SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número219A aposta portuguesa na biotecnologia sob o impulso da integração europeiaTrabalho e movimentos sociais: diálogo com as políticas públicas no Brasil - o caso ConCidades (2013-2014) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGO

Novos caminhos para a saída da marginalidade social no Brasil

New ways to overcome social marginality in Brazil

 

Paolo Totaro*

*Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Av. Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro dos Martins, Maceió - CEP 57072-900, Alagoas, Brasil. E-mail: paolo.totaro@ics.ufal.br

 

RESUMO

A marginalidade é, em geral, vista como um resíduo social da ação dos “sistemas”. Mas essa visão parece, hoje, ­limitada. Propomos a distinção dos sistemas em dois tipos: 1) os do “distanciamento tempo-espaço”, que afastam fisicamente os indivíduos, mas permitem a comunicação distanciada; 2) os do “distanciamento lógico”, que não afastam fisicamente as pessoas, mas interrompem a interação comunicativa. Defendemos que a ação excludente é um caráter estrutural só do segundo tipo de sistema. Na base de pesquisas de campo que realizamos, propomos a hipótese que aqueles do primeiro tipo estão abrindo, também no Brasil, novas possibilidades para os marginalizados interagirem com a sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: marginalidade social; sistemas abstratos; distanciamento tempo-espaço; cultura popular.

 

ABSTRACT

Marginality is generally regarded as a social waste of “systems”, but today this view seems limiting. We propose a distinction of action systems into two types: 1) the “time-space distanciation”, which physically separates people from each other but allows a distanced communication; 2) the “logical distanciation”, which does not separate individuals physically but interrupts communicative interaction between them. We argue that marginalization is a structural consequence only for the second type of action system. According to field research, the second type of action system is opening new possibilities in Brazil for marginalized people to interact with society.

KEYWORDS: social marginality; abstract systems; time-space distanciation; folk culture.

 

INTRODUÇÃO

 

O desenvolvimento económico brasileiro, pelo menos a partir da abolição da escravidão, teve sempre efeitos prejudiciais para a integração social. A própria abolição, que modernizou formalmente as relações de produção, não conseguiu, conforme as análises mais prestigiadas (Fernandes, 2008; Ianni, 1987), fazer com que os ex-escravos conseguissem se integrar na lógica do mercado capitalista do trabalho, gerando o primeiro fenómeno de exclusão social de massa da sociedade brasileira.

Destino análogo teve uma parte consistente da população afetada pela urbanização, que representa a segunda grande mudança experimentada pelo país na direção da modernização. A urbanização no Brasil, assim como em geral na América do Sul, teve um caráter “sociopático”. Esta patologia, nas elaborações clássicas dos analistas, foi imputada a um descompasso entre a atração representada pelos padrões de consumo do mundo urbano e as reais capacidades do sistema socioeconómico brasileiro de satisfazer as consequentes demandas de trabalho e renda (Pereira, 1965, pp. 79-133). Uma parcela importante do êxodo rural se transformou numa simples deslocação física de grandes massas rumo aos centros urbanos, sem nenhuma verdadeira integração na cidade. O resultado foi uma instalação permanente de gigantescas aglomerações sub-humanas, económica e socialmente excluídas do resto da vida urbana (CEPAL, 1979, pp. 95-101).

No Brasil, em geral, as mudanças culturais solicitadas pela modernidade se encontraram em desequilíbrio com o concreto sistema económico que as próprias forças modernizadoras conseguiram desenvolver. No caso da abolição, a ideia da mão de obra livre num mercado igualmente livre entrou em choque com um capitalismo ainda afetado pela estrutura senhorial do poder económico e político (Fernandes, 1987). No caso da urbanização, o ideal da racionalização das forças produtivas gerou marginalidade socioeconómica pelas tendências estruturais do modelo burocrático-industrial (Frank, 1966) e pela particular hibridação com que esse modelo se apresentou na América Latina (Germani, 1960).

Em outras palavras, se a modernização na Europa causou desagregação social em termos de preeminência da “integração sistémica” sobre a “integração social”, ou, querendo utilizar a famosa fórmula de Habermas (1999), em termos de “colonização do mundo da vida por parte dos sistemas”, na América Latina ela apareceu mais como marginalização social tout court. Grandes massas populacionais perderam as referências pré-modernas, sem ganhar as modernas; perderam a integração social da “comunidade” sem encontrar a integração sistémica proporcionada pelo mercado e pela burocracia.

Hoje, assiste-se a mais um surto modernizante no Brasil, representado, sobretudo, pela difusão da simbologia do consumo e pelas formas de comunicação mediadas pela Rede. Quais são as possibilidades para que esse novo impulso ao desenvolvimento socioeconómico acabe de maneira diferente que no passado? Quais as possibilidades para que ele, em lugar de deixar no seu caminho os detritos sociais da marginalização, facilite a comunicação e a integração entre os diferentes materiais humanos que compõem a nossa sociedade? Essas perguntas constituem o foco do artigo. Será desenvolvida uma análise teórica procurando apoio em dados empíricos. O raciocínio teórico fundamenta-se na análise da marginalização a partir de dois diferentes tipos de “desagregação social” consequentes à ação dos sistemas: 1) o que Giddens (1991) chama de desagregação por “distanciamento tempo-espaço”; 2) aquele que no artigo chamamos de desagregação por “distanciamento lógico” e que encontra sua maior expressão na organização burocrática.

 

DISTANCIAMENTO TEMPO-ESPAÇO E DISTANCIAMENTO LÓGICO

 

A sociologia leva o conceito de burocracia além do mundo dos escritórios da administração pública para envolver a organização do trabalho de fábrica. A substancial equivalência entre a burocracia dos escritórios e a do trabalho industrial foi até institucionalizada pela teoria da organização, que reuniu ambas sob um único conceito: o de “organização formal” (Blau e Scott, 1970).

Existe uma evidente contiguidade também entre a burocracia, administrativa ou industrial, e o âmbito dos usuários e dos consumidores. Quando Weber (1999, p. 741) diz que “a burocratização é o meio específico para transformar um ‘agir de comunidade’ em um ‘agir social’ racionalmente ordenado”, não se refere apenas à sua capacidade de submeter às regras formais os funcionários que trabalham nas suas repartições mas, também, àquela de transferir essa submissão aos “dominados” (Weber, 1999, p. 738). Uma vez que o aparato predispõe o serviço conforme princípios formais, não somente os atos referidos à produção do serviço, mas também os referidos à sua fruição devem ser coerentes com tais princípios (Horkheimer e Adorno, 1983). A essa burocratização da vida social temos que remeter todas as categorias pelas quais a Escola de Frankfurt e seus seguidores salientaram a perda de integração social (que podemos chamar de “desagregação social”) que acompanhou o desenvolvimento da civilização moderna.

Contudo, na última década do século XX apareceram novas conceituações a respeito do fenómeno da perda de integração social. A partir de teorias oriundas da geografia, em particular a da “compressão tempo-espaço” de David ­Harvey (1992), começou a destacar-se o papel da conceção moderna do espaço e do tempo no fenómeno da desagregação social. Em particular, Giddens (1991, p. 29) considera a desagregação social (“desencaixe”) como “o deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. Nessa visão, o conceito central é o do “distanciamento tempo-espaço”, concebido como “alongamento” dos sistemas sociais e consequente rarefação das situações de efetiva presença física dos sujeitos envolvidos nas relações. Giddens (1991, p. 30) indica, entre as principais forças do distanciamento tempo-espaço, o “dinheiro moderno”, sobretudo na forma de títulos de crédito, e os “sistemas peritos”, em particular os que remetem para os conhecimentos da ciência e da tecnologia.

Temos, portanto, duas análises diferentes sobre a desagregação social. Uma delas, de conceituação mais recente, salienta o distanciamento físico consequente à expansão dos mercados. Chamamos, de acordo com a terminologia de Giddens, “distanciamento tempo-espaço” à desagregação considerada desse ponto de vista. Temos, aliás, a desagregação em que mais permaneceram focados os clássicos da sociologia alemã, que salienta as consequências da burocracia e da burocratização. Chamamos “distanciamento lógico” à desagregação considerada desse ponto de vista. Escolhemos o atributo de “lógico” para destacar que esse tipo de distanciamento não é caracterizado pelo afastamento físico entre os sujeitos, mas pela interrupção do fluxo comunicativo imposta pela conexão somente lógica dos processos formais. Os funcionários de um aparato burocrático, os trabalhadores de uma linha de montagem, os moradores anónimos de um grande condomínio, os motoristas no trânsito etc., apesar de se encontrarem em situações de proximidade física, não comunicam diretamente entre si para integrar os seus comportamentos, pois a conexão entre eles é mediada por um sistema de regras formais que se encontra além da interação comunicativa.

