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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGO

De que necessitam as pessoas idosas para viver com dignidade em Portugal?

What do the elderly need in order to live with dignity in ­Portugal?

 

Anabela Ferreira Correia*, Elvira Pereira** e Dália Costa**

*Universidade de Lisboa, ISCSP Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Rua Almerindo Lessa — 1300-663 Lisboa, Portugal. E-mail: anamfcorreia@yahoo.com

**Universidade de Lisboa, ISCSP Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, CAPP Centro de Administração e Políticas Públicas, Rua Almerindo Lessa — 1300-663 Lisboa, Portugal. E-mail: epereira@iscsp.ulisboa.pt e daliacosta@iscsp.ulisboa.pt

 

RESUMO

Pretende-se conhecer o que as pessoas idosas perspetivam como necessário para viverem com dignidade na atualidade, em Portugal. É adotada uma abordagem consensual complementando um método de natureza quantitativa, recorrendo aos microdados do Eurobarómetro, com um método de natureza qualitativa, recorrendo aos dados de três focus groups realizados no âmbito do projeto Rendimento Adequado em Portugal (RAP). Os resultados revelam as vantagens desta combinação de métodos e sugerem que as necessidades humanas consideradas fundamentais para uma vida com dignidade para as pessoas idosas em Portugal vão para além da subsistência, sendo identificadas também as necessidades de segurança, identidade, afeição, lazer, compreensão e liberdade.

PALAVRAS-CHAVE: pessoas idosas; necessidades humanas; abordagem consensual; dignidade.

 

ABSTRACT

We seek to determine what the elderly in ­Portugal perceive as necessary to live a dignified life in today’s world. We adopt a consensual approach complementing a quantitative method, using the microdata from Eurobarometer surveys, with a qualitative method, using the data from three focus groups held under the research project Rendimento Adequado em Portugal (RAP). The results reveal the advantages of this combination of methods, and suggest that the human needs considered as being fundamental for an elderly person to lead a dignified life in Portugal go beyond subsistence, also identifying the needs of protection, identity, affection, leisure, understanding, and freedom.

KEYWORDS: elderly; human needs; consensual approach; dignity.

 

INTRODUÇÃO

 

O atual contexto de envelhecimento da população portuguesa, com o aumento da esperança de vida, torna mais premente a preocupação com a garantia do direito a uma vida com dignidade para as pessoas mais velhas.1 O que está em causa é o seu direito fundamental a terem recursos suficientes que lhes permitam satisfazer as necessidades de forma adequada – por outras palavras, que efetivamente tenham aquilo que se considera que “todas as pessoas devem ter acesso e de que ninguém deve ser privado” (Sen, 1999, 2005; Pereira, 2010a; Pereira, 2010b).

O estudo que dá origem a este artigo foi realizado no âmbito do Projeto Rendimento Adequado em Portugal (em diante designado projeto RAP).2 Em específico, pretende contribuir para o conhecimento daquilo que as pessoas com 65 e mais anos, ou pessoas idosas, necessitam para viverem com dignidade, na atualidade em Portugal, partindo da perspetiva dos próprios idosos. Pretende-se, assim, preencher uma lacuna nos estudos sobre necessidades.

De facto, à semelhança das questões do envelhecimento3, também a problemática das necessidades só recentemente começou a ser explorada em ­Portugal. O estudo de Guerra et al. (2010) representa um importante contributo para o conhecimento das necessidades de diversos grupos sociais, entre os quais os idosos. A investigação de Pereira (2010b) realça que “a pobreza pode ser identificada com uma situação em que não são satisfeitas determinadas necessidades, ou em que não é realizado um nível de vida mínimo aceitável, por carência de recursos económicos” (Pereira, 2010b, p. 17).

A identificação das necessidades e das formas de satisfação das mesmas, central para o estudo da pobreza, quer do ponto de vista do cálculo do rendimento necessário para a sua satisfação, quer no desenvolvimento de uma medida de privação material forçada por insuficiência de recursos económicos, reveste-se, assim, de grande importância para o estudo da problemática do envelhecimento, numa perspetiva pouco aprofundada em Portugal.

Ademais, as necessidades dos idosos têm especificidades próprias de satisfação, resultantes do próprio processo de envelhecimento humano (Valente Rosa, 2003, p. 115), havendo que considerar o envelhecimento biológico – constrangimentos inerentes à condição física da pessoa, o envelhecimento psicológico – que se relaciona com a maior ou menor resiliência individual, e o envelhecimento social4 – discriminação em razão da idade, que podem obstar a uma plena participação social do idoso.

A montante do processo de implementação de políticas dirigidas a este grupo social é desejável a compreensão das razões da existência de padrões diferenciados ao nível das condições de vida das pessoas mais velhas (Mauritti, 2004; Cardoso et al., 2012), visando medidas que contribuam para a melhoria das suas capacidades para interagir no meio físico e social, garantindo o seu direito a uma vida com dignidade. Deste modo, será possível minimizar os riscos decorrentes das vulnerabilidades e fragilidades próprias da idade avançada.

Do ponto vista teórico, as necessidades fundamentais, enquanto objetivos universais, distinguem-se das formas específicas de satisfação dessas necessidades, que variam de acordo com os contextos e as características dos indivíduos (Doyal, Gough, 1991; Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn,1991; Pereira, 2010b; Sen, 1999, 2005). Como referido por Silva (1985):

 

É fácil identificar um conjunto de necessidades essenciais – e.g. alimentação, vestuário, habitação, saúde, educação, segurança, mobilidade – mas é difícil definir o conteúdo de cada uma destas componentes do nível de vida, e ainda mais difícil é estabelecer (entre si) uma ordem de prioridades [Silva, 1985, p. 17].

 

Como tal, do ponto de vista metodológico, importa reconhecer a importância de integrar o conhecimento experiencial dos idosos na identificação e compreensão das suas necessidades, pelo que se adota uma abordagem consensual (Pereira et al., 2013). Esta opção metodológica contribui para colmatar a exclusão das pessoas na avaliação do padrão de vida, normalmente baseada na opinião de especialistas (Lelkes, 2006; Walker, 2005; Dickes, Fusco e ­Marlier, 2010).

Para operacionalizar uma abordagem consensual, existem dois métodos principais, que utilizam técnicas de recolha de dados distintas: um, de natureza quantitativa, baseado em inquéritos por questionário5, e outro, de natureza qualitativa, baseado em grupos de discussão (focus groups). Neste trabalho recorremos a uma combinação de ambos.

Com o objetivo de identificar os bens e serviços reconhecidos pelas pessoas com 65 e mais anos, como absolutamente necessários para um indivíduo em abstrato, efetuamos uma análise dos microdados dos Eurobarómetros Especiais “Pobreza e Exclusão Social” de 2007, 2009 e 2010. Para perceber como são percecionados esses bens e serviços pelas pessoas com 65 e mais anos de idade, para uma pessoa com caraterísticas semelhantes às suas poder satisfazer adequadamente as suas necessidades, realizamos uma análise dos dados de três focus groups efetuados com idosos, no âmbito do projeto RAP. Para o efeito, nesta última análise, efetuámos a identificação e caracterização do consenso formado quanto à inclusão desses bens e serviços no mínimo que um(a) idoso(a) deveria poder ter/obter e a identificação das necessidades associadas.

A complementaridade destas abordagens permite-nos apresentar uma reflexão sobre aquilo que os idosos consideram fundamental para viver com dignidade em Portugal, no quadro teórico adotado.

Após um breve enquadramento do conceito de necessidades e das suas formas de satisfação, apresentamos neste artigo alguns aspetos metodológicos relacionados com a abordagem consensual, com os inquéritos Eurobarómetro sobre Pobreza e Exclusão Social e com os três focus goups realizados. Seguem-se os resultados de acordo com os objetivos propostos, terminando com a sua discussão e algumas notas finais.

 

NECESSIDADES E FORMAS DE SATISFAÇÃO

 

NECESSIDADES: DIFERENTES ABORDAGENS A UM CONCEITO MULTIDIMENSIONAL

 

Caraterizar e compreender o conceito de necessidades – fins6 que constituem o mínimo necessário para uma vida digna, implica o reconhecimento da sua natureza multidimensional. Nesta secção destacamos os contributos teóricos mais relevantes para o estudo que aqui se apresenta.

