa de vários catolicismos, os quais se têm vindo a reconfigurar temporalmente.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 

TEIXEIRA, A. (coord.) (2012), Identidades Religiosas em Portugal: Representações, Valores e Práticas – Relatório, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa: CESOP e CERC.         [ Links ]

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