Esses dois tipos de desagregação não são somente duas maneiras diferentes de chamar o mesmo objeto, mas representam aspetos concretamente diferentes do fenómeno da desagregação social. Tanto o distanciamento tempo-espaço, quanto o distanciamento lógico, causam a rutura das “relações de comunidade”. Todavia o primeiro, enquanto distancía fisicamente as pessoas, oferece novas formas de integração nesse novo plano distanciado, graças à mediação dos sistemas abstratos. Melhor, ele torna possível o distanciamento físico exatamente porque oferece meios para reorganizar as relações nesse plano distanciado. Trata-se não somente de meios técnico-práticos (transporte e comunicações), mas também de meios lógico-abstratos. Por exemplo, a expansão dos mercados foi possibilitada também pelo balanço por partidas dobradas e pelas técnicas de cálculo da matemática financeira que, apesar de os investimentos estarem dispersos geograficamente e temporalmente, permitiam conhecer a rentabilidade deles como se o capital fosse por inteiro disponível “aqui e agora” (Weber, 1999, p. 70; Giddens, 2003, pp. 179-180; Crosby, 1999, pp. 187-208).

Pelo contrário, a desagregação por distanciamento lógico não proporciona reorganização nenhuma para as relações sociais que ela interrompe. Os estudos da teoria da organização convergem totalmente nesse ponto. A burocracia não consegue tomar conta da matriz social em que qualquer agir, inclusive o agir racional, sempre está encaixado (Selznick, 1948, pp. 25-26). Essa incapacidade acaba por gerar, no interior da organização, grupos e relacionamentos comunicativos fora de seu controlo, chamados “grupos e relações informais” (Blau, 1962, p. 34; Blau e Scott, 1970, p. 18). A tentativa de eliminar esses resultados informais consiste na acentuação daquela própria formalização que causou o problema, acabando por encaminhar círculos viciosos. Isso resulta numa acentuação da distância entre a organização e a iniludível necessidade de interação comunicativa de seus membros (Crozier, 1981).

Para resumir. O distanciamento tempo-espaço de Giddens, ainda que distancie os sujeitos, não interrompe a comunicação. O distanciamento lógico (típico da burocracia), pelo contrário, não distancia necessariamente os sujeitos, mas interrompe a comunicação, pois encapsula os sujeitos em passos de processos formais. Em trabalhos anteriores (Totaro, 2009, 2014), formulámos a hipótese de que essa diferença entre as duas formas de distanciamento remete, em boa parte, para uma diferença gnosiológica na relação entre sujeitos e “sistemas”. Os “sistemas abstratos” que geram o distanciamento tempo-espaço são aplicados a um elemento (o tempo-espaço) que, possuindo fundamento físico, se apresenta como externo aos sistemas, como um objeto das suas manipulações. Eles transformam, sim, esse objeto num problema – o distanciamento físico – mas, graças aos aparatos de cálculo e às suas aplicações, possibilitam também a sua solução: um instrumento nas mãos dos homens para solucionar um problema externo. No trabalho burocrático, ao contrário, a burocracia não gera um problema externo a ela. A interrupção dos processos comunicativos, derivada da segmentação e formalização do trabalho, representa um problema interno ao próprio sistema burocrático. O encapsulamento no processo não é um instrumento nas mãos dos homens, mas um elemento de coação sobre os homens. Então, enquanto no distanciamento tempo-espaço os homens utilizam os sistemas, no distanciamento lógico, os homens são utilizados por eles.

Com referência à chamada modernidade, os sistemas abstratos do distanciamento lógico são identificáveis com a burocracia; aqueles do distanciamento tempo-espaço são identificáveis com a ciência, com as tecnologias das comunicações e dos transportes e com os instrumentos para atuar no mercado. Contudo, as duas tipologias não podem ser totalmente representadas por formações histórico-sociais concretas, pois, numa certa medida, elas sempre coexistem em qualquer sistema abstrato. Por exemplo, a burocracia comercial representa também um sistema de integração no tempo-espaço distanciado1 (embora isso seja verdadeiro para os seus usuários e não para os funcionários). Da mesma forma, a livre ação no mercado é limitada pelas condições burocrático-legais fixadas pelo direito. Contudo, é evidente que um ator que age num sistema burocrático é mais afetado pelo isolamento num passo de um processo; a sua referência é o próprio processo e não os outros atores nele inseridos. Pelo contrário, um ator que age no mercado é mais voltado para a interação com os outros atores do mercado, conforme planos autónomos e prevalentemente pela mediação de sistemas abstratos, como, por exemplo, o “sistema dos preços” (Hayek, 1945). É nesse sentido explicativo, e não descritivo, que deve ser considerada a classificação, que vamos fazer abaixo, do consumo e da “rede”, a primeira sendo interpretada como força do distanciamento lógico e a segunda, como força do distanciamento tempo-espaço.

 

O DISTANCIAMENTO LÓGICO NO CONSUMO

 

Na sociedade altamente industrializada, a burocratização não envolve somente os usuários dos aparatos administrativos e dos serviços, mas, também, os consumidores. O modelo de produção em escala reflete-se no mercado como consumos de massa, banalizando em classificações padrões até os objetos da produção cultural (Horkheimer e Adorno, 1983). No setor da distribuição, os supermercados monopolizam o comércio varejista ou de retalho, a funcionar como uma linha de montagem cujo produto acabado é o carrinho cheio do cliente saindo das caixas.

Ao nível do supermercado, porém, os bens adquirem um valor adjunto de tipo cultural. Eles não são mais apenas mercadorias – como para o estádio produtivo do ciclo económico – mas tornam-se símbolos, signos de um código social que fala uma linguagem classificatória (Baudrillard, 2007, pp. 59-60). No drugstore, o consumidor encontra-se, num primeiro momento, ante uma fileira de objetos que deixa sem referência, sem critério de escolha, suscitando nele “constrangimento de inércia”. Daí ele, “de maneira lógica, encaminhar--se-á de objeto para objeto. Ver-se-á apanhado num cálculo de objeto” cujo escopo é a maximização da sua posição na classificação social (Baudrillard, 2007, p. 17).

Nessa atividade, porém, o consumidor encontra-se inserido num círculo vicioso: o sistema mediático, de um lado, utiliza (instrumentalmente) a aspiração do consumidor para uma personalização da diferença; de outro, essas “diferenças ‘personalizantes’ deixam de opor os indivíduos uns aos outros, hierarquizam-se todas numa escala indefinida e convergem para modelos” (Baudrillard, 2007, p. 88). Abre-se, então, um hiato entre a exigência de satisfação, que é pessoal, e as referências simbólicas do consumo, que são classificações “despersonalizantes”. A reiterada procura de uma valorização individual mediante outros consumos pode somente reforçar o mesmo tipo de insatisfação que se quer derrotar. Nem se pode pedir ajuda ao “sistema abstrato” do setor, que é a moda, enquanto a moda é a origem e não a solução do problema.

No nosso esquema de análise, essa contradição é geradora de distanciamento lógico. De facto, no consumo temos, em analogia com o caso da burocracia, os três elementos fundamentais do distanciamento lógico: 1) a coação a regressar em modelos abstratos, embora, ao contrário do caso da burocracia, essa coação seja (em parte) autoimposta pelo próprio ator, pois é incorporada por ele; 2) o isolamento do indivíduo num processo cuja reiteração é sem saída (a reiteração do ciclo representado pela procura da personalização mediante a padronização); 3) a impossibilidade que a contradição seja solucionada pelo sistema abstrato, que nesse caso é a moda, pois recorrer a esse sistema pode somente desembocar num círculo vicioso que reforça o problema.

 

O DISTANCIAMENTO TEMPO-ESPAÇO NA REDE

 

As contradições do modelo burocrático, salientadas mais acima tornaram-se inviáveis para o próprio capital, sobretudo a partir da crise económica de 1973. Com base numa pesquisa empírica de grande alcance, Porter (1985) destacou o dado surpreendente da tendência das empresas em privilegiar a colaboração “em horizontal”, em lugar do modelo baseado na centralização das decisões e na executividade mecânica do trabalho. A colaboração dinâmica, através de ajustes interdependentes das atividades, tornou-se o cerne da lucratividade. A parceria (partnership) mostrou-se portadora de um valor agregado (VAP) que representa hoje o elemento crucial para a boa colocação no mercado (Johnston e Lawrence, 1988). Como destacam Lambert e Peppard (2000, p. 464), a verdadeira novidade não está no trabalho em equipa, já experimentado na década de 1950, mas no facto de que, enquanto naquela época a colaboração estava focada no produto, agora ela está focada na sincronização em si de atividades de grupos geograficamente dispersos, graças à trama entrelaçada pelas tecnologias informáticas e das telecomunicações.