Uma das mais conhecidas classificações de necessidades foi proposta por (Maslow, 1970) na sua teoria da motivação humana. Na hierarquia de necessidades proposta pelo autor, foram identificados cinco níveis de necessidades. Os dois primeiros níveis foram identificados como necessidades primárias, figurando na base as necessidades fisiológicas, logo seguidas das necessidades de segurança. Os restantes três níveis foram identificados como necessidades secundárias, figurando num terceiro nível as necessidades de afeto e sentimento de pertença a grupos na sociedade, seguidas das necessidades de autoestima e, no último nível, as necessidades de autorrealização (Maslow, 1970, pp. 38-58).

No entanto, a existência de uma hierarquia definida de necessidades, tal como a defendida por Maslow (1970), tem sido refutada por diversos estudos e rejeitada por outras teorias de necessidades humanas (e.g. Doyal e Gough, 1991; Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn, 1991; Nussbaum, 1997, 2000, 2003).

Doyal e Gough (1991) definiram necessidades básicas como objetivos universais, identificando dois tipos de necessidades básicas – saúde física e autonomia - sem qualquer hierarquia entre si. Para estes autores, a universalidade destas necessidades decorre do facto de a sua não satisfação pode causar sério dano ou um sofrimento socialmente reconhecido para qualquer indivíduo, independentemente do contexto em que se encontra inserido (Doyal e Gough, 1991). Estes autores “identificam ainda, como necessidades intermédias, características de bens que em todo o lado contribuem positivamente para a saúde física e a autonomia, capacitando os indivíduos para participar na sua forma social de vida” (Pereira, 2010b, p. 33).

As necessidades intermédias identificadas por Doyal e Gough (1991) foram: alimentação e água adequadas, alojamento adequado e protetor, ambientes físico e de trabalho seguros, cuidados de saúde apropriados, segurança na infância, relações primárias significativas, segurança física e económica, segurança no controlo de natalidade, gestação e parto e educação básica apropriada.

Por sua vez, Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1991) defenderam que o ser humano tem múltiplas e interdependentes necessidades, devendo estas “entender-se como um sistema em que se interrelacionam e interagem. Com a única exceção da subsistência, ou seja manter a vida humana, não existem hierarquias neste sistema” (idem, 1991, p. 17).

Estes autores classificaram as necessidades de acordo com múltiplos critérios e em duas categorias diferentes: ontológicas e axiológicas. Na primeira identificaram as necessidades de Ser, Ter, Fazer e Estar. Na segunda categoria surgiram a Subsistência, a Proteção, o Afeto, a Compreensão, a Participação, o Lazer, a Criatividade, a Identidade e a Liberdade.

Ao contrário dos autores anteriores, Sen (1999, 2005) não identificou uma lista definitiva de fins universais. O contributo teórico incontornável da sua abordagem das capacidades foi o de deslocar o foco das necessidades, ou da utilidade que resulta da sua satisfação, para as capacidades. A ideia de capacidade de alcançar funcionamentos com valor, os quais não são os mesmos para todos os seres humanos, e estão sujeitos à contingência, especificidade cultural e ao próprio nível de desenvolvimento de cada sociedade, prevalece como um ponto fundamental da sua abordagem

Deste ponto de vista, uma pessoa terá uma vida bem-sucedida, ou uma vida digna, se tiver oportunidades e capacidades de alcançar combinações de funcionamentos com valor, aquilo que uma pessoa é capaz de ser ou fazer, com autonomia, na sociedade em que vive (Sen, 1999, 2005).

Alguns autores têm criticado Sen por não apresentar uma lista definitiva de capacidades. Sen (cit. por Pereira, 2010b, p. 35) “argumenta que a teoria pura não pode fornecer uma lista completa de capacidades básicas ou funcionamentos relevantes aplicável a todas as sociedades”. Para este autor esta lista não pode estar desligada da cultura e da realidade social. Uma tentativa de identificação das necessidades fundamentais “é um exercício de escolha social (…) requer discussão pública, entendimento e aceitação democráticos” (Sen, 1999, p. 99).

Por sua vez, Nussbaum (1997, 2000, 2003) aprofundou o pensamento de Sen propondo a ideia de que “existem algumas áreas nas quais a melhor maneira de pensar sobre direitos7 é vê-los como capacidades combinadas para funcionar de diversas formas” (Nussbaum, 1997, p. 292). Assim, identificou:

 

[…] dez categorias de capacidades8 como requisitos centrais para uma vida com dignidade – vida, saúde física, integridade física, sentidos, imaginação e pensamento, emoções, razão prática, afiliação, outras espécies, lazer, controle sobre o meio ambiente – como objetivos gerais que podem ser melhor especificados pela sociedade (…) na medida em que funcionam como direitos fundamentais ratificados por essa sociedade [Nussbaum, 2003, pp. 40-42].

 

FORMAS DE SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES

 

Como ficou patente na breve abordagem realizada ao conceito de necessidade, importa distinguir entre necessidades, enquanto objetivos universalizáveis, e as respetivas formas de satisfação, isto é, os bens económicos e formas necessárias à satisfação das mesmas, que podem variar de acordo com as características dos indivíduos e com os contextos em que estão inseridos (Pereira, 2010b).

Com efeito, Doyal e Gough (1991), considerando a universalidade das necessidades básicas, afirmaram que as suas formas de satisfação podem ser variadas e específicas dos contextos.

Neste sentido concorreram, igualmente, Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1991, p. 28), defendendo que “ (…) as necessidades humanas fundamentais são não só universais como também estão interligadas com a evolução da espécie humana”, distinguindo claramente entre necessidades, mecanismos de satisfação e bens económicos. Os mecanismos de satisfação “ (…) são formas individuais ou coletivas de ser, ter, fazer e estar, com o objetivo de alcançar a satisfação das necessidades (…)” (idem, 1991, p. 30). Já os bens económicos “compreendem todo o conjunto de bens e serviços que podem alterar a capacidade de um mecanismo de satisfação e, assim, alterar o limite de satisfação das necessidades num sentido positivo ou negativo” (idem, ibidem).9

Aqui encontramos subjacente a ideia de unicidade de sentido das necessidades e de variabilidade dos mecanismos de satisfação, de acordo com o contexto cultural e as circunstâncias, pois os bens económicos “ (…) comportam-se de três maneiras diferentes: são modificados de acordo com as práticas sociais e as modas, diversificam-se de acordo com as culturas e, dentro destas, de acordo com os estratos sociais” (Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn, 1991, p. 28).

Por sua vez, Sen (1999, 2005) propôs a ideia de que pessoas e sociedades diferem na sua capacidade de converter os bens que têm, em funcionamentos com valor. Num outro ponto fundamental na sua abordagem das capacidades, encontramos a conceção de que não se deve apenas observar as caraterísticas dos bens económicos, mas também, considerar as possibilidades de que as pessoas desfrutam para serem capazes de usufruir dos bens ao seu dispor:

 

[…] usamos rendas e mercadorias como a base material do nosso bem-estar. Mas o uso que podemos dar a um dado pacote de mercadorias ou, de um modo mais geral, a um dado nível de renda, depende crucialmente de várias circunstâncias, tanto pessoais como sociais [Sen, 1999, p. 90]

 

MATRIZ DE NECESSIDADES RAP

 

A abordagem do projeto RAP ao conceito de necessidades privilegiou a classificação axiológica desenvolvida por Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1991) e integrou os contributos de outros autores, nomeadamente Nussbaum (1997, 2000, 2003) e Costanza et al. (2007).

Nussbaum (1997, 2000, 2003) sugeriu que cada necessidade adquire uma dimensão ontológica e identificou um tipo de capacidade, que designa por combinada, que alia a capacidade interna com as condições externas necessárias para ter essa capacidade (Nussbaum, 2000, cit. por Pereira et al., 2013).

Costanza et al. (2007) integrou as abordagens anteriores (Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn, 1991; Nussbaum, 1997, 2000, 2003), acrescentando as categorias de “transcendência” e “reprodução” e alterando as categorias “proteção” e “tempos livres” para “segurança” e “lazer”.

Realizada uma primeira análise exploratória aos focus groups, utilizando como sistemas de classificação a matriz de necessidades de Max-Neef et al. (1991), a lista de necessidades intermédias de Doyal e Gough (1991) e a lista de capacidades combinadas de Nussbaum (1997, 2000, 2003), a equipa de investigação considerou que a classificação axiológica de Max-Neef combinada com uma definição das necessidades em termos de capacidades combinadas sugerida por Nussbaum seria o sistema de classificação mais adequado à análise dos focus groups realizados.