Em geral, “a sociedade em rede” (Castells, 2007) tem, entre as outras implicações, a de compenetrar o agir comunicativo com a economia a cada nível: a interação social, uma vez que flui na rede, gera cultura no mundo dos consumidores e impõe condições às estratégias dos produtores (v., por exemplo, Qualman, 2009). As pesquisas empíricas, destaca Silvio Meira (2010), demonstram que pelas redes sociais o “boca a boca” está prevalecendo a respeito da publicidade como fator decisivo nas escolhas e isso ocorre, também, no caso do consumidor brasileiro. A empresa que não participa do “boca-a-boca que rola na rede” pode deslizar fora do mercado. Aproveitar esse mecanismo – esclarece Meira – não significa tentar manipular aquela forma de comunicação para orientá-la a objetivos pré-estabelecidos. Significa, pelo contrário, integrar e moldar a empresa conforme as discussões que se desenvolvem nas redes.

Com certeza, os próprias media sociais podem desagregar e não integrar o tecido social. Os cliques que nos conectem com a rede podem, também, transformar-se de ações de comando sobre um instrumento em passos de processos formalizados que o indivíduo não mais dirige, mas aos quais deve obediência (Lanier, 2010). Nesse caso, seria mais uma vez a lógica supraindividual de um sistema – e não a direta e livre interação social – a fixar as conexões entre os atos dos indivíduos. Contudo, a rede proporciona a possibilidade de uma posição de comando para a coletividade sobre os sistemas; uma possibilidade que na sociedade burocrático-industrial estava excluída por princípio.

Com o quadro teórico até agora delineado, representado pela duplicidade das forças desagregadoras/integradoras em termos de distanciamento lógico e distanciamento tempo-espaço, podemos encarar a questão da marginalidade social e as novas possibilidades que hoje se apresentam para o Brasil de reduzir o tamanho do problema.

 

A MARGINALIZAÇÃO SOCIAL

 

A marginalidade social marca inelutavelmente qualquer análise sociológica sobre o Brasil. O valor dessa afirmação emerge claro nos comentários de Jessé Souza (2003) ao conceito de habitus de Bourdieu. Souza destaca que no uso feito por Bourdieu, o habitus naturaliza a sociedade salarial dos países do welfare state, generalizando, de forma opaca, a figura social do “cidadão”, a qual vai além das barreiras de classe. Se a homogeneização social gerada pela cidadania pode ser aceite como implícita na sociedade francesa da década de 1970 (que representa o foco da observação sociológica de Bourdieu), não pode sê-lo em sociedades do capitalismo periférico, como a brasileira. Aqui, ao lado do habitus do “cidadão” – que Jessé denomina de habitus primário – desenvolve-se como fenómeno de massa um habitus precário. O habitus precário encontra uma identificação apenas como ausência do habitus primário, e como inércia para a autoexclusão.

Essa consideração, que Souza desenvolve sobre a impossibilidade de aplicar mecanicamente o conceito de habitus de Bourdieu a uma realidade como a brasileira, vale também para os conceitos de “distanciamento lógico” e “distanciamento tempo-espaço”. Como já destacamos, o distanciamento lógico decorre do facto de os indivíduos se conectarem uns aos outros somente através da mediação da máquina burocrática. Eles, tipicamente, atuam um ao lado do outro, em um mesmo estabelecimento e de forma sincronizada, mas encapsulados cada um num passo do processo e, por isso, isolados do contexto comunicativo e social. Conforme os relatos de historiadores como Thompson (1967) ou Pollard (1963), foi essa a maior causa de constrangimento para os operários ingleses na passagem das formas pré-modernas de trabalho para o regime de fábrica e, como já destacamos, foi este o elemento mais comum na crítica social da sociologia clássica alemã. No Brasil, ao contrário, o efeito desagregador mais contundente da modernização foi a produção de um consistente material humano segregado em áreas suburbanas ou em regiões geográficas marginalizadas. A separação entre esse massivo segmento social e a chamada “sociedade inclusiva” não foi, então, aquela entre pessoas que atuam lado a lado encapsulados em um passo de um processo, mas aquela entre indivíduos que estão no sistema e outros que estão fora dele, entre cidadãos e não-cidadãos, entre centros modernos e periferias sub-humanas ou pré-modernas.

Analogamente, não podemos aplicar de forma mecânica ao Brasil o conceito de Giddens do “distanciamento tempo-espaço” e adotar o mesmo olhar desse autor. Giddens (1991) pode salientar uma nova forma de “confiança” para o indivíduo da “alta modernidade” como consequência social da ação dos sistemas abstratos. Mas, evidentemente, a centralidade dessa consequência deve ser relativizada em sociedades como a brasileira. Com referência aos marginalizados e aos periféricos, é muito duvidoso pensar que os sistemas abstratos possam proporcionar, em si mesmos, uma nova confiança. Pelo contrário, é um dado de facto que a penetração social de tais sistemas – em primeiro lugar da comunicação mediada por computadores – está possibilitando aos grupos desqualificados a superação das barreiras sociais na interação comunicativa e um relacionamento direto e autónomo com o mercado e com os fluxos culturais veiculados por aqueles sistemas. Portanto, está-se a delinear uma nova forma de integração social, não mais equacionada com a negação do habitus originário dos desqualificados para adquirir aquele do “cidadão”, mas com a valorização das tradições e das práticas de tal “habitus” originário. Isso está a contribuir para uma erosão do “habitus precário”, ou seja, do habitus vivenciado somente negativamente, como simples carência dos atributos próprios dos membros da sociedade inclusiva. Este processo, sim, pode representar uma nova fonte de confiança e segurança ontológica para os marginalizados.

O habitus precário representa o correlato psicossocial de um fenómeno que no nosso esquema de análise pode ser definido da seguinte forma: os indivíduos que se encontram relacionados com os sistemas abstratos apenas por uma forma externa e residual tornam-se marginalizados. Essa condição afetou grandes massas no Brasil ao longo do chamado processo de modernização do país. Em particular, foi experimentada por muitos ex-escravos lidando com o mercado do trabalho assalariado e por muitos trabalhadores rurais na passagem para o mundo urbano.

Pelos estudos de Florestan Fernandes (2008), emergem claros dois dados: 1) por quase todo o século XX, a única integração social concebível foi representada, para os negros e mulatos, pela tentativa de alcançar o estilo de vida do cidadão da “ordem social competitiva”, uma ordem alheia criada e desenvolvida pelos brancos; 2) Tal modelo recebe a sua tipificação no mudo urbano. Adaptar-se ao modelo da “sociedade inclusiva” significava, em boa medida, compartilhar “o estilo urbano de vida” (Fernandes, 2008, v. II, pp. 209-210).

As dinâmicas de inclusão e marginalização a respeito do ambiente urbano são centrais para a sociedade brasileira na sua generalidade. Isso não somente porque, como nos informa Milton Santos (1993, p. 20), a percentagem da população vivendo em cidades passou de 5,9% em 1872 para 65,10% em 1980, mas, sobretudo, porque o desenvolvimento dos sistemas de transportes e comunicações estendeu o “mundo urbano” além das metrópoles. De facto, a correspondência entre a população agrícola e a população rural acabou por se relativizar, pois boa parte da população agrícola tornou-se urbana pela sua residência (Santos, 1993, p. 33). Aliás, as áreas agrícolas foram em boa medida atingidas pelos mesmos sistemas abstratos que afetam tipicamente as cidades. Dessa forma, também essas áreas se transformaram num “meio técnico-científico”, a saber, num espaço que “torna-se fluido, permitindo que os fatores de produção, o trabalho, os produtos, a mercadoria, o capital, passam a ter uma grande mobilidade” (Santos, 1993, p. 39).

O aspeto da urbanização geográfica do Brasil, salientado por Milton ­Santos, corresponde, no nosso esquema de análise, a um processo de integração no distanciamento tempo-espaço. Contudo, ao lado desse aspeto da urbanização, há outro. O ambiente urbano não é somente um “meio técnico-científico-informacional” (Santos, 1993, pp. 35-47), mas também um sistema que subordina o elemento humano a classificações formais para inseri-lo em processos padronizados. Por outras palavras, ele é também o ambiente onde se desenvolveu hegemonicamente o distanciamento lógico. A marginalidade socioeconómica brasileira é, sobretudo, um produto de descarte deste último aspeto, um resíduo social da urbanização governada pelo modelo burocrático-industrial.

 

A SOCIEDADE BUROCRÁTICO-INDUSTRIAL NO BRASIL E SEUS “RESÍDUOS” SOCIAIS

 

A industrialização no Brasil foi totalmente baseada na lógica da centralização e da hierarquia burocrática, no interior de um processo internacional cujos caráteres foram destacados pela teoria do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” (Frank, 1966), bem como pela teoria do “sistema mundo” (­Wallerstein, 1995). Na sociedade burocrático-industrial o subdesenvolvimento e a formação de “periferias” não foram uma anomalia ou um atraso histórico ao longo do processo de afirmação da civilização moderna. O subdesenvolvimento foi necessário ao desenvolvimento, bem como a existência das periferias foi funcional ao modo de produção e de acumulação das economias do “centro”. Nesse esquema, que ainda conserva atualidade, tanto as empresas quanto inteiras regiões geográficas replicavam, internamente a elas e nas suas relações com as outras entidades empresariais e políticas, as mesmas relações hierárquicas e centralizadoras às quais elas mesmas se encontravam submetidas. Nas áreas periféricas emergiam entidades centrais, que induziam outras entidades daquela área a se constituírem em suas periferias. Então, o desenvolvimento desses centros periféricos acontecia através de mais subdesenvolvimento e periferização da área em seu conjunto.

A “modernização” da agricultura brasileira correu, justamente, por esse sistema de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Pela análise de George Martine e R. Garcia (1987, p. 19), ela se iniciou com “a implementação da ideologia de modernização conservadora do governo militar, via […] aceleração do processo de industrialização”, permitindo a formação e consolidação de um complexo agroindustrial. Isso gerou a segmentação da economia agrícola em dois tipos de produtores: de um lado, os maiores, equipados com tecnologia moderna e orientados para o mercado externo e para a agroindústria; de outro, a grande massa de camponeses “destecnificados” e desassistidos, cuja produção se destinava ao autoconsumo e ao mercado interno (Martin e Garcia, 1987, p. 32). Essa “modernização” redundou no aumento do grau de concentração da propriedade e na dificuldade de acesso à terra, gerando “excedentes” da força de trabalho rural nas áreas tradicionais. Como nas “novas fronteiras” agrícolas, para que esses excedentes pudessem migrar, instalava-se as mesmas tendências para a concentração da propriedade, os contingentes expulsos não tinham mais para onde ir, acabando por engrossar o êxodo na direção das grandes cidades e a marginalidade urbana (Martine e Garcia, 1987).

Martine (1987, pp. 22-27) salienta que esse processo todo foi governado por um arcabouço burocrático-legal, que atuou canalizando os fluxos financeiros do “crédito rural”, dos subsídios fiscais, dos programas especiais, etc. É indubitável que esses mecanismos burocráticos foram criados com a vontade política de favorecer interesses capitalistas, mas é igualmente evidente que eles refletem uma forma precisa da modernidade, orientada pelas ideias de padronização, centralização e hierarquização (Bauman, 1999), cuja manifestação económica se deu na forma descrita pela teoria do sistema mundo. Os esquemas lógicos da burocracia, no mesmo momento em que qualificam formalmente um grupo ou um segmento humano, desqualificam outro. Ainda mais: replicando o mesmo processo sobre esses desqualificados, além de fixar formalmente essa marginalidade, cria uma nova fronteira de exclusão, cujo último estádio é o resíduo social da marginalidade.

 

CONSUMO E MARGINALIDADE NO BRASIL

 

O mecanismo da burocracia, que cria uma exclusão e uma dependência no mesmo momento em que cria uma inclusão, repete-se no âmbito do consumo. Como vimos anteriormente a propósito de Baudrillard, o consumo está orientado por um cálculo dos objetos que visa, por assim falar, uma inclusão diferencial, isto é, uma inclusão cujo valor está medido pela exclusão de alguma categoria psicologicamente percebida. Nessa disputa, o que está em jogo não são conteúdos materiais, benefícios concretos derivantes de pertencer ou não a uma determinada categoria social, mas a diferenciação formal entre a inclusão e a exclusão. Esse argumento está hoje no cerne de muitas teorias do marketing. Trata-se de um filão teórico que se apoia, sobretudo, na Teoria da Distinção Óptima (Optimal Distinctiveness Theory; ODT) da psicóloga social Marilynn Brewer (1991) (v., por exemplo, os artigos de Berger e Heat (2007), Escalas e Bettman (2005), Timmor e Katz-Navon (2008)) e que destacam o papel do consumo como estratégia para assinalar, através da diferenciação, a identidade dos sujeitos. Pesquisas antropológicas demonstram que a “cultura do consumo”, salientada por essas teorias, penetra também entre os marginalizados brasileiros. Ela abre, para eles, a possibilidade de se sentir diferente do “pobre mesmo”, mediante contactos simbólicos com a sociedade inclusiva:

 

A posse e o usufruto de determinados bens pode distinguir o grupo de outros pobres (mais pobres ainda) e ainda abrir caminho para a inserção na sociedade de consumo – ou no “mundo dos ricos” […] Famílias que vivem em condições concretas de escassez de recursos para garantir sua sobrevivência material demonstram, igualmente, uma “sede” impressionante de consumo [Barros, 2007, p. 124].

 

Aqui, a dinâmica psicossocial ativada é ainda aquela do habitus precário como apego para o habitus primário, a saber, aquela da autoidentificação com uma carência: aquela do modelo constituído pela “gente” da sociedade inclusiva. Trata-se ainda da antiga trilha, destacada ao longo dessa seção do artigo, percorrida pelos marginalizados da idade da pós-abolição e, depois, da idade da modernização industrial.

Contudo, os dados empíricos que vêm da antropologia do consumo apresentam também um aspeto que desvia desse caminho. Num artigo em que Chauvel e Mattos (2008) resumem os achados sobre os consumidores de baixa renda, emerge que esses consumidores recusam ofertas de produtos que podem aludir a uma discriminação socioeconómica. Nesse caso, eles até chegam a perceber de forma alterada os preços dos produtos, superestimando a conveniência das lojas “não discriminantes”:

 

Os resultados de Assad e Arruda (2006) revelam, também, a presença de uma grande sensibilidade à discriminação […] [As consumidoras] se sentem “indignadas e ofendidas” com a forma rústica com que se apresenta um dos estabelecimentos estudados […] interpretam esse fato como uma opção da empresa: como se trata de um bairro pobre, não é preciso ter sofisticação; qualquer coisa pode ser colocada no acabamento da loja […] Da mesma forma, no estudo de Parente et al. (2005, p. 11), os consumidores pesquisados criticam um dos estabelecimentos pesquisados por ser excessivamente despojado, com “chão rústico e aparência pobre”, e interpretam esses elementos como uma sinalização de que a loja “foi feita para pobre”, pois na visão da empresa, o bairro “não merece uma loja melhor”. Como se viu anteriormente, acabam dando preferência a outro estabelecimento, chegando inclusive a acreditar que esse oferece melhores preços, embora tal avaliação não corresponda à realidade [Chauvel e Mattos, 2008, pp. 11-12].

 

Nos depoimentos, a escolha dos entrevistados de se dirigir para lojas que, de facto, são até mais caras é explicitamente motivada pela recusa à ­discriminação. Os consumidores de baixa renda dedicam muita atenção e tempo à memorização e à comparação dos preços, antes de escolherem onde e o que comprar (Chauvel e Mattos, 2008, pp. 9-10). O facto de eles, quando pressionados pela suspeita de discriminação, chegarem a perceber os preços de forma alterada deixa a entender a força da reação psicossocial que esse tipo de assunto exerce nestes. Então, a escolha para a loja mais cara não deriva somente de uma vontade de se distinguir do “pobre mesmo”, de se diferenciar simbolicamente para se assimilar ao mundo inclusivo do consumo. Aqui há, evidentemente, também uma reação, uma forma de represália contra uma ofensa. E, nisso, há a defesa do bairro no seu conjunto, de todos os que compartilham uma determinada condição social. A forma explícita com que esse aspeto se apresenta na fala dos entrevistados deixa poucas dúvidas interpretativas.

Até aqui há somente uma atitude defensiva desses consumidores frente a supostos ataques discriminatórios. Ainda não há resgate algum da cultura dos marginalizados e ressignificação dos símbolos do consumo. Mas é um limite que se apresenta somente quando permanecermos concentrados nos circuítos de consumo institucionais da sociedade inclusiva. Hoje esse ângulo de visual para estudar a relação entre grupos marginalizados e consumo é extremamente limitado, não somente sociologicamente, mas também economicamente.

Os grupos que foram desvalorizados pela cultura dominante e que, agora, justamente como consequência dessa marginalização, se encontram com um património disponível de diferenciação cultural, representam uma faceta importante da chamada fase da “acumulação flexível” do capital. Nesta forma do seu desenvolvimento, o capitalismo mundial foca a sua atenção não tanto na demanda de produtos singulares – que é suscetível de rápida saturação – mas pelos estilos de vida, que renovam a cada vez inteiras linhas de produtos e, portanto, setores de mercado saturados (Harvey, 1992). Daí a importância das culturas que influenciam a produção e reprodução dos estilos de vida. Nesse contexto, as culturas marginalizadas encontram o interesse do mercado, por representarem uma fonte contínua de novas inspirações.