Na matriz RAP, então desenvolvida, esteve subjacente quer a consideração de que as necessidades são finitas, classificáveis, não hierarquizáveis e as mesmas em todas as culturas e tempos históricos10 quer a distinção entre estas e os seus mecanismos de satisfação e os bens económicos.

Esta matriz de necessidades RAP (Quadro 1) foi adotada na análise realizada no presente estudo.

 

 

ASPETOS METODOLÓGICOS

 

A ABORDAGEM CONSENSUAL

 

A abordagem consensual radica na premissa de que aquilo que é necessário para viver com dignidade deve ser aferido à luz dos padrões culturais da sociedade em que nos situamos (Walker, 1987) e de que os bens e serviços tornam-se necessários apenas quando são socialmente percebidos como tal, ou seja, quando a sua identificação como “necessidades” reúne um consenso alargado (Mack e Lansley, 1985). Este consenso pode ser verificado pela obtenção de um acordo expresso, democraticamente, pela maioria, através de inquéritos por questionário, ou pela emergência de consensos negociados no contexto de focus groups. Note-se que em nenhum caso, a abordagem consensual exige a existência de unanimidade dos pontos de vista.

A este respeito, Walker (1987) considerou que a abordagem consensual encontra a sua expressão mais fiel na negociação11, geradora de compromissos e que é observável num grupo de discussão.

No contexto do projeto RAP e para conhecer aquilo que os idosos perspetivam como necessário – “aquilo que todas as pessoas devem ter acesso e de que ninguém deve ser privado” (Sen, 1999, 2005; Pereira, 2010a; Pereira, 2010b), além da utilização de resultados de inquéritos por questionário, recorreu-se aos resultados de focus groups, considerando-se que a possibilidade de negociação de consensos possibilitada pelos mesmos responde favoravelmente às seguintes premissas metodológicas:

 

i) fornecem um contexto adequado para obter aquilo que Sen designa por avaliação arrazoada, uma vez que os indivíduos partilham as suas opiniões, ouvem as opiniões dos outros, refletem individualmente, argumentam e debatem entre si, e chegam a consensos sobre alguns aspetos fundamentais;

ii) o debate gerado permite obter uma explicação detalhada da fundamentação quer dos consensos quer das discordâncias e, de um modo mais específico, da lógica subjacente aos padrões orçamentais que irão ser desenvolvidos [Pereira et al., 2013, p. 4].

 

A análise realizada neste estudo centrou-se num conjunto variado de itens, selecionados a partir de diferentes dimensões que constituem o padrão de vida de uma determinada sociedade. Os itens avaliados abrangem tanto aspetos materiais como da vida social, incluindo alimentação, saúde, habitação, bens e infraestruturas da habitação, meios de comunicação e atividades de lazer.

 

OS INQUÉRITOS EUROBARÓMETRO SOBRE “POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL”

 

Foram utilizados os microdados de três Eurobarómetros Especiais sobre “Pobreza e exclusão social”, de 2007, 2009 e 2010 (em diante respetivamente designados EB2007, EB2009 e EB2010). Nestes três Eurobarómetros foi aferida a opinião dos indivíduos sobre a necessidade de um conjunto selecionado de itens, numa amostra representativa da população residente em Portugal. No entanto, o EB2007 apresenta algumas diferenças relativamente ao EB2009 e ao EB2010.

Assim, no EB2007, foi incluído um conjunto mais alargado de itens, 53 no total, e a pergunta que presidia ao questionário tinha a seguinte formulação:

 

Nas questões seguintes, gostaríamos de compreender melhor o que, na sua opinião, é necessário para que as pessoas tenham um nível de vida que possa ser considerado como aceitável ou decente em Portugal. Para uma pessoa ter um nível de vida decente em ­Portugal, por favor diga-me até que ponto considera necessário…

 

As opções de resposta, associadas a cada item, eram: i) absolutamente necessário, ninguém deveria viver sem; ii) necessário; iii) desejável mas não necessário; iv) nada necessário; v) não sabe.

O EB2009 e o EB2010 apresentaram uma lista mais reduzida de itens, apenas 13, pedindo aos indivíduos que identificassem até 5 itens que considerassem absolutamente necessários, utilizando a seguinte pergunta:

 

Para que uma pessoa ou família tenha um nível de vida aceitável em Portugal, quais dos seguintes itens pensa serem absolutamente necessários poderem obter?

 

O facto de as perguntas entre estes inquéritos não serem idênticas, bem como, em alguns casos, os itens não serem semelhantes e, em outros, aparecerem denominados de modo diferente, impossibilitou a confrontação direta entre os resultados dos três Eurobarómetros. Apesar deste limite, foi possível identificar 19 itens no EB2007 com paralelismo com os 13 itens aferidos em 2009 e 2010, sobre os quais incidiu a nossa análise.

A análise dos microdados incidiu sobre uma amostra de indivíduos com 65 e mais anos (idosos), respondentes para Portugal, cuja dimensão foi de 213 indivíduos em 2007, 224 indivíduos em 2009 e 224 indivíduos em 2010 (Quadro 2).

 

 

O objetivo desta análise foi identificar i) quais os itens considerados como absolutamente necessários, pela maioria dos idosos, para uma pessoa ter um nível de vida decente em Portugal (no caso do EB2007) e ii) quais os itens priorizados como absolutamente necessários, pela maioria dos idosos, para uma pessoa ou família ter um nível de vida aceitável em Portugal (no caso dos EB2009 e EB2010). A regra da maioria (50% ou mais) foi utilizada para identificar uma situação de consenso.

Foram, assim, calculadas as frequências relativas (e os respetivos intervalos de confiança a 95%) das opções de resposta “absolutamente necessário ninguém deveria viver sem” e “necessário”, para os 19 itens selecionados do EB2007, e de seleção de item “absolutamente necessário”, para os 13 itens aferidos nos EB2009 e EB2010, sendo utilizado o programa de análise SPSS 16.0.

Foram, também, realizadas análises com o objetivo de identificar as congruências e as especificidades dos resultados obtidos para os idosos em relação aos resultados obtidos para os restantes indivíduos inquiridos nos três Eurobarómetros. Neste caso, foram utilizadas as amostras completas para ­Portugal: 1013 indivíduos em 2007, 1051 indivíduos em 2009 e 1011 indivíduos em 2010.

Além do cálculo das frequências relativas, no Eurobarómetro de 2007, que aborda um conjunto mais detalhado de itens, foram realizados testes Qui-Quadrado para testar a hipótese da igualdade entre os idosos e a restante população na avaliação da necessidade de cada item e obtidos os resíduos ajustados estandardizados para identificar as opções de resposta onde a frequência observada difere, significativamente, da frequência esperada, para α<=0,05.12

 

OS FOCUS GROUPS REALIZADOS NO ÂMBITO DO PROJETO RAP

 

O corpus de análise deste estudo resultou de três focus groups realizados no contexto do projeto RAP. Os três grupos foram realizados com idosos em três concelhos de Portugal continental – Vila Nova de Gaia (VNG), Vila Franca de Xira (VFX) e Beja (BEJ) – em julho e outubro de 2012.13 Participaram, no total, 25 idosos – 9 em Vila Nova de Gaia, 8 em Vila Franca de Xira e 8 em Beja.14

As características sociodemográficas dos participantes são apresentadas no Quadro 3.

 

 

Cada grupo teve uma duração de três horas distribuídas em três partes ­principais: “a) introdução, formalidades e aquecimento (cerca de 45m); b) debate acerca do mínimo adequado na sociedade portuguesa (cerca de 1h15m); e c) desenvolvimento da vinheta e debate sobre os itens do Eurobarómetro (cerca de 1h)” (Pereira et al., 2013, p. 9).

Em cada grupo, o facilitador iniciou a discussão referindo que não existiam respostas “certas ou erradas” e salientando que o contributo de todos era importante dado que os participantes no grupo detinham diferentes experiências de vida. Esta diversidade de perspetivas implicava que a todos fosse garantida a oportunidade de expressarem a sua opinião. Esta garantia foi também, em grande medida, assegurada pela condução destes grupos por facilitadores com experiência.

A análise agora apresentada centrou-se na última parte do grupo que se iniciou com a construção de um “caso”, representativo de uma pessoa com caraterísticas semelhantes às das pessoas que participavam no focus group, e se desenvolveu na discussão dos bens e serviços que essa pessoa devia poder ter para viver com dignidade.

A construção e debate sobre as necessidades deste “caso” revelou a vantagem de ajudar os participantes a não se centrarem em si próprios mas, recorrendo à interação e partilha de experiências, a projetar para o “caso” as necessidades de uma pessoa com caraterísticas semelhantes às suas.

Deste modo, em cada grupo, foi criada uma vinheta com as caraterísticas15 constantes do Quadro 4.

 

 

O debate sobre o que esse idoso(a), com as características definidas no “caso”, deveria poder ter ou conseguir obter centrou-se nos 13 itens utilizados nos EB2009 e EB2010, apresentados ao grupo um a um. Este debate foi iniciado da seguinte forma:

 

Para finalizar, gostaríamos de saber se pensam que o/a (nome do “caso”), como mínimo, deveria poder ter ou conseguir obter as seguintes coisas16

 

A análise de conteúdo, utilizada neste estudo, foi realizada a partir da transcrição das gravações da já referida última parte dos focus groups.

Os objetivos desta análise foram i) identificar a existência de consenso relativo à inclusão do item no mínimo que esse idoso(a) deveria poder ter/obter e caracterizar a sua formação, e ii) identificar de forma sistemática, em cada um dos focus groups, as necessidades associadas a cada um dos itens.

Para prosseguir o segundo objetivo, adotou-se como suporte teórico e sistema de categorias a matriz de necessidades RAP (Pereira et al., 2013) (quadro 1) e realizou-se uma análise categorial temática, utilizando o MaxQDA 11, recortando expressões ilustrativas. De salientar que as manifestações verbais recortadas fazem parte de um contexto concreto e têm de ser interpretadas como associadas a um encadeamento discursivo e ao estímulo suscitado pela discussão entre os participantes.

 

RESULTADOS

 

OS RESULTADOS DOS EUROBARÓMETROS SOBRE “POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL”

 

No EB2007, oito dos 19 itens foram reconhecidos pela maioria dos idosos como absolutamente necessários para que uma pessoa, em abstrato, tenha um nível de vida aceitável em Portugal (Quadro 5). Destes oito itens, três estão associados ao acesso a bens e serviços de saúde, dois estão associados à alimentação e três estão associados às condições da habitação.

Se forem considerados os limites superiores dos intervalos de confiança a 95% para a proporção de idosos que considera o item absolutamente necessário, seriam ainda incluídos três itens: um associado aos transportes públicos, um associado aos principais eletrodomésticos e mais um associado à habitação.

Em 2007, dos seis itens que reuniram menor consenso na identificação como absolutamente necessários pelos idosos, apresentando frequências relativas inferiores a 20%, três foram associados a meios de comunicação (telefone, telemóvel e internet) e três foram associados a atividades de lazer (“poder ir uma semana de férias por ano, sair uma vez por mês e ter uma atividade de lazer ou praticar um desporto regularmente”).

De relevar, ainda, que alguns dos itens que não obtiveram um valor superior a 50%, tiveram valores relevantes na opção “necessário”. Agregando-os aos valores obtidos na opção “absolutamente necessário”, constata-se que apenas cinco itens não foram considerados pela maioria dos idosos como absolutamente necessários ou necessários, dois foram associados a meios de comunicação (telemóvel e internet) e três foram associados a atividades de lazer (“poder ir uma semana de férias por ano, sair uma vez por mês e ter uma atividade de lazer ou praticar um desporto regularmente”).

Quando se compararam os resultados obtidos para os idosos com os resultados obtidos para a restante população (Quadro 5), verificou-se que os mesmos 11 itens reconhecidos como absolutamente necessários pela maioria dos idosos (considerando os limites superiores dos intervalos de confiança a 95% para as proporções) foram igualmente reconhecidos como absolutamente necessários pela restante população. Apesar desta congruência, identificaram-se duas especificidades que importa registar.

A primeira, mais relevante do ponto de vista da abordagem consensual, resultou de, para a restante população, terem sido apenas dois os itens que não foram considerados pela maioria como absolutamente necessários ou ­necessários, os dois associados a meios de comunicação (telefone e internet). Assim, considerando que o telefone e o telemóvel são substitutos imperfeitos, assinala-se o facto de, ao contrário do que acontece na restante população, a maioria dos idosos não ter considerado absolutamente necessários ou necessários os três itens associados a atividades de lazer.

A segunda especificidade diz respeito às diferenças significativas encontradas na avaliação da necessidade dos itens. De facto, em 12 dos 19 itens, os resultados do teste qui-quadrado permitiram rejeitar a hipótese nula de igualdade entre os idosos e a restante população na avaliação que realizam da necessidade dos itens, para α=0,05 (Quadro 5). De acordo com os resultados dos resíduos ajustados estandardizados, estas diferenças puderam ser agrupadas, sendo que, com a exceção do caso do telefone, resultaram de uma avaliação de menor grau de necessidade do item por parte dos idosos.

Num primeiro grupo de quatro itens, observou-se nos idosos uma sub-representação da opção “absolutamente necessário” que foi compensada por uma sobre representação da opção “necessário”: “um lugar para viver sem fugas no telhado, parede/chão ou fundação húmidos; poder consumir fruta fresca e vegetais uma vez por dia; comprar medicamentos quando necessário; e ter acesso a transportes públicos locais”.

Num segundo grupo de quatro itens verificou-se nos idosos uma sub-representação quer da opção “absolutamente necessário” quer da opção “necessário”, são os itens ligados a meios de comunicação (exceto telefone fixo) – “ter um telemóvel e ter acesso à internet” – e a atividades de lazer (exceto sair uma vez por mês), – “poder ir uma semana de férias por ano; e ter uma atividade de lazer ou praticar um desporto regularmente”. No caso do telefone fixo verificou-se a situação inversa, observou-se nos idosos uma sobrerrepresentação quer da opção “absolutamente necessário” quer da opção “necessário”. No caso de sair uma vez por mês não se verificaram diferenças entre idosos e restante população na opção “absolutamente necessário”, mas existiu nos idosos uma sub-representação da opção “necessário”.

Num último grupo de dois itens, observou-se uma sobrerrepresentação nos idosos das outras opções além de “absolutamente necessário” e “necessário”: “um lugar para viver com água quente corrente e ter acesso a serviços bancários”.

O quadro 6 apresenta os resultados obtidos nos EB2009 e EB2010, onde se constata que existem quatro itens que, em ambos os inquéritos, foram selecionados como absolutamente necessários pela maioria dos idosos. O item “manter a casa suficientemente quente quando está frio no exterior”, apesar de não ter sido selecionado pela maioria, registou ainda assim valores na ordem dos 30%, o que é um valor relativamente elevado tendo em conta que os indivíduos só podiam selecionar 5 itens no conjunto dos 13.

 

 

Quando se compararam os resultados obtidos para os idosos com os resultados obtidos para a restante população, verificou-se que os mesmos quatro itens foram selecionados como absolutamente necessários pela restante população, reforçando a ideia de congruência.

Fazendo a confrontação entre os itens dos três Eurobarómetros em análise (e atendendo aos limites supra referidos), constata-se que foram quatro os itens que reuniram um consenso muito alargado, tendo sido identificados como absolutamente necessários pela maioria dos idosos em 2007, e também priorizados como absolutamente necessários pela maioria dos idosos em 2009 e 2010:

 

a)ter um lugar para viver em boas condições e em bom estado de conservação;

b)obter alimentos de boa qualidade e diversificados;

c)ter acesso a gás, eletricidade e água canalizada;

d)poder comprar medicamentos ou consultar um médico quando se está doente ou se sente mal.

 

Tendo em conta o conjunto dos resultados, foi possível verificar que foram os itens associados às condições (básicas) da habitação, à alimentação e ao acesso a bens e serviços (básicos) de saúde que reuniram um maior consenso dos idosos e da restante população quanto à sua absoluta necessidade para que uma pessoa ou família, em abstrato, tenha um nível de vida aceitável em Portugal.