Nessa integração com o mercado, a cultura marginalizada (ou que foi marginalizada) é pressionada por um “enquadramento” da criação, produção e comercialização de seus itens, sejam eles materiais ou não. Aqueles próprios carateres que antes dificultavam a integração do habitus precário dificultam agora esse enquadramento (Yúdice, 2006). Por exemplo, no campo do lazer, expressões culturais e artísticas nativas da sociedade marginal, como o funk e o hip-hop brasileiros, por quanto abrem espaço para novas modas e mercados, guardam sempre elementos alheios e hostis para a sociedade bem estabelecida. Essas formas de música e de dança, de um lado, se tornam referenciais de vivência e de cultura também para os jovens da sociedade inclusiva mas, de outro lado, são estigmatizadas e perseguidas pela classe dominante, com a acusação de ser irredutivelmente transgressoras, beirando o mundo da violência e da ilegalidade (Herschmann, 1997 e 2005).

O funk, o hip-hop, bem como o “circuito bregueiro” do Pará (Costa, 2009), comunicam suas instâncias apoiando-se em estilos musicais e símbolos que vêm de lugares distantes, como os subúrbios norte-americanos povoados por negros ou por imigrados hispânicos. Essas músicas e símbolos são manipulados e reinterpretados pela tradição cultural das “periferias” brasileiras. Assim reelaborados, são relançados no circuito musical e de consumo internacional, disponibilizando-se para ulteriores trocas e hibridações:

 

Na realidade, tanto o funk, quanto o hip-hop são modalidades da cultura popular e de massa do mundo globalizado e, portanto, apropriam-se, são apropriados e consumidos por diversos grupos e segmentos sociais, e pela indústria cultural em geral […] Isto é, os indivíduos que participam de alguma forma dessas manifestações culturais apropriam-se de um patrimônio simbólico, retraçando as fronteiras entre cultura tradicional, moderna, local e estrangeira. Estabelece-se, hoje, portanto, um contato incessante dos sistemas simbólicos tradicionais com as redes internacionais de informação e, de modo geral, com a indústria cultural [Herschmann, 2005, p. 73].

 

A coluna dorsal desse fenómeno é representada, evidentemente, pelos sistemas abstratos do distanciamento tempo-espaço. São estes sistemas que permitem não somente a troca de experiências e produtos entre os “artistas” de lugares diferentes, mas, sobretudo, possibilitam uma ressonância recíproca entre manifestações culturais geograficamente longínquas. Isso prepara o terreno para hibridações na música e na dança, gerando novas significações dos objetos de consumo, ligadas a imagens de novos modelos sociais.

A chave dessa reviravolta na relação entre marginalidade e consumo está na nova hegemonia cultural alcançada pelo distanciamento tempo-espaço à custa do distanciamento lógico. O meio técnico-científico-informacional, destacado por Milton Santos, tornou-se tão universal que até os marginalizados entram em contacto com ele. Isso acontecia também com a lógica burocrático-industrial que, porém, não integra indivíduos e grupos, mas os classifica e isola, fixando a marginalização e a exclusão. Pelo contrário, o contacto dos marginalizados com a rede e, em geral, com os sistemas que veículam o distanciamento tempo-espaço, possibilita uma relação comunicativa com a sociedade e uma interação autónoma com ela.

A força do processo comunicativo que hoje envolve os grupos marginalizados, e que frequentemente usa os símbolos do consumo, não está, portanto, nos símbolos do consumo em si, como defendeu Canclini (1995). Ela está no facto de o distanciamento tempo-espaço permitir aos marginalizados comunicarem autonomamente com a sociedade, independentemente da simbologia usada ser ou não aquela do consumo. Uma demonstração disso é exatamente o facto de o mesmo processo estar acontecendo também na esfera da produção. Uma vez que os grupos marginais têm acesso à comunicação no distanciamento tempo-espaço, os símbolos da linguagem adotada podem ser múltiplos. A própria interação comunicativa, tanto local quanto global, possibilitada pelos sistemas do distanciamento tempo-espaço, produz e reproduz símbolos e linguagens compartilhadas. Eles podem ter origem na esfera do consumo, mas também nas esferas das reivindicações sociais, da arte, da ecologia, da produção etc.

 

A AUTONOMIZAÇÃO DOS GRUPOS MARGINALIZADOS BRASILEIROS NA PRODUÇÃO E NAS RELAÇÕES COM O MERCADO

 

Como já acenámos mais atrás, o modelo burocrático, que representa o fundamento lógico e cultural do distanciamento lógico, teve no mundo da produção a sua fundação no “sistema de fábrica” que se tornou hegemónico a partir da Revolução Industrial. Esse sistema nasceu, justamente, por uma transformação da indústria doméstica de tipo artesanal na direção de uma organização manufatureira do trabalho mediante a perda de autonomia dos artesãos sob a pressão do capital comercial.

Tomemos o caso da indústria têxtil. Quando, no século XVIII, os mercados de tecidos se ampliaram muito, o comerciante tornou-se o intermediário obrigatório para vender os produtos do trabalho doméstico. Governando a procura, ele acabou por governar também a produção. Sabia de quanto tecido precisaria para as vendas futuras. Começou, então, a comprar ele mesmo a matéria-prima e a entregá-la aos vários artesãos para as diferentes fases da produção (preparação, fiação, tecedura, acabamento). Ele impôs-se como a única referência possível não somente para vender a mercadoria acabada, mas também para a passagem do produto de uma fase para a outra do processo produtivo e, portanto, de um produtor para o outro. O valor da prestação do artesão começou a ser combinado previamente, adquirindo sempre mais a forma do salário. O comerciante tornou-se sempre mais frequentemente o proprietário dos cottages e dos instrumentos utilizados, que dava em aluguel aos (ex) artesãos. A propriedade dos meios de produção, a organização do trabalho e a mercadoria separaram-se do produtor, que adquiriu as faces do operário do sistema de fábrica (Mantoux, 1960, pp. 40-53; Kriedte, Medick e Schlumbohm 1981, pp. 101-111; Bythell, 1983; Landes, 1994, pp. 52-53).

O que historicamente aconteceu com a indústria doméstica foi que, em presença de um aumento relativamente repentino da demanda, ela caiu sob o jugo do capital comercial e entrou num processo que a levou para uma forma fabril de produção (Hobsbawm, 1979, pp. 52-54). Esse mecanismo estabilizou-se como uma tensão constante na indústria doméstica também depois da Revolução Industrial.2 Na sociedade burocrático-industrial, o aumento da demanda de uma produção artesanal sofre, em geral, a pressão do capital para uma padronização dos produtos, uma segmentação da produção e uma perda da interação direta com o mercado (Haydu, 1988; Williams, 1992, pp. 44-45). Em outras palavras, os artesãos são pressionados para se organizar e conectar com o mundo externo somente pelos sistemas abstratos do distanciamento lógico.

Ora, o que acontece hoje é que esse esquema está a mudar exatamente no artesanato dos grupos sociais marginalizados, no quadro do novo interesse que a cultura popular está despertando no mercado. Em várias pesquisas de campo, desenvolvidas pelo Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil (LaPCAB)3, foi detetado um comum denominador emergindo nesse ­segmento socioeconómico: os artistas/artesãos populares estão-se voltando para uma interação direta com o mercado, em formas que vão de uma recusa explícita da intermediação comercial até à sua superação pelo uso autónomo da tecnologia da informação.

Dois casos exemplificativos dessas atitudes são aqueles dos “Figureiros de Taubaté” e dos “Artesãos do miriti de Abaetetuba”. Eles foram investigados, no âmbito do LaPCAB, diretamente pelo autor deste artigo e serão apresentados brevemente nas próximas duas secções. As investigações foram norteadas pelos procedimentos de estudo de caso com base na abordagem etnográfica, utilizando técnicas de investigação estipuladas num quadro comum às pesquisas em Ciências Sociais, tal qual a observação direta dos contextos investigados, as entrevistas e a coleta documental. Ambas as pesquisas viram a participação direta das instituições académicas locais, cuja colaboração foi de importância central, permitindo um melhor enquadramento social e histórico do objeto de pesquisa e uma escolha dos recortes de investigação eficaz e pertinente com as problemáticas efetivas das realidades estudadas. Com referência aos figureiros, foram gravadas quatro entrevistas em novembro de 2011 e três em julho de 2012. Quanto aos artesãos do miriti, foram gravadas quatro entrevistas em maio de 2012, duas em março 2013 e três no agosto daquele mesmo ano.