 

OS RESULTADOS DOS FOCUS GROUPS

 

Os consensos obtidos

 

No contexto dos focus groups, a obtenção de consensos e o respetivo processo de negociação, em particular este último, permitiram apreender outros dados e relações, focados naquilo que um idoso deveria poder ter ou obter como mínimo em Portugal.

Assim, todos os 13 itens foram consensualmente considerados, pelos participantes, como devendo fazer parte do “mínimo” que um idoso, com as caraterísticas definidas no “caso”, deveria poder ter ou obter. Contudo, enquanto nalguns itens o consenso foi imediato, não se registando qualquer desacordo inicial ou necessidade de clarificação, em outros itens, o consenso foi construído no debate gerado entre os participantes.

Foi, assim, possível distinguir, quanto à formação do consenso, dois grupos de itens: um primeiro grupo, com sete itens que reuniram consenso imediato nos três focus groups;17 um segundo, com seis itens, em que, na fase inicial de apresentação do item, houve pelo menos um participante num dos grupos que manifestou discordância quanto à sua inclusão no mínimo ou que sentiu necessidade de clarificação.

No quadro 7 apresentam-se os sete itens que obtiveram consenso imediato nos três grupos.

 

 

Neste grupo, assinala-se a identificação imediata, em todos os focus groups, dos itens: “ter um local para viver com espaço suficiente e privacidade para ler, escrever ou ouvir música, etc.18; ter acesso a atividades de lazer e culturais; ter acesso a uma conta à ordem”.

Seguidamente apresentam-se os seis itens em que o consenso não foi imediato (Quadro 8).

 

 

A discussão em torno deste segundo grupo de itens revelou as potencialidades do recurso aos focus groups.

Neste grupo está incluído um item – “obter alimentos de boa qualidade e diversificados”, em que a qualificação “boa” explicou, em parte, o resultado obtido. De facto, em dois dos grupos, ocorreu um debate demorado em torno do conceito de “boa qualidade” dos alimentos, o que implicou que o consenso não fosse obtido logo à partida.

O debate em torno deste item permitiu apreender algumas interrogações relacionadas com a questão da possibilidade de escolha. Se a necessidade de alimentação é irrefutável, poderá a sua satisfação ser objeto de processos racionais de escolha em favor de alimentos de menor qualidade (eventualmente mais baratos mas menos saudáveis)?

Também, noutros três itens deste grupo – “reparar ou substituir os principais eletrodomésticos, como o frigorífico ou a máquina de lavar roupa, pagar tratamentos dentários e fazer férias com a família pelo menos uma vez por ano” verificou-se a necessidade de clarificação do item/questão (ver as manifestações verbais ilustrativas no quadro 8). No item “fazer férias com a família pelo menos uma vez por ano”, por exemplo, o consenso não foi imediato num dos focus groups devido à discordância de um dos participantes, em que pesaram razões de ordem económica. Contudo, o debate permitiu clarificar posições e distinguir entre aquilo que as pessoas podem ou não fazer na atualidade por limitação de recursos e aquilo que deveriam poder fazer ou obter como mínimo, independentemente dos recursos que tenham.

Por último, o item “ter acesso a meios de comunicação, como um telefone ou internet” não registou consenso imediato em dois dos focus groups devido à inclusão do exemplo da internet (ver manifestações ilustrativas no quadro 8). Já o telefone reuniu consenso imediato.

 

As necessidades identificadas

 

No quadro 9 apresentam-se as necessidades identificadas no corpus de análise, utilizando como suporte a matriz de necessidades RAP (Pereira et al., 2013). Importa conhecer não só as necessidades consideradas como fundamentais para um idoso ter uma vida digna, como, igualmente, as especificidades decorrentes do seu processo de satisfação, concretamente, aprofundar o conhecimento dos aspetos relacionados com a existência de “simultaneidades, complementaridades e trocas que caraterizam o processo de satisfação das necessidades” (Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn,1991, p. 17), bem como a conceção de capacidades combinadas salientada por Nussbaum (1997, 2000, 2003).

 

 

Importa salientar que a associação dos itens em discussão às necessidades não foi explicitamente solicitada aos sujeitos que integraram os focus groups. Resultou de um exercício analítico posterior realizado com base naquilo que foi dito pelos participantes, sobretudo quando o consenso não foi imediato. Nestas situações recorreu-se a perguntas de verificação introduzidas pelo ­facilitador, com vista à compreensão das racionalidades subjacentes.19 A análise configurou, por isso, uma aproximação à associação dos itens a necessidades humanas fundamentais onde houve lugar a uma postura analítica e de reconstrução de sentido (Guerra, 2006, p. 31), com o propósito de compreender a subjetividade associada ao discurso dos participantes.

 

Apresentam-se, de seguida, os racionais subjacentes a este processo, em associação com as necessidades identificadas de acordo com a matriz de necessidades RAP (Pereira et al., 2013):

 

SUBSISTÊNCIA

Na classificação das necessidades aqui apresentada evidencia-se um conjunto de 11 itens associados à “capacidade de viver uma vida de duração normal e saudável e satisfazer, no dia-a-dia, as condições necessárias para o alcançar”, classificados, por isso, na necessidade de subsistência.

Além dos itens relacionados com a alimentação e as condições (básicas) da habitação, com manifesta associação à subsistência, a saúde foi identificada como uma dimensão fundamental, em itens onde, à partida, esta associação não se encontrava claramente evidenciada.

Assim, por exemplo, o acesso a transportes públicos foi perspetivado como um meio de aceder a cuidados de saúde e, também, a bens alimentares, e a importância do telefone foi associada, entre outros, à possibilidade de marcar consultas médicas de rotina. Nesse sentido, ambos os itens contribuem para a manutenção da saúde. No mesmo sentido, uma máquina de lavar a roupa foi considerada necessária, dado que a alternativa de lavar a roupa no tanque prejudicava a saúde: “(…) no inverno a água está gelada e é muito difícil lavar a roupa as mãos ficam enregeladas não é bom para a saúde e é desconfortável (…)” [F7_VFX].20

No item “fazer férias com a família pelo menos uma vez por ano”, parte dos argumentos apresentados associou-se, também, a questões de saúde: “(…) Porque as pessoas têm que ter alguma coisa diferente não é? E que lhes faça bem ao corpo não é? (…)” [M12_BEJ]; “(…) Eu opinava mais e achava mais razoável fazer férias no campo e porquê? Porque o campo tem ar puro… por vezes a água alimentos puros e a gente na cidade vive debaixo de uma poluição que nem a gente calcula o que é que entra nos nossos pulmões (…)” [M8_BEJ].

E, finalmente, no item “ter acesso a atividades de lazer e culturais” foi possível associar o desporto à capacidade de ter uma vida saudável: [respondendo à pergunta se poderia chamar-se desporto à caminhada] “(…) pode chamar manutenção (…) eu sou daqueles que digo… que sem desporto as coisas emperram… a pouca vida das pessoas se altera (…)” [M2_VNG].21

Por outro lado, entre os aspetos incontornáveis quando se fala de “ser capaz de viver uma vida saudável” encontraram-se os cuidados de saúde e o acesso às infraestruturas que lhes estão associados. Se cuidados de saúde adequados são indispensáveis a uma boa saúde física, o acesso a serviços especializados é condição para a sua obtenção. Neste contexto, classificaram-se os itens “comprar medicamentos ou consultar um médico quando está doente ou se sente mal e pagar tratamentos dentários”, salientando-se neste último caso: “(…) Porque por exemplo muitas das infeções dos rins da garganta e etc. etc. são provocadas (…) por deficiências dentárias (…)” [M2_VNG].

Contudo, a questão da necessidade de poder pagar tratamentos dentários não se esgotou na necessidade de subsistência. A análise dos focus groups permitiu estabelecer uma relação com a necessidade de segurança, em concreto, a segurança económica.

 

SEGURANÇA

No caso dos idosos, a necessidade de subsistência surgiu interligada com a necessidade de segurança, definida como a capacidade de “estar e de sentir-se seguro contra riscos sociais e naturais e a violência”. A evidenciar esta relação emergiu a preocupação pela falta de acesso gratuito a determinados tratamentos dentários o que demonstrou a importância de ter recursos suficientes para obtê-los (segurança económica): [referindo-se a tratamentos dentários] “(…) em Portugal não existe acesso gratuito a estes tratamentos (…)” [M6_VFX].

As razões apresentadas no item “ter acesso a uma conta à ordem” ­conduziram, também, à sua associação com a necessidade de segurança, quer económica – “(…) tem que ter… uma conta à ordem para fazer face a qualquer eventualidade que surja (…)” [M10_BEJ]quer física – “(…) as pessoas que vão aos correios receber, são muito assaltadas aqui nos correios em Gaia porque não têm conta à ordem (…)” [F3_VNG].

Já o telefone associou-se à segurança por ter sido referido como essencial para aceder a cuidados ou auxílio em situações de urgência: “(…) o telefone … a gente se tiver uma aflição se tiver um problema de saúde… e até é um meio de comunicar da nossa porta p’ra fora com um telefone não é? (…)” [F12_BEJ].

 

IDENTIDADE

Três itens foram associados à necessidade de identidade dado que a argumentação produzida nos grupos revelou a sua importância para a capacidade dos indivíduos “formarem uma imagem positiva de si, sentirem-se respeitados, reconhecidos e valorizados pelos outros e não serem nem sentirem-se excluídos”.

Assim, no item “pagar tratamentos dentários” foi possível detetar constrangimento nas palavras de um participante, motivado pela impossibilidade de aceder a tratamentos dentários: “ (…) Tem uma dor de dentes tremenda… tem que arranjar maneira de arrancar aquele dente não é? (…) Mas a partir daí andam desdentados (…) não têm dinheiro para pôr aquele dente (…)” [M12_BEJ].

Igualmente, a capacidade de se “sentirem respeitados e não se sentirem excluídos” passa, também, por ter “um local para viver que esteja em boas condições e em bom estado de conservação”“(…) Para sentir que está a viver… porque se está num sítio degradado (…) nem vontade tem de viver (…)” [M4_VNG] – e por fazer férias com a família pelo menos uma vez por ano – [respondendo à pergunta sobre a importância de fazer férias] “(…) Ai então não é? uma vez por ano ter direito como qualquer outra pessoa tem… nós somos da mesma da mesma têmpera… somos de carne e osso não é?(…)” [F4_VNG].

 

AFEIÇÃO

Para ser capaz de “estabelecer, desenvolver e manter relações significativas de proximidade e intimidade” e poder, assim, satisfazer a necessidade de afeição, contribuem dimensões como as redes sociais primárias (família e amigos) ou as relações afetivas.

Estas dimensões encontraram-se no item “ter acesso a meios de comunicação, como um telefone ou internet”, em que o telefone foi associado, pelos participantes, a um meio de evitar a solidão e o isolamento: “(…) O telefone é uma companhia e permite o contacto com a família e amigos (…)” [F6_VFX]. E, igualmente, no item “ter acesso a atividades de lazer e culturais” em que a prática de uma atividade de lazer foi associado ao desenvolvimento e manutenção dos laços de amizade: “(…) Olhe, não sei, vai ao clubezinho aí jogar uma cartadazita está ali com os amigos e tal (…)” [M12_BEJ].

Ainda, no debate produzido sobre o item “ter um local para viver com espaço suficiente e privacidade para ler, escrever ou ouvir música, etc.” encontraram-se aspetos relacionados com a valorização do lar, como espaço de privacidade e preservação de afetos: “(…) Acho que uma das coisas até para salvaguardar casamentos cada um deve ter um espaço próprio porque todos nós precisamos de solidão (…) desde que cada um respeite o seu silêncio (…)” [M2_VNG].

 

LAZER

A importância concedida pelos idosos à necessidade de lazer, definida como a capacidade de “experimentar vivências agradáveis de repouso e distração da sua própria escolha” foi evidenciada pelo detalhe de algumas atividades enunciadas na discussão sobre a necessidade de “ter acesso a atividades de lazer e culturais”: “(…) jogar às cartas, fazer tricot, croché, dança, em associações, centros de dia, centros de convívio, mas também cinema e outras (…).” [M7_VFX]; “(…) devia ter acesso a exposições… enfim tudo o que é cultural (…)” [M10_BEJ].

Foi, igualmente, salientada a importância do repouso: “(…) e… descansar (…) muitas vezes o estar sem fazer nada é lazer também (…)” [M10_BEJ].

O item “ter um local para viver com espaço suficiente e privacidade para ler, escrever ou ouvir música” foi associado à necessidade de lazer, em que o espaço tem um papel importante para a fruição de momentos agradáveis de lazer, conforme é evidenciado no excerto seguinte: “(…) Eu a coisa que mais gosto de fazer é, quando venho à cidade ou venho à ginástica, chego a casa cansada, ponho ali os sacos, sento-me no sofá, tenho ali livros, ponho-me a ler, é a coisa que mais adoro fazer (…).” [F11_BEJ].

Por último o item “fazer férias com a família pelo menos uma vez por ano”, foi associado, também, à necessidade de lazer, patenteada na dimensão de distração ligada às férias: “(…) Porque… eu entendo que… as pessoas de facto deviam de ter direito depois de um dia…de um ano de trabalho (…) ter uma… um período de férias em que se pudesse sair do seu ambiente natural (…) bastava uma semana duas semanas (…)” [M4_VNG].

 

COMPREENSÃO

À necessidade de compreensão definida como a capacidade “de usar os sentidos, imaginar, pensar e raciocinar sobre as pessoas e o mundo em geral de forma informada e cultivada pela educação foi associado o item “ter acesso a meios de comunicação, como um telefone ou internet”: “(…) A internet ­permite o acesso à informação (…)” [V_VFX].

Igualmente, o item “ter acesso a atividades de lazer e culturais” foi associado à necessidade de compreensão: “(…) Mas o desporto pois vai fazer refletir… a vida da pessoa… porque uma pessoa que faz desporto normalmente tem uma (…) atitude cívica não é? (…)” [M2_VNG].22

 

LIBERDADE

A necessidade de liberdade traduz-se na capacidade “de fazer escolhas livres sobre as coisas práticas da vida e as formas de realização pessoal presente e futura, num contexto de igualdade de oportunidades”.

Da análise dos focus groups foi possível concluir que esta necessidade se encontra latente em todos os argumentos anteriormente apresentados, uma vez que ter capacidade de efetuar escolhas livres é condição necessária para satisfazer, adequadamente, as necessidades essenciais para uma vida digna.

Assim, por exemplo, na argumentação sobre a necessidade de ter acesso a atividades de lazer e atividades culturais encontrou-se expressa a liberdade de poder escolher a atividade que melhor se pensa poder contribuir para satisfação desta necessidade concreta: [respondendo à pergunta sobre que tipo de atividades o João deveria poder ter] “(…) Olhe não sei (…) bebe um copito aquela coisa dos reformados não é? e depois a seguir tem ali ao pé tem ali a biblioteca vai ali ler um livrito também (…) Revistas… tudo (…) ler livros (…) um filmezinho… tem televisão (…)” [M12_BEJ].

Do mesmo modo, a questão da igualdade de oportunidades, no contexto de garantia de direitos, emergiu na discussão de vários itens, registando-se referências ao direito à saúde, ao direito à habitação, ao direito às férias e ao direito ao transporte. Este último refletindo a preocupação em não ter de ficar confinado à sua habitação e não ter mobilidade: “ (…) o importante é a acessibilidade, os transportes. Ter direito aos transportes (…)” [V_VFX].

 

DISCUSSÃO DE RESULTADOS

 

Os resultados dos três inquéritos Eurobarómetro indicam que, em termos de necessidades socialmente reconhecidas, o maior consenso se encontra centrado na necessidade de subsistência, evidenciado pela priorização dos itens associados às condições (básicas) da habitação, à alimentação e ao acesso a bens e serviços (básicos) de saúde, quer nos idosos, quer na restante população.

As diferenças entre idosos e restante população que, com a exceção do caso do telefone, resultam de uma avaliação de menor grau de necessidade do item por parte dos idosos, podem ser explicadas por aquilo que Almeida (1993) identifica como a reação à “mera situação de vulnerabilidade que tende a reagir sobre representações e comportamentos” e que têm, “por vezes, efeitos de conformismo e conformação” (Almeida, 1993, p. 833).

Embora a investigação de Almeida (1993) tenha algum tempo, mantém-se a sua atualidade, uma vez que, desde então, outros estudos (Mozzicafredo, 1992, 2002; Mauritti, 2004; Bruto da Costa et al., 2008; Pereirinha, 2008; Rodrigues, 2008; Pereira, 2010b; Guerra et al., 2010; Cardoso et al., 2012) têm continuado a evidenciar que os idosos, em particular os pensionistas, são uma das categorias em situação de maior vulnerabilidade social.