 

OS FIGUREIROS DE TAUBATÉ

 

Taubaté é uma cidade com aproximadamente 270 000 habitantes, situada na região do Vale do Paraíba, Estado de São Paulo, Brasil. Os “Figureiros de Taubaté” uniram-se em 1993 numa Associação atuante em uma sede: a “Casa do Figureiro”. A Associação tem como escopo a produção e a venda de figuras de argila seca e pintada. As figuras são de tipo tanto religioso (sobretudo com referência à preparação dos presépios) quanto laico.

O começo da atividade dos figureiros não foi de tipo profissional, mas sim, de uso doméstico. Ela é oriunda dos registos coletivos das migrações rurais em direção de Taubaté, no quadro dos processos modernizadores do Brasil e da formação da marginalidade urbana, anteriormente descritos. O desenvolvimento de uma política de valorização do folclore, ativada por estudos e ações como aqueles de Mário de Andrade, propiciou as condições para que a atividade dos figureiros adquirisse legitimidade e relevância social, e atraísse novos adeptos. Isso fez com que o destino das peças produzidas fosse variando, paulatinamente, do uso doméstico ao institucional, e daí, ao comercial, numa região envolvida nos processos de industrialização como a do Vale do Paraíba (Lopes, 2006).

Embora os figureiros respeitem alguns cânones da tradição da atividade, cada produto apresenta características que remetem para o seu autor e cada peça é assinada pelo seu artífice. Em Taubaté, os produtos são vendidos exclusivamente na Casa do Figureiros, mas é possível encontrá-los também em outras cidades. De qualquer forma, por expressa determinação, a Associação não tem um sistema de distribuição de produtos para varejistas. Os donos das lojas dirigem-se, como qualquer outro cliente, para os balcões da Associação na Casa do Figureiro ou nos mercados e nas feiras, compram as figuras e as levam para suas lojas.

A Associação dos Figureiros percebe que a sua sobrevivência está ligada à capacidade de se diferenciar tanto do anonimato do artesanato, quanto da padronização dos produtos industriais. Nesse sentido, o facto de as peças produzidas serem únicas e assinadas pelos seus autores garante essa diferenciação no nível mais alto possível, que é o da exclusividade. Em outras palavras, a utilização de técnicas tradicionais preserva os figureiros do perigo de serem confundidos com os produtos industriais e a autoria (assinada) de cada peça preserva-os do perigo de cair no anonimato do artesanato.

Nesse jogo, a tradição encontra-se numa posição difícil frente ao mercado. De um lado, a autoria pode acabar por impelir o artista a sair dos cânones da tradição, em particular, pela pressão dos lojistas à procura do “produto diferenciado”. Por outro, a repetição regular de alguns clichés estéticos tradicionais leva as forças do mercado a planear, através por exemplo do uso de “estampas”, a produção em série das figuras:

 

O que a gente aqui pretende é manter a tradição; às vezes as pessoas vêm aqui com outras ideias e muitas pessoas desistiram porque não queriam seguir a tradição. A nossa maior força é a tradição […] O SEBRAE [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], também, teve aqui querendo que a gente virasse uma cooperativa: “vocês vão ganhar muito mais dinheiro, vocês vão ter muito mais espaço e quantidades de peças para vender”. Só que, por exemplo, eu começo a fazer a peça aqui e eu não termino; eu passo para outro e, depois, para outro, etc. Ninguém quer isso. Eu quero ter o prazer de começar a fazer o meu trabalho e terminar, como todos os outros aqui. Então, dizemos para o SEBRAE que a gente não queria e eles ficaram decepcionados [Josiane Sampaio, presidente da Associação dos Figureiros de Taubaté, entrevistada pelo autor do artigo em 25 de novembro de 2011].

 

Os figureiros renunciam por princípio aos benefícios que a divisão do trabalho e a intermediação comercial proporcionariam em termos de aumento de produção e vendas. Trata-se de uma opção hoje viável, justamente, pela transformação do ambiente num meio de comunicação global. Pelo simples facto de serem afetados pelos sistemas do distanciamento tempo-espaço, os marginalizados podem entrar em contacto direto com a sociedade e o mercado e percorrer caminhos autónomos nas relações com ambos.

 

OS ARTESÃOS DO MIRITI DE ABAETETUBA

 

Abaetetuba é uma cidade do Estado do Pará com aproximadamente 150 000 habitantes e representa o pólo de uma região que abrange os municípios de Moju, Igarapé-Miri e Barcarena (somando uma população de mais de 350 mil habitantes). A cidade passa por um momento de crescimento económico acelerado, principalmente nos ramos do comércio e serviços. A “Associação dos Artesãos de Miriti de Abaetetuba” (ASAMAB) encontra-se atingida por essa contingência socioeconómica, enxergando espaços de mercados impensáveis há poucos anos.

A Associação tem como escopo a produção e a venda de brinquedos feitos com a madeira (bucha) da palmeira de miriti. Para a caracterização do produto, a Associação (e o SEBRAE) aposta mais na localização geográfica (“O miriti da Amazónia”) do que numa tradição cultural claramente caracterizada e identificável com um específico grupo comunitário. A comercialização consiste em primeiro lugar na venda direta dos brinquedos na festa do Círio em Belém e na exposição do “Miriti Fest”. Isso está relacionado com o caráter sazonal do trabalho de muitos artesãos, embora alguns deles vendam brinquedos o ano todo.

Os artesãos que na época das entrevistas (maio de 2012) estavam mais envolvidos com a associação trabalham o miriti também para produzir objetos que não são brinquedos, a exemplo de embalagens. Produzem também objetos cuja matéria prima não é do miriti e que vendem, frequentemente, através de intermediários comerciais. O Sr. Desidério (presidente da Associação em maio 2012) informou que esses produtos são achados mais “diferenciados” e, por isso mesmo, seriam mais procurados pelos lojistas e pelos intermediários. Tanto o Sr. Desidério quanto o Sr. Josias (conhecido como “Pirias”) relataram que, para produtos que “se prestam”, é utilizada também uma divisão técnica do trabalho: “tem um aqui [no ‘ateliê’] que corta o miriti, as mulheres que trabalham aqui pintam o miriti, outros, que são jovens aprendizes, lixam o miriti” (Pirias). De outro lado, esse mesmo grupo de artesãos tenta utilizar a rede para expandir e incrementar seu mercado: Pirias declarou que grande parte de seus clientes vem de contatos proporcionados pela Internet, “mas o que falta é uma central de comercialização”.

Naquele mesmo ano de 2012, tiveram as eleições para uma nova diretoria da ASAMAB. A nova diretoria colocou como ponto central de seu programa o desenvolvimento da capacidade do artesão de se relacionar autonomamente com o mercado, aproveitando os meios de interação à distância hoje proporcionados pela tecnologia. Esse propósito lida com dois problemas, ambos decorrentes da condição de marginalidade social da grande maioria dos associados. O primeiro é a moradia, constituída por poucos e pequenos espaços, edificados e mobiliados de forma precária. Por consequência, eles não têm a possibilidade de organizar um ateliê onde trabalhar e expor os produtos. Na maioria dos casos trabalham na cozinha de casa e levam os produtos para a associação ou os vendem diretamente em eventos. O segundo problema relaciona-se com a instrução carente que dificulta a sua capacidade de aprender agilmente as competências para interagir com a tecnologia da comunicação mediada por computadores. Dessa forma, os associados permanecem dependentes, na melhor das hipóteses, da Associação, que tem meios de interação com a rede e, na pior, de intermediários que, de regra, os tornam invisíveis ao mercado. O novo presidente da Associação, senhor Rivaíldo, numa entrevista de março de 2013, nos relatou sobre esses pontos da forma seguinte:

 

São poucos os artesões que têm ateliês […] Aí tem artesões que trabalham na cozinha, no quarto, na sala […] Hoje temos um projeto voltado para a ampliação, reestruturação e padronização dos ateliês […] Seria um espaço para produzir, expor, receber os turistas […] Mas […] se a gente não arrumar a casa como a gente pode divulgar em ampla escala? Sempre as pessoas, o próprio cliente, falam assim: “mas por que vocês não divulgam?”. Têm os pontos positivos e negativos. Uma coisa é divulgar em grande escala, que nós temos condição para isso, temos parceiros para fazer isso e outra coisa o turista vir. E a gente está preparada para isso? Não. Então achamos que a prioridade é a gente arrumar a casa e isso seria iniciado pelo ateliê dos artesões, até porque são eles que garantem a nossa produção […] Nós temos internet aqui [na Associação] […] e temos dois contratos de sites […] Nossos artesãos também esbarram naquela questão cultural, grau de instrução, digamos assim. Tanto é que pensando nisso nós já temos dois projetos, um já encaminhado […], voltados para a área do social do artesão […] Pela necessidade de ter um grau de instrução, nos conseguimos já ter mais educação aqui [cursos de ensino médio na sede da Associação], que vai ser restruturada para receber mais artesões […] muitos são analfabetas.