Esta condição de vulnerabilidade radica, igualmente, em dimensões ontológicas não totalmente apreensíveis nos inquéritos por questionário mas, igualmente, importantes quando falamos do conhecimento de necessidades humanas.23 Ultrapassando este obstáculo, os resultados obtidos nos focus groups permitem aprofundar o conhecimento obtido através dos três inquéritos Eurobarómetro.

Assim, nos consensos alcançados por negociação identificamos outras necessidades socialmente reconhecidas como essenciais para uma vida com dignidade para o caso de um idoso, tais como as necessidades de segurança, identidade, afeição, lazer, compreensão e liberdade.

É possível, ainda, apreender as relações e prioridades que se estabelecem no processo de satisfação das necessidades. Ouvir a voz dos idosos, dando-lhes a oportunidade de realizarem uma avaliação arrazoada e explicarem as suas decisões24 permite conhecer “o que é percecionado e como é percecionado pelas pessoas” (Walker, 1987, p. 217). Esta opção metodológica revela-se vantajosa, sobretudo, para a compreensão das relações que se estabelecem entre os itens que contribuem para a satisfação simultânea de mais de uma necessidade e do modo como as necessidades se interrelacionam e interagem entre si, numa relação dialética que se cumpre na combinação das diferentes formas de satisfação.

Pela apreensão desta multiplicidade de relações é possível identificar as especificidades das necessidades dos idosos. Refira-se, por exemplo, a importância do acesso aos cuidados de saúde. Tal é evidenciado não só nos resultados dos Eurobarómetros para um indivíduo em abstrato, como igualmente evidenciado pelos resultados dos focus groups, em que o discurso dos idosos nos remete para a questão das fragilidades e especificidades próprias do ­processo de envelhecimento. O discurso destes idosos revela, ainda, que o acesso a estes cuidados enfrenta obstáculos relacionados com a carência de recursos económicos.

Todavia, esta não é uma questão nova, o problema do acesso a cuidados de saúde tem sido amplamente referenciado em estudos sobre a pobreza publicados em Portugal. Numa investigação de 1989, a falta de saúde foi identificada como um fator de empobrecimento (Silva et al., 1989). Num outro estudo de 1992, refere-se que as necessidades dos “idosos pensionistas”25 no campo da assistência médica e medicamentosa são fatores que “contribuem para a fragilização das condições de vida” (Almeida et al., 1992, p.79) destas pessoas. Estas conclusões foram, posteriormente, aprofundadas por Capucha (2005), o qual salienta que “uma distribuição dos rendimentos desvantajosa para os pensionistas é a principal fonte de vulnerabilidade dos idosos, impedindo-lhes o acesso aos cuidados (…) de que carecem” (Capucha, 2005, p. 189).

Igualmente, num estudo longitudinal, publicado em 2008, verifica-se a persistência das dificuldades no que respeita à satisfação das necessidades relacionadas com a esfera da saúde, nomeadamente:

 

(…) um em cada seis indivíduos pobres não conseguiu realizar exames/tratamentos médicos, pelo menos numa ocasião (…) sendo de notar que os valores mais elevados referem-se à especialidade dentária, cujo acesso é, normalmente, difícil através do Serviço Nacional de Saúde, implicando as alternativas (clínicas privadas), com elevados custos, dificilmente suportadas para pessoas de baixos recursos económicos [Bruto da Costa et al., 2008, p. 146].

 

Igualmente são os itens que não são particularmente valorizados para um indivíduo em abstrato nos inquéritos Eurobarómetro e, são-no para um idoso no contexto dos focus groups, que nos demonstram as especificidades das suas necessidades.

Efetivamente, o problema do isolamento e da solidão, fatores que contribuem para a vulnerabilidade desta categoria social, manifesta-se na importância conferida quer ao telefone para comunicar com os familiares e os amigos, quer ao acesso às atividades de lazer e culturais, associadas a momentos de convívio. Estes aspetos são importantes na medida em que “a ausência ou distância física dos filhos e netos, agravam o sentimento de isolamento por parte do idoso” (Guerra et al., 2010, p. 443).

Salienta-se, aliás, que o acesso a atividades de lazer e culturais é associado, no contexto dos focus groups, à satisfação de cinco necessidades diferentes: subsistência, afeição, lazer, compreensão e liberdade.

Também a preocupação com a mobilidade, evidenciada nos focus groups, vai ao encontro do que é constatado no estudo de Guerra et al. (2010), o qual nota as dificuldades sentidas pelos idosos, em particular em meio rural, onde se verifica “a inexistência, debilidade ou desadequação das redes de transportes públicos impedem a mobilidade dos idosos isolados” (Guerra et al., 2010, p. 437).

Por fim, os debates produzidos nos focus groups permitem confirmar os pressupostos do quadro teórico adotado, já que através da interpretação das relações reveladas no discurso dos participantes é possível aferir que as necessidades fundamentais, enquanto objetivos universais, são as mesmas para todos os indivíduos, sendo o contexto individual e social e a escolha a desempenhar um papel fulcral na sua satisfação, em linha com os pressupostos da abordagem de Sen (1999, 2005).

Esta conclusão é possível devido à opção de complementar um método quantitativo com um método qualitativo, obtendo-se o conhecimento de um conjunto alargado de fatores – a diversidade de bens à disposição dos indivíduos num dado momento e lugar, os gostos pessoais, as dinâmicas sociais e práticas culturais da comunidade onde interagem, os recursos económicos e as estratégias de otimização dos mesmos, contextualizando um processo em que os atores sociais racionalmente e livremente orientam as suas escolhas visando a satisfação das suas necessidades.

 

NOTAS FINAIS

 

Este estudo representa um contributo para o conhecimento daquilo que é necessário para que um idoso, no presente, possa viver com dignidade em ­Portugal. Complementa um método quantitativo, que nos confere uma imagem em torno daquilo que é considerado absolutamente necessário para uma pessoa ou família em abstrato ter uma vida decente ou aceitável, com um método qualitativo, que permite o aprofundamento da análise, baseado na experiência dos próprios idosos e centrado no caso de uma pessoa com características semelhantes às dos idosos participantes nos focus groups.

Com efeito, os dados dos Eurobarómetros transmitem uma imagem mais restrita daquilo que é considerado necessário para viver com dignidade, já que o consenso se reúne em torno de um número reduzido de itens e, nos questionários, as perguntas são apresentadas de forma isolada entre si e tendo como referência um indivíduo em abstrato.

O recurso aos focus groups, propiciadores de um contexto adequado para uma avaliação arrazoada, deu lugar à identificação, por parte dos idosos, de um conjunto mais abrangente de bens e serviços, permitindo compreender melhor as necessidades essenciais que lhes estão implícitas e como estas se interrelacionam, quando falamos de formas de satisfação.

Importa notar que a identificação de algumas destas necessidades foi efetuada a partir de um discurso remetendo para situações de privação onde é patente a influência condicionante desempenhada pelos recursos económicos. Este discurso reflete, em parte, o contexto de crise económica e financeira vivida em 2012 e as medidas implementadas nessa altura, que tiveram impactos negativos sobre a população idosa em Portugal. Este contexto e estas medidas explicam, aliás, o aumento da privação material neste grupo nos últimos anos.26

Refiram-se, de forma ilustrativa, três medidas27 de 2012, com impacto negativo sobre a capacidade de satisfação de necessidades dos idosos em Portugal. Uma está relacionada com a nova lei do arrendamento urbano, a qual já terá originado um aumento de rendas para parte da população idosa, refletido num aumento dos encargos com custos de habitação neste grupo.28 Outra medida, que podemos destacar, é o aumento das taxas moderadoras no acesso aos serviços de saúde. De facto, de acordo com um estudo realizado com indivíduos com idade superior a 65 anos, apresentado no Relatório de Primavera 2013 do OPSS, os serviços públicos e de primeira necessidade afetados pelo aumento de taxas moderadoras foram identificados por parte dos inquiridos como recursos de saúde que tinham deixado de usar em 2012 “por não poderem comportar os custos” (OPSS, 2013, p. 73-74). Finalmente, refira-se também a alteração, em 2012, do desconto dos títulos de transporte para reformados, sénior e pensionista, praticado nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e por operadores internos, uniformizado para 25% (Despacho normativo n.º 1/2012 de 27 de janeiro).29

Estas considerações confirmam a importância determinante das condições externas na capacidade de os indivíduos viverem dignamente. Mas, a par das questões de ordem material, as dimensões de ordem imaterial não têm sido também suficientemente abordadas a partir do ponto de vista dos idosos, e da satisfação das suas necessidades, daí a importância futura do aprofundamento do seu estudo30, com vista à adequação das políticas dirigidas a este grupo social.

 

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Recebido a 17-02-2014. Aceite para publicação a 12-04-2016.

 

NOTAS

1De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, art.º 1.º e art.º 25.º e o recomendado pelos Princípios das Nações Unidas para as pessoas mais velhas, na Resolução 46/91 de 16 de dezembro. No presente estudo, os termos “pessoas idosas” e “pessoas mais velhas” são usados como equivalentes.

2Projeto PTDC/CS-SOC/123093/2010 (“Pobreza Absoluta em Portugal”), financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (para mais informação consultar site do projeto http://www.rendimentoadequado.org.pt/).

3A partir dos anos 90 do século xx, surgiram diversos estudos, abordando temas como “o trabalho e organizações, política e estado, família e género, pobreza e exclusão social, comunicação e media, valores sociais e estilos de vida, nos quais, transversalmente, o fenómeno do envelhecimento foi sendo abordado” (Gomes, 2014, p. 7). Entre outros, citam-se Almeida et al. (1992), Mauritti (2004), Bruto da Costa et al. (2008) e Rodrigues, Figueiras e Junqueira (2012).

4O envelhecimento biológico traduz-se numa idade biológica, definida como a evolução da condição física de uma pessoa tomada com base no seu potencial de esperança de vida; o envelhecimento psicológico traduz-se numa idade psicológica e tem a ver com a melhor ou pior capacidade para enfrentar um acontecimento inesperado ou dramático; o envelhecimento social traduz-se numa idade social definida como o modo como um dado comportamento está ou não de acordo com os papéis sociais esperados para uma determinada idade cronológica (Papalia, Camp e Feldman, 1996, p. 12).

5Utilizado no estudo Poor Britain, realizado em 1985, por Mack e Lansley.

6“Estes fins foram designados de formas diferentes por diferentes autores: necessidades (Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn, 1991), objetivos universais e necessidades básicas (Doyal e Gough, 1991), capacidades básicas e funcionamentos fundamentais (Sen, 1999) e capacidades centrais (Nussbaum, 2000)” (Pereira et al., 2013, p. 3).

7Tradução própria. No original entitlements.

8Tradução própria. No original capabilities.

9Tradução própria.

10“O que se altera através do tempo e das culturas é o modo ou os meios através dos quais são satisfeitas” (Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn, 1991, p. 18).

11A este propósito Walker considerou que “ (…) as pessoas necessitam de tempo para encontrar as suas próprias palavras, refletirem sobre a sua própria experiência e lidar com a complexidade do tema a debate (…) devem ter a oportunidade de escutar os pontos de vista de outras pessoas e discutir com elas” (Walker, 1987, p. 221).

12Para a realização destes testes as opções “Desejável mas não necessário” e “Nada necessário” foram agrupadas numa única categoria “Outros”.

13Estes municípios foram selecionados porque representam áreas não atípicas, no sentido de que não têm caraterísticas fortemente atípicas em termos de ruralidade, acessibilidade e contexto económico (Pereira, Pereirinha e Passos, 2009), e asseguram a representação da diversidade geográfica e cultural de Portugal continental, nomeadamente a sua segmentação norte/sul e litoral/interior (Pereira et al., 2013).

14O recrutamento de participantes para a realização destes focus groups foi realizado através de três modalidades diferentes – on-line, drop-off e face a face – com o objetivo de garantir uma dimensão adequada de potenciais participantes em cada um dos concelhos e a diversidade necessária de características demográficas e socioeconómicas em cada grupo (Pereira et al., 2013). Dos potenciais participantes idosos recrutados – 39 em Vila Nova de Gaia, 41 em Vila Franca de Xira e 41 em Beja – foram selecionados 12 indivíduos em cada concelho, procurando-se garantir a heterogeneidade demográfica e socioeconómica desejada em cada grupo (Pereira et al., 2013).

15Nos três focus groups, aquando da escolha do nome da pessoa com 65 ou mais anos sobre a qual se iria falar, os grupos indicaram, à partida, nomes masculinos. Uma vez que nesta fase, no que à vinheta dizia respeito, a opção metodológica de análise não contemplava uma perspetiva de género, a questão da escolha de nomes masculinos não foi abordada.

16Seguidamente eram realizadas “perguntas de verificação que permitiam elucidar conceitos que sendo usados na linguagem corrente (senso-comum) podiam ser usados com significado distinto, por exemplo, ‘poder ter/dever ter; necessidades/desejos’. Permitiam também compreender as racionalidades subjacentes ao que é mencionado, por exemplo, ‘é necessário/importante para quê e porquê? O que aconteceria se a pessoa não tivesse?, É aceitável não conseguir obter?’ (…) contribuíam para verificar o consenso, por exemplo ‘Alguém discorda? Está alguma coisa a mais? Falta alguma coisa?” (Pereira et al., 2013, p. 10).

17Aliás, alguns destes itens – “comprar medicamentos ou consultar um médico quando está doente ou se sente mal, usar os transportes públicos locais quando necessário e ter acesso a atividades de lazer e culturais” – já tinham sido espontaneamente referidos e consensualmente incluídos por todos os grupos naquilo que uma pessoa deveria poder ter ou obter como mínimo, aquando do debate realizado na parte anterior acerca do mínimo adequado na sociedade portuguesa.

18 pessoa pudesse aceder aos seus momentos de privacidade, e não na sua utilização.

19Note-se que nalguns casos o item já tinha sido espontaneamente referido como fazendo parte do mínimo na 2.ª parte dos focus groups, relacionada com debate sobre o mínimo, nestes casos optámos por recorrer também à argumentação produzida nessa parte para efetuar a associação.

20F refere-se a um indivíduo do género feminino, por sua vez, M a um indivíduo do género masculino. O cardinal refere-se à ordenação atribuída a todos os participantes nos focus groups. Segue-se a identificação do concelho de cada um dos entrevistados (Vila Nova de Gaia, Vila Franca de Xira, Beja).

21Neste exemplo optou-se por recorrer à argumentação produzida na 2.ª parte dos focus groups.

22Argumentação produzida na 2.ª parte dos focus groups.

23De acordo com Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1991).

24Note-se que quer a amostra dos Eurobarómetros quer a amostra dos focus groups têm uma composição heterogénea (Quadros 2 e 3), sendo que no caso dos focus groups esta heterogeneidade foi, intencionalmente, garantida em cada grupo realizado.

25Uma das categorias sociais identificadas no estudo de Almeida et al. (1992).

26A taxa de privação material para os indivíduos com 65 e mais anos, em Portugal, registou uma diminuição relevante de 2004 a 2011, de 31,1% para 21,3%, mas aumentou em 2012, para 21,7% e de uma forma mais significativa, em 2013, para 23,1% (Eurostat, 2014).

27Não aprofundadas neste artigo.

28Apesar de a nova lei do arrendamento urbano só ter entrado em vigor em novembro em 2012, um mês após a realização do último grupo, a mediana da distribuição dos encargos com custos de habitação para os indivíduos com 65 e mais anos vinha registando em Portugal um acréscimo contínuo desde 2008, tendo aumentado de 8,9% para 10,5 em 2012, e depois novamente para 10,7% em 2013 (Eurostat, 2014).

29Note-se que, por outro lado, foi criado um segundo escalão de 50 % de bonificação no “Passe Social+”. Contudo, para este, são apenas elegíveis os passageiros beneficiários do Complemento Solidário para Idosos ou do Rendimento Social de Inserção (portaria n.º 36/2012 de 8 de fevereiro).

30Os resultados patentes neste estudo fazem parte de uma investigação mais abrangente. Espera-se que as conclusões, a serem oportunamente divulgadas, venham a suscitar um debate informado pela abordagem consensual no que respeita à pobreza e à privação material forçada, em Portugal.

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