 

A superação das barreiras culturais e físicas existentes entre os marginalizados e a sociedade inclusiva está emergindo como um objetivo imprescindível para esses artesões e isso exatamente em vista de relacionamentos distanciados no tempo e no espaço (com turistas, com pessoas que “são gente” e, em geral, com o mercado). O facto de existirem na Associação também tendências inerciais a repropor esquemas da lógica burocrática, representadas, por exemplos, por várias escolhas do seu ex-presidente, não impede que a impulsão para a autonomia do artesão se esteja a manifestar de forma progressivamente hegemónica.

O que acontece entre os artesãos do miriti representa uma miscigenação entre mundo tradicional, lógica burocrático-industrial e “capitalismo distribuído” (Rifkin, 2010), que constituem o passado remoto, o passado próximo e a contemporaneidade da história do Ocidente. O que permite essa “compressão” em um único lugar e em um único tempo de modelos historicamente assim distantes é a transformação do território brasileiro num meio integrado do distanciamento tempo-espaço. Isso consente, às formações histórico-sociais tradicionais e pré-modernas remanescentes nos grupos marginalizados, entrar em contacto direto com toda a variedade de formações culturais que se sedimentaram ou desenvolveram no Brasil e fora do Brasil. A integração social desses grupos deixa, assim, de se equacionar com a adaptação ao habitus do cidadão, para se tornar uma interação entre culturas diferentes.

Com referência ao conceito dos sistemas do distanciamento tempo-espaço proporcionarem novas possibilidades de integração social para os grupos ­desqualificados, um crítico atento colocou as suas dúvidas, de forma ­voluntariamente paradoxal, da forma seguinte: “atentemos ao exemplo de um recluso que utiliza a internet e tem uma página pessoal na internet. Desta presença, descontextualizada em termos de tempo e espaço, podemos falar de saída da marginalidade se vender um produto?”. Se tal recluso vendesse um produto qualquer e como caso isolado, a resposta a essa pergunta deveria ser, coerentemente com as próprias argumentações do artigo, “não”. Mas deveria ser “sim” se no ambiente desse recluso, como é no caso dos grupos desqualificados, existisse uma cultura antiga e historicamente estratificada, veículada fora da prisão por aquele produto e se tal venda não representasse um evento ocasional, mas abrisse um canal permanente de interação comunicativa e económica com o mundo exterior. Aliás, os grupos desqualificados, embora sejam espacialmente e socialmente segregados, não são reclusos. Para eles, a interação socioeconómica à distância pode gerar, e de facto gera, uma variedade de interações presenciais: com todos os que vão diretamente para os bancos de venda das associações, com os turistas, os pesquisadores, os funcionários das instituições culturais e políticas, etc.

 

CONCLUSÕES

 

No artigo propomos a distinção dos sistemas abstratos, orientadores e reguladores do agir social moderno, em dois tipos: 1) sistemas em que prevalece o distanciamento lógico e 2) sistemas em que prevalece o distanciamento tempo-espaço. O primeiro tipo não distancia as pessoas fisicamente (pelo menos não necessariamente), mas isola-as em termos de comunicação. O segundo tipo distancia as pessoas fisicamente, mas não em termos de comunicação. O distanciamento lógico representa uma impulsão para a desagregação social, justamente por interromper as interações comunicativas. Pelo contrário, o distanciamento tempo-espaço estimula novas formas de integração social por abrir possibilidades, outrora inexistentes, de comunicação no plano fisicamente distanciado. O distanciamento lógico dos aparatos burocráticos causou uma inércia favorável para a exclusão dos marginalizados. Hoje, essas tendências estão a ser invertidas pelo extraordinário desenvolvimento dos sistemas do distanciamento tempo-espaço. A penetração social do distanciamento tempo-espaço atinge os marginalizados e abre, para eles, canais de comunicação autónomos e diretos com a sociedade e o mercado. Dessa forma, até os símbolos exógenos que vêm da sociedade de consumo se tornam meios para a comunicação entre eles e entre estes e o mundo globalizado.

Com isso, é provável que se esteja a determinar uma mudança na atitude psicossocial que sempre afetou os marginalizados brasileiros, desde a época da pós-abolição até aquelas das várias fases da industrialização do país: a integração social começa a ser equacionada não mais somente com a recusa e a fuga do habitus que caracteriza os grupos desqualificados, para aderir àquele da sociedade inclusiva, mas com o resgate cultural do primeiro. Em outras palavras: a integração social está-se identificando menos com uma adaptação a um modelo único e mais com uma interação comunicativa entre culturas diferentes.

Concluímos com as palavras de Álvaro Tukano, chefe da tribo dos Tukanos e líder reconhecido por 23 etnias (mais de 52 mil índios) do Alto Rio Negro, plena floresta Amazónica. Entrevistado pelo autor deste artigo, Álvaro pontuou que é somente comunicando diretamente com o mundo exterior que o seu povo poderia se “tornar autónomo” como foram os “antepassados” dele. Nas suas palavras pode ser percebida a concretude do choque, hoje atuante, entre a inércia para a marginalização, provocada pelo distanciamento lógico, e o desejo de interação comunicativa de uma cultura com outra, possibilitada pelos sistemas do distanciamento tempo-espaço:

 

Existe um projeto, quando o Lula entrou, de pontos de cultura no Rio Negro. Foram pensados quatorze pontos de cultura. Nós temos as placas solares instaladas, computadores, mas não temos técnicos, amigos que vêm nos dar instruções para manejar aqueles computadores; e, também, não temos antenas [para captar o sinal da internet] até o presente momento; então, é a mesma coisa que ter nada. No Brasil foram planejados mil pontos de cultura que estão na mesma situação: nós não comunicamos por isso. Agora, os padres têm, os militares têm, as ONG indigenistas têm e nós não temos. Por isso, nossa dependência é muito grande, porque dependemos de intermediários, interlocutores que são os mesmos que dificultam a nossa comunicação. Eles se sentem como se fossem donos de índios, donos de nossa palavra, donos de nossas almas, o que não é agradável. Porque nós pensamos diferentes, nós queremos fazer contato direto, sem intermediários [Álvaro Tukano, trecho da entrevista de 10 de janeiro de 2013; disponível em http://www.facebook.com/Lapcab#!/photo.php?v=133010590193970&set=vb.118227031672326&type=2&theater].

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARROS, C.P. (2007), “Hierarquia, escassez e abundância materiais: um estudo etnográfico no universo de consumo das empregadas domésticas”. In C. Migueles (ed.), Antropologia do Consumo: Casos Brasileiros, Rio de Janeiro, Editora FGV, pp. 101-129.         [ Links ]

BAUDRILLARD, J. (2007), A Sociedade de Consumo, Lisboa, Edições 70.         [ Links ]

BAUMAN, Z. (1999), Modernidade e Ambivalência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.         [ Links ]

BLAU, P.M. (1962), La burocracia en la sociedad moderna, Buenos Aires, Editorial Paidós.         [ Links ]

BLAU, P.M., SCOTT, R.W. (1970) Organizações Formais: Uma Abordagem Comparativa, São Paulo, Atlas.         [ Links ]

BLUNDEL, R., TREGEAR, A. (2006), “From artisans to ‘factories’: the interpenetration of craft and industry in English cheese-making, 1650-1950”. Enterprise & Society, 7 (4), pp. 705-739.         [ Links ]

BERGER, J., HEATH, C. (2007), “Where consumers diverge from others: identity signaling and product domains”. Journal of Consumer Research, 34 (agosto), pp. 121-134.         [ Links ]

BYTHELL, D. (1983), “Cottage industry and the factory system”. History Today, 33(4), pp. 17-23.         [ Links ]

BREWER, M.B. (1991), “The social self: on being the same and different at the same time”. Personality and Social Psychology Bulletin, 17 (outubro), pp. 475-482.         [ Links ]

BUARQUE DE HOLANDA, S. (1936), Raízes do Brasil, Rio de Janeiro,José Olympio.         [ Links ]

CANCLINI, N.G. (1995), Consumidores y Ciudadanos: Conflictos Multiculturales de la Globalización, México, DF, Grijalbo.         [ Links ]

CASTELLS, M. (2007), A Era da Informação, São Paulo, Paz e Terra.         [ Links ]

CHAUVEL, M.A., MATTOS, M. (2008), “Consumidores de baixa renda: uma revisão dos achados de estudos feitos no Brasil”. Cadernos EBAPE BR, 6 (2), pp. 1-17.         [ Links ]

CEPAL (1979), “Urbanização na América Latina”. In L. Pereira (ed.), Urbanização e Subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar.         [ Links ]

COSTA, A.M. (2009), Festa na Cidade: O Circuito Bregueiro de Belém do Pará Belém, EDUEPA.         [ Links ]

CROSBY, A.W. (1999), A Mensuração da Realidade: a Quantificação e a Sociedade Ocidental 1250-1600, São Paulo, Unesp.         [ Links ]

CROZIER, M. (1981), O fenômeno burocrático, Brasília, Universidade de Brasília.         [ Links ]

ESCALAS, J.E., BETTMAN, J.R. (2005), “Self-construal, reference groups, and brand meaning”. Journal of Consumer Research, 32 (dezembro), pp. 378-389.         [ Links ]

FERNANDES, F. (1987), A Revolução Burguesa no Brasil, Rio de Janeiro, Guanabara.         [ Links ]

FERNANDES, F. (2008), A Integração do Negro na Sociedade de Classes, São Paulo, Globo.         [ Links ]

FRANK, A.G. (1966), “Development of underdevelopment”. Monthly Review, 18 (4), pp. 17-31.         [ Links ]

GERMANI, G. (1960). “Estrategia para estimular la movilidad social”. In E. DE VRIES, J.M. ECHAVARRIA (eds.), Aspectos Sociales del Desarrollo Económico en América Latina, México DF, UNESCO, vol. I, pp. 233-253.         [ Links ]

GIDDENS, A. (1991), As Consequências da Modernidade, São Paulo, UNESP.         [ Links ]

GIDDENS, A. (2003), A Constituição da Sociedade, São Paulo, Martins Fontes.         [ Links ]

HABERMAS, J. (1999), Teoría de la acción comunicativa, Madrid, Taurus.         [ Links ]

HARVEY, D. (1992), A Condição Pós-Moderna, São Paulo, Loyola.         [ Links ]

HAYDU, J. (1988) Between Craft and Class: Skilled Workers and Factory Politics in the United States and in Britain 1890-1922, Berkeley, University of California Press.         [ Links ]

HAYEK, F.A. (1945) “The use of knowledge in society”. The American Economic Review, 35 (4), pp. 519-530.         [ Links ]

HERSCHMANN, M. (ed.) (1997), Abalando os Anos 90: Funk e Hip-Hop, Globalização, Violência e Estilo Cultural, Rio de janeiro, Rocco.         [ Links ]

HERSCHMANN, M. (2005), O Funk e o Hip-Hop Invadem a Cena, Rio de Janeiro, UFRJ.         [ Links ]

HOBSBAWM, E. (1979), As Origens da Revolução Industrial, São Paulo, Globo.         [ Links ]

HORKHEIMER, M., ADORNO, T.W. (1983), Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar.         [ Links ]

IANNI, O. (1987), Raças e Classes Sociais no Brasil, São Paulo, Brasiliense.         [ Links ]

JOHNSTON, R., LAWRENCE, P. (1988), “Beyond vertical integration – the rise of the value-adding partnership”. Harvard Business Review, 66 (Julho-Agosto), pp. 94-101.         [ Links ]

KRIEDTE, P., MEDICK, H., SCHLUMBOHM, J. (1981), Industrialization before Industrialization, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

LAMBERT, R., PEPPARD, J. (2000), “The information technology-organizational design relationship”. In R.D. GALLIERS, D.E. LEIDNER, B.S.H. BAKER (eds.), Challenges and Strategies in Managing Information Systems, Oxford, Butterworth Heinemann, pp. 454-485.         [ Links ]

LANDES, D.S. (1994), Prometeu Desacorrentado: Transformação Tecnológica e Desenvolvimento Industrial na Europa Ocidental, desde 1750 até Nossa Época, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.         [ Links ]

LANIER, J. (2010), Gadget - Você não é um Aplicativo, São Paulo, Saraiva.         [ Links ]

LISANTI, L. (1973), “Cenário e personagens”. In Negócios Coloniais: uma Correspondência Comercial do Século XVIII, São Paulo, Ministério da Fazenda, vol. I, pp. CL-CLII.         [ Links ]

LOPES, J.R. (2006), “Industrialização e mudanças culturais no Vale do Paraíba, SP”. In E.M.Q. CHAMON, C.M. SOUSA, C.M. (eds.), Estudos Interdisciplinares em Ciências Sociais,Taubaté (SP), Cabral, pp. 193-218.         [ Links ]

MANTOUX, P. (1960), A Revolução Industrial no Século XVIII: Estudo sobre os Primórdios da Grande Indústria Moderna na Inglaterra, São Paulo, Hucitec.         [ Links ]

MARTINE, G., GARCIA, R.C. (1987), Os Impactos Sociais da Modernização Agrícola, São Paulo, Caetés.         [ Links ]

MEIRA, S. (2010) “Estratégia: seu negocio e as [ou nas] redes sociais”. Dia a Dia, Bit a Bit (maio). Disponível em: http://smeira.blog.terra.com.br/?s=estrat%C3%A9gia+seu+neg%C3%B3cio+redes+sociais, [consultado em 19-04- 2013].         [ Links ]

PEREIRA, L. (1965), Trabalho e Desenvolvimento no Brasil, São Paulo, Difusão Europeia do Livro.         [ Links ]

POLLARD, S. (1963), “Factory discipline in the Industrial Revolution”. The Economic History Review, 16 (2), pp. 254-271.         [ Links ]

PORTER, M.E. (1985), Competitive Advantage, Nova Iorque, Free Press.         [ Links ]

QUALMAN, E. (2009), Socialnomics, Hoboken, Nova Jersey, John Wiley Trade.         [ Links ]

SANTOS, M. (1993), A Urbanização Brasileira, São Paulo, Hucitec.         [ Links ]

SELZNICK, P. (1948), “Foundations of the theory of organization”. American Sociological Review, 13 (1), pp. 25-35.         [ Links ]

SOUZA, J. (2003), A Construção Social da Subcidadania: para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica, Belo Horizonte, Ed. UFMG.         [ Links ]

THOMPSON, E.P. (1967), “Time, work-discipline, and industrial capitalism”. Past & Present, 38 (dezembro), pp. 57-97.         [ Links ]

TIMMOR, Y.; KATZ-NAVON, T. (2008), “Being the same and different: a model explaining new product adoption”. Journal of Consumer Behaviour, 7, (maio/junho), pp. 249-262.         [ Links ]

TOTARO, P. (2009), “Le origini logiche della disaggregazione sociale”. Rassegna Italiana di Sociologia, 50 (2), pp. 227–250.         [ Links ]

TOTARO, P., NINNO, D. (2014), “The concept of algorithm as an interpretative key of modern rationality”. Theory, Culture & Society, 31 (4), pp. 29–49. DOI: 10.1177/0263276413510051.         [ Links ]

WALLERSTEIN, I. (1995), “The modern world-system and evolution”. Journal of World-Systems Research, 1 (1), pp. 1-15.         [ Links ]

WEBER, M. (1999), Economia y sociedad, México, Fondo de Cultura Económica.         [ Links ]

WILLIAMS, R. (1992), Cultura, São Paulo, Paz e Terra.         [ Links ]

YÚDICE, G. (2006), A Conveniência da Cultura: os Usos da Cultura na Era Global, Belo Horizonte, Ed. UFMG.         [ Links ]

 

Recebido a 24-04-2013. Aceite para publicação a 21-10-2014.

 

NOTAS

1Pelo próprio cálculo da lucratividade do capital, a implantação de uma burocracia comercial é tanto mais necessária quanto maior o impulso para a expansão dos mercados. Até, por exemplo, no caso da burguesia portuguesa da época da colonização do Brasil, que era basicamente refratária aos processos de racionalização (Buarque de Holanda, 1936), a distância das colónias impeliu os homens de negócio a desdobrar uma rede de funcionários e a desenvolver uma cultura da organização (Lisanti, 1973, pp. CL-CLII).

2V., por exemplo, as pressões sofridas pela indústria casearia inglês de 1850 até 1930 por permanecer atrelada a formas artesanais de produção (Blundel e Tregear, 2006).

3O Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil: gestão e inovação” (LaPCAB) é financiado pela Capes e coordena projetos que envolvem 17 Estados da União e suas instituições de pesquisa. Os objetos de pesquisas do LaPCAB são coletividades sociotécnicas, nas quais é observada a interação mútua entre agenciamentos humanos e não-humanos, incluindo nesses últimos os sistemas abstratos, que condicionam as reflexividades, ações e projetos dos atores sociais. O Laboratório já investigou 33 coletividades, igualmente distribuídas em 17 Estados da União, a saber, mais ou menos, duas coletividades por Estado. Das comunidades e coletividades selecionadas (7 na região norte; 8 na região nordeste; 4 na região centro-oeste; 8 na região sudeste e 6 na região sul), todas foram visitadas diretamente pelos pesquisadores do Laboratório, em períodos médios de seis dias. Do início do projeto, até ao momento, constituiu-se uma rede nas cinco regiões do país, incluindo 27 pesquisadores de universidades e instituições diversas.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons