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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.219 Lisboa jun. 2016

 

ARTIGO

De Marx a Illich: economia, ecologia e tecnologia na obra de André Gorz da década de 1970

From Marx to Illich: economy, ecology, and technology in André Gorz’s oeuvre of the 1970s

 

Nuno Miguel Cardoso Machado*

*Universidade de Lisboa, ISEG, SOCIUS, Centro de Investigação em Sociologia Económica e das organizações, Rua Miguel Lupi - 1249-078 Lisboa, Portugal. E-mail: nuno.cocas.machado@gmail.com

 

RESUMO

O intuito deste artigo é analisar a obra gorziana da década 1970, que representa uma fase de transição no pensamento do autor. Até então, Gorz ­postulava um marxismo ortodoxo, defendendo a necessidade de um socialismo estatista e entendendo positivamente o trabalho e a tecnologia industrial. Todavia, a descoberta de Illich contribuirá para uma mudança profunda do seu pensamento. A “viragem ecológica” de Gorz consubstancia-se: i) na crítica da “civilização industrial” e da tecnologia predominante no capitalismo; ii) na crítica dos efeitos perniciosos do crescimento económico sobre a natureza. Os escritos deste período são a chave para entender o pós-marxismo tardio de Gorz.

PALAVRAS-CHAVE: André Gorz; marxismo; ecologia; tecnologia; Ivan Illich.

 

ABSTRACT

This article analyzes the gorzian oeuvre of the 1970s, which represents a transition stage in Gorz’s thought. Up to this period, Gorz advocated an orthodox Marxism, defending the necessity of state socialism and understanding both labor and industrial technology positively. However, the discovery of Illich contributed to a profound change in his thought. The “greening” of Gorz manifests itself in: i) criticism of “industrial civilization” and of the prevailing technology in capitalism; ii) criticism of the harmful effects of economic growth on the environment. The wittings of this period are the key to understand Gorz’s late post-Marxism.

KEYWORDS: André Gorz: Marxism; ecology; technology; Ivan Illich.

 

A ecologia foi para mim uma revolução sob uma forma diferente e a partir de uma perspetiva diferente. Uma vez que não é possível revolucionar a sociedade através da reapropriação do trabalho industrial, a ecologia política era a perspetiva mediante a qual era possível demonstrar que o sistema capitalista era incapaz de sobreviver a não ser que se subvertesse totalmente [Gorz, 1997 [1993], p. 125].

 

INTRODUÇÃO

 

André Gorz (1923-2007) – pseudónimo de Gerhart Horst – nasceu em Viena, mas viveu praticamente toda a sua vida adulta em França. Com efeito, “foi o mundo intelectual francês do período pós-2.ª Guerra Mundial que forneceu o vocabulário e o cenário (setting) para a teoria política de Gorz” (Brooks, 2010, p. 27).

A importância de André Gorz no contexto do debate sociológico contemporâneo acerca da crise da sociedade do trabalho é incontestável (Castel, 2013; Gollain, 2000). Todavia, Gorz é um autor relativamente pouco conhecido no mundo académico lusófono.1 Jornalista e ensaísta autónomo, Gorz publicou 16 livros e dezenas de artigos ao longo de seis décadas de compromisso com a Teoria Crítica. Gorz foi, sucessivamente, um dos principais autores existencialistas (na década de 1950), um dos grandes impulsionadores da “Nova Esquerda” francesa (na década de 1960), o fundador da “Ecologia Política” (na década de 1970) e, a partir da década de 1980, conforme já referi, um dos principais intervenientes no debate acerca da crise do trabalho.

É possível identificar dois períodos distintos no pensamento de Gorz. Desde A Moral da História (Gorz, 1969 [1959]) – obra publicada em 1959 – até ao final da década de 1960 Gorz postula um marxismo francamente ortodoxo. Assim, o trabalho é entendido como uma categoria transhistórica e de um modo positivo: o objetivo do socialismo é libertar o trabalho do jugo exterior que lhe é imposto pelo capital. Ademais, o proletariado assume-se como um sujeito revolucionário apriorístico responsável pela instauração do socialismo. O socialismo proposto por Gorz consubstancia-se num modelo estatista de direção central que pressupõe a apropriação coletiva dos meios de produção. A tecnologia moderna é, pois, entendida igualmente de um modo positivo.

Com a publicação de Adeus ao Proletariado (Gorz, 1982 [1980]), em 1980, ocorre uma grande rutura no pensamento de Gorz. O trabalho passa a ser entendido como uma categoria historicamente específica da modernidade capitalista e de um modo negativo: o desafio que a humanidade enfrenta não é libertar o trabalho, mas libertar-se do trabalho. Esta possibilidade está contida na denominada Revolução Microeletrónica, mas sob o capitalismo manifesta-se de um modo invertido como aumento do desemprego. A visão de socialismo preconizada por Gorz coloca agora em primeiro plano uma produção pós-industrial organizada em rede e, portanto, descentralizada e gerida de um modo autónomo pelos seres humanos. Em oposição ao gigantismo industrial burocrático e alienante, Gorz propõe a adoção de uma tecnologia soft ecologicamente sustentável.

O grande objetivo deste artigo é perceber como ocorreu esta mudança de 180º no pensamento de André Gorz. Deve notar-se que foi uma mudança gradual, isto é, o resultado da sua maturação intelectual ao longo de vários anos. Deste modo, ocupar-me-ei especificamente da obra gorziana da década de 1970, que representa um período de transição no pensamento de Gorz. Se no início deste período Gorz ainda defendia um marxismo mais ou menos ortodoxo – em linha com as suas teses da década de 1960 –, estes 10 anos de reflexão intensa culminarão na publicação de Adeus ao Proletariado e no abandono definitivo dos predicados do marxismo tradicional2, como se ­analisa mais adiante. A descoberta da obra de Ivan Illich e o contacto pessoal com o autor terão um efeito decisivo na inflexão teórica de Gorz e, especialmente, na “viragem ecológica” do seu pensamento.

Destacam-se dois temas principais nos escritos gorzianos da década de 1970:

 

a) Crítica da “civilização industrial” e, em particular, da tecnologia predominante na sociedade capitalista. Na ausência de uma mudança profunda das técnicas produtivas e da adoção de “ferramentas conviviais” (Illich) – que facilitam a autogestão, a autonomia e a descentralização do processo produtivo –, a coletivização dos meios de produção não alterará em nada a dominação da “megamáquina” industrial.

b) Crítica do crescimento económico nas suas duas variantes capitalista e socialista. Gorz funda a denominada “ecologia política”, alertando para os limites físicos e naturais que se impõem à expansão da racionalidade económica: poluição, delapidação dos recursos naturais, destruição do ecossistema da Terra, etc.

 

O livro Ecologia e Política (Gorz, 1980 [1975]) antecipa – se bem que ainda em estado embrionário – algumas das ideias-chave que nortearão o pensamento gorziano da década de 1980, tais como: i) a crise do trabalho e a necessidade de reduzir drasticamente os horários de trabalho; ii) a noção de uma “sociedade dual”, embora o autor ainda não adote esta terminologia; iii) a necessidade imperiosa de romper com o modelo de desenvolvimento produtivista.

Esta evolução teórica de Gorz deve, em primeiro lugar, ser situada no contexto social e intelectual francês deste período histórico. Como refere Brooks:

 

[…] na sequência dos acontecimentos de maio o radicalismo tornou-se mais difuso, abrangendo (…) a miríade de formas através das quais a lógica capitalista penetrava na cultura quotidiana. (…) [A]ssistiu-se ao crescimento dos novos movimentos sociais, incluindo o movimento feminista, o movimento de libertação gay e os movimentos ecológico e antinuclear [Brooks, 2010, p. 209].

 

Os movimentos sociais que surgiram na década de 1970 representam o “legado” da Nova Esquerda da década de 1960, partilhando a mesma “visão anti-tecnocrática de uma sociedade autónoma, descentralizada e autogerida” (Hirsh, 1981, p. 208). Em França, uma das principais consequências do Maio de 1968 foi o surgimento de um “movimento ecológico de massas” (idem, p. 221):

 

O movimento ecológico francês cresceu rapidamente no final da década de 1960 (…). Era similar aos movimentos ecológicos do resto da Europa ocidental e dos Estados Unidos, sendo a confluência da preocupação científica com o esgotamento dos recursos naturais e de impulsos contra-culturais mais difusos que “redescobriram” o mundo natural enquanto refúgio espiritual da vida moderna [Brooks, 2010, p. 263].

 

Na década de 1970 o pensamento ecológico adquiriu, pois, uma grande proeminência “à medida que as consequências destrutivas do crescimento económico (…) começaram a acumular-se” (Bowring, 2000, p. 117).

Em linha com as preocupações ecológicas dos novos movimentos sociais que surgiram em França, Gorz começou a desenvolver uma “crítica ecológica da sociedade industrial” (idem). Segundo Little, “Gorz utilizou a ecologia, na sequência do desapontamento com o fracasso da revolução de 1968 em Paris, para injetar um novo dinamismo no seu programa socialista. Ele aceitou os desafios que a ecologia colocava aos métodos e crenças do marxismo” (Little, 2013 [1996], p. 75). Na sequência da sua “viragem ecológica” (greening) [idem], Gorz tornou-se rapidamente uma das vozes mais respeitadas em França nesta matéria (Brooks, 2010, p. 16).

Um aspeto fulcral para esta mudança no seu pensamento foi a descoberta da obra de Ivan Illich. Em 1971, Gorz toma conhecimento da versão preliminar de Tools for Conviviality, que traduz e da qual publica uma súmula no Le Nouvel Observateur (Bowring, 2000, p. 7). Gorz ficou plenamente convencido com os argumentos avançados por Illich (Brooks, 2010, p. 225) e impressionado com “os seus ataques à ‘megamáquina’ do capitalismo industrial” (idem, p. 262). Nas suas próprias palavras,

 

[…] estavam ali presentes ecos do pensamento de Jacques Ellul e de Gunther Anders: a expansão da indústria transforma a sociedade numa máquina gigante, em vez de libertar os seres humanos, restringe a sua autonomia, determinando os fins que eles devem alcançar e como os devem alcançar. Tornamo-nos servos desta megamáquina. A produção já não está ao nosso serviço, nós é que estamos ao serviço da produção. E em resultado da profissionalização simultânea de todo o tipo de serviços, tornamo-nos incapazes de cuidar de nós próprios, de determinar as nossas necessidades e de as satisfazer nós mesmos: dependemos em todos os aspetos das “profissões incapacitantes” [Gorz, 2009 [2006], p. 28].

 

Em 1973, Gorz a encontra-se pessoalmente com Ivan Illich, de quem se torna amigo íntimo. No mesmo ano, Gorz e a sua mulher visitam Illich em Cuernavaca, no México, onde estava sediado o Centro Intercultural de Documentación (CIDOC), fundado em 1965 por Illich (Brooks, 2010, p. 280).

Outro fator decisivo para a viragem ecológica de Gorz e, em especial, para a sua crítica à “sociedade industrial” foi o problema de saúde enfrentado por Dorine, a sua mulher.

 

Em 1973, Dorine foi diagnosticada com aracnoidite, uma doença degenerativa da coluna vertebral. Os médicos de Dorine associaram a doença ao uso de lipiodol numa pequena cirurgia a que tinha sido submetida (…) oito anos antes. O lipiodol, que é uma substância utilizada [como contraste] nos exames de raio-X, tinha-se alojado na sua coluna vertebral e iria causar-lhe dores crónicas durante o resto da sua vida. Desta forma, numa altura em que Gorz estava entusiasmado (passionate) com a ecologia (…) e, de um modo mais genérico, com as questões ligadas à autonomia existencial, a questão da medicina [moderna] tornou-se especialmente sensível para ele [Brooks, 2010, p. 279].

 

A aracnoidite de Dorine era uma doença degenerativa e sem cura (Gorz, 2009 [2006], p. 30) causada diretamente pela medicina moderna. Ora, nesta altura, Illich preparava o seu próximo livro, A Expropriação da Saúde – Némesis da Medicina, uma crítica impiedosa dos efeitos perniciosos da medicina moderna. Deste modo, a crítica illichiana da “tecno-medicina” acabou por coincidir inteiramente com as preocupações familiares de Gorz (idem, p. 29). Em Carta a D. – História de um Amor, Gorz é perentório sobre a relação causal entre a doença da sua mulher e a sua aproximação à ecologia: “A tua doença reconduziu-nos ao campo da ecologia e do tecnocriticismo” (idem, p. 31).

 

ACERCA DO PENSAMENTO DE IVAN ILLICH

 

Dado que o pensamento de André Gorz durante a década de 1970 e, especialmente, em Ecologia e Política, é influenciado pela obra de Ivan Illich (Azam, 2013, p. 105; Dupuy, 2013, pp. 99 e segs.; Gollain, 2000, p. 62), analisarei ­brevemente as ideias fundamentais deste autor.3 Começarei por duas das suas obras mais marcantes: Tools for Conviviality (Illich, 1975b [1973]) e A Expropriação da Saúde (Illich, 1975a).

Illich defende que as instituições da sociedade industrial impedem a expressão da autonomia dos indivíduos, pois à medida que o poder da maquinaria aumenta, estes são relegados para o papel de “meros consumidores” (Illich, 1975b [1973], p. 23). Segundo defende, a tentativa de substituir o trabalho humano pela produção maquinizada não é emancipadora: “as máquinas escravizam os seres humanos” (idem) porque, ultrapassado um certo limiar, a dimensão das ferramentas “aumenta a arregimentação, a dependência, a exploração e a impotência” dos indivíduos (idem, pp. 33-34). Segundo Illich, “as pessoas precisam de novas ferramentas com as quais possam trabalhar (to work with) e não de ferramentas que ‘trabalhem’ por elas” (idem, p. 23).

Illich preconiza uma forma de socialismo que terá, pois, de transcender a civilização industrial: “a transição para o socialismo apenas será possível (…) mediante a substituição das ferramentas industriais por ferramentas conviviais” (idem, p. 25). Illich designa esta substituição por “reequipamento (retooling)” da sociedade (idem). Uma dada ferramenta ou técnica apenas será convivial se promover a autonomia e a criatividade do indivíduo que a utiliza; isto implica que “possa ser utilizada facilmente, por qualquer pessoa, tão frequentemente (…) quanto desejado e para a concretização de um objetivo escolhido pelo utilizador” (idem, p. 35). A transformação radical da tecnologia é, por conseguinte, uma pré-condição necessária para alcançar a “justiça social” (idem, p. 25).

A visão de socialismo de Illich corresponde deste modo àquilo que designa por “sociedade convivial”. A sociedade convivial pode ser definida como uma sociedade “pós-industrial” que introduz “limites politicamente definidos a todos os tipos de crescimento industrial” (idem, p. 30). Neste sentido, a convivialidade refere-se às “relações autónomas e criativas estabelecidas entre as pessoas, e às relações entre as pessoas e o seu ambiente” (idem). A convivialidade é “a liberdade individual realizada através da interdependência pessoal”, pelo que “possui um valor ético intrínseco” (idem). Ela assenta no princípio basilar de que o controlo sobre as ferramentas da sociedade deve ser exercido democraticamente através de processos políticos e não por especialistas ou tecnocratas (idem, p. 25).

De acordo com Illich, a sociedade deve portanto ser reconfigurada de modo a privilegiar “a contribuição dos indivíduos autónomos e das pequenas comunidades (primary groups) para a eficiência total de um novo sistema de produção concebido para satisfazer as necessidades humanas e igualmente para a determinação dessas necessidades” (idem, p. 23). Todavia, Illich alerta que “seria um erro acreditar que todas as ferramentas em grande escala e toda a produção centralizada pudessem ser excluídas de uma sociedade convivial” (idem, p. 37). O autor explica que

 

Em todas as sociedades pós-neolíticas, duas formas de produção, que chamarei forma de produção autónoma e forma de produção heteronómica, sempre concorreram para a realização dos objetivos sociais maiores. Só em nossa época é que essas duas formas de produção entraram em conflito de modo cada vez mais acentuado [Illich, 1975a, p. 67].

 

Quando a produção industrial se torna predominante, os valores de uso produzidos pela forma de produção autónoma são relegados para uma posição marginal (idem, p. 69). Isto é problemático, pois na ótica de Illich

 

a eficácia alcançada por uma sociedade na busca de seus objetivos sociais depende do grau de sinergia entre as duas formas de produção, a autónoma e a heteronómica. Depende do modo como o produto do engenheiro e do burocrata se engrene nos valores de uso produzidos de forma autônoma [idem, pp. 69-70].

 

Por conseguinte, o sistema industrial tem de ter reconfigurado e limitado de tal forma a poder “funcionar em sinergia positiva com a produção autónoma de valores de uso concorrentes” (idem, p. 74). O princípio que norteia a produção não poderá ser “fazer mais coisas para as pessoas”, mas antes “lhes garantir maior liberdade para que elas próprias as façam” (idem). A produção heterónoma deve ser reduzida em benefício da produção autónoma (idem, p. 75). Como se verá, esta visão illichiana inspirou enormemente a noção gorziana de uma sociedade dual.

Passarei agora a sintetizar as ideias de Illich presentes em outros dois textos: o livro The Right to Useful Unemployment (Illich, 1996 [1978]) e o ensaio “Vernacular values” (Illich, 1980). Neste último será patente uma mudança do pensamento de Illich no sentido de uma posição romântica ou até “primitivista”. Se em Tools for Conviviality, como se viu, a ênfase estava na complementaridade entre produção industrial heterónoma e produção convivial autónoma, agora Illich coloca o acento tónico na produção “vernacular” microssocial.

The Right to Useful Unemployment é assumidamente um “epílogo” de Tools for Conviviality. A tese principal defendida neste livro é que a “crescente dependência de bens e serviços produzidos em massa” despoja os seres humanos da sua liberdade e da sua autonomia, enclausurando-os no domínio das relações mercantis (Illich, 1996 [1978], pp. 7-8). É preciso contrariar esta lógica e assumir a “autodeterminação local enquanto objetivo” primordial (idem, p. 32), ou seja, as pessoas devem poder “definir e satisfazer uma proporção cada vez maior das suas necessidades direta e pessoalmente” (idem, p. 34). A “austeridade convivial” deve “inspirar a sociedade a proteger os valores de uso pessoais contra (…) a afluência incapacitante (disabling)” [idem, p. 36].

Illich dedica uma atenção especial ao conceito de trabalho. De acordo com o autor, sob o capitalismo o “trabalho” (work) foi erradamente equiparado ao “emprego” (employment) [Illich, 1980, p. 50]. Ora, na perspetiva de Illich urge contrariar “o monopólio do trabalho assalariado sobre todos os outros tipos de trabalho” (idem, p. 53). Acima de tudo, o desemprego deve ser transformado num desemprego “útil”, i.e., na possibilidade de trabalhar sem ser em troca de um salário (idem, p. 51).

O desemprego pode, pois, ser aproveitado como uma oportunidade para expandir a “atividade autónoma” (idem) e o “trabalho útil” (useful work) [Illich, 1996 [1978], p. 84] não mercantis. O autor explica que

 

a Política convivial é baseada no entendimento de que numa sociedade moderna a riqueza e os empregos podem ser partilhados equitativamente e desfrutados em liberdade apenas quando ambos são limitados por um processo político. As formas de riqueza excessivas e o emprego formal prolongado, independentemente de serem bem distribuídos, destroem as condições sociais, culturais e ambientais para a liberdade produtiva igualitária (equal productive freedom) [idem, p. 16].

 

Todavia, Illich não defende a abolição total do trabalho industrial; o autor preconiza apenas que a “prioridade relativa” atribuída ao trabalho assalariado e ao trabalho autónomo seja alterada, em benefício deste último (Illich, 1980, p. 61).

“Vernacular values”, por sua vez, ilustra de um modo mais explícito a viragem primitivista de Illich. De acordo com o autor, as necessidades humanas podem ser satisfeitas de duas formas diferentes. A primeira, ecologicamente insustentável e predominante na modernidade, é constituída pela produção de mercadorias, i.e., as necessidades são satisfeitas através de bens e serviços estandardizados (Illich, 1980, p. 49).

A segunda, ecologicamente sustentável e predominante nas sociedades pré-capitalistas, consiste em “organizar a existência em torno das atividades de subsistência” (idem).

 

Assim, o ideal social corresponde ao homo habilis, uma imagem que inclui uma miríade de indivíduos que são distintamente competentes a lidar com a realidade, o oposto do homo economicus, que depende de “necessidades” estandardizadas. Nestas condições, as pessoas que escolhem [deliberadamente] a sua independência e as suas próprias perspetivas obtêm mais satisfação fazendo e fabricando coisas para uso imediato do que dos produtos dos escravos ou das máquinas. Por conseguinte, qualquer projeto cultural é necessariamente modesto. Nestas condições, as pessoas aproximam-se o mais possível da autossubsistência, produzindo elas próprias aquilo que são capazes, trocando o seu excedente com os vizinhos [idem, p. 50, itálico no original].

 

Illich afirma que “não resta outra alternativa” a “um modo de vida caracterizado pela austeridade, modéstia, construído através do trabalho árduo e assente numa escala reduzida” (idem, itálico nosso). Numa comunidade que escolha um “modo de vida orientado para a subsistência”, o objetivo central é “a inversão do desenvolvimento [industrial], a substituição dos bens de consumo pela atividade pessoal, das ferramentas industriais por ferramentas conviviais” (idem, p. 52). Somente nesta situação, em que “o controlo de cada trabalhador sobre os seus meios de produção determina o horizonte limitado de cada empreendimento” [idem], poderá ser cumprido o ideal do “artesão que trabalha como um virtuoso” (idem).

É evidente a vertente romântica/primitivista e, em certo sentido, até reacionária da teoria de Illich: a produção artesanal, a frugalidade e a limitação extrema das necessidades são o reverso da medalha, a negação abstrata, da “produção pela produção”, do desperdício colossal e das necessidades alienadas (potencialmente) infinitas do capitalismo.

Como se verá nos subpontos seguintes, a “ecologia política” de Gorz incorporou várias noções illichianas, mormente: a) a crítica da “civilização industrial” e do crescimento económico; b) a noção da tecnologia enquanto matriz apriorística que determina as relações sociais; c) a impossibilidade de apropriação coletiva da tecnologia capitalista e, em particular, dos grandes sistemas industriais; d) a divisão da sociedade em termos do binómio esfera da autonomia/esfera da heteronomia; e) a necessidade de reduzir o tempo de trabalho heterónomo e de aumentar o tempo dedicado às atividades autónomas.

Todavia, neste momento, creio ser importante assinalar a diferença crucial entre as teorias de Gorz e Illich. Gorz pretende aproveitar os avanços científicos e tecnológicos para reduzir as horas de trabalho “heterónomo”. Todavia, a maior parte dos bens essenciais à subsistência humana (alimentação, vestuário, habitação, etc.) continuarão a ser produzidos na esfera macrossocial “heterónoma” (Gorz, 1982 [1980]). Em termos marxistas, a esfera da liberdade é erigida sobre e para além da esfera da necessidade, que deverá ocupar o mínimo de tempo possível na vida dos indivíduos. A esfera da autonomia é concebida primariamente como um espaço para a produção de bens não utilitários, para a expressão da criatividade dos indivíduos. Portanto, a redução da heteronomia, em Gorz, corresponde à redução do tempo de trabalho individual dedicado a essa esfera.

Ora, em Illich a redução da heteronomia é entendida primariamente como uma redução de facto do volume e da panóplia dos bens produzidos nessa esfera. O objetivo principal é uma espécie de frugalidade autoimposta no contexto de uma quasi-autarcia: os indivíduos devem produzir autonomamente – na esfera doméstica ou, quando muito, no contexto de uma pequena comunidade – a maior parte dos bens que utiliza/consome.

Por conseguinte, a abolição do trabalho é algo que não se coloca no horizonte de Illich. O autor não vislumbra na tecnologia um núcleo emancipatório – o potencial de libertar os seres humanos do trabalho –, pois na sua ótica toda a vida dos indivíduos se deve sujeitar ao trabalho, ou melhor, deve, de facto, ser trabalho. Na sua negação abstrata da tecnologia e da ciência – como raízes de todo o mal – e da especialização – entendida como dominação direta de uma classe de técnicos e de tecnocratas –, Illich acaba por propor, sem se aperceber disso, um modelo de sociedade que constitui uma continuação do capitalismo por outros meios.

Na sociedade capitalista, os indivíduos são obrigados a passar 8, 10, 12 horas por dia na fábrica ou no escritório a produzir granadas de mão ou relatórios de consultoria para assegurar a sua subsistência (i.e., para receber um salário). Por sua vez, na “utopia” proposta por Illich os indivíduos devem igualmente passar todo o dia envolvidos nas atividades conducentes à sua subsistência: eles devem produzir os alimentos que consomem, fabricar as roupas que usam, construir a casa que habitam, ser os seus próprios médicos – recorrendo a plantas, chás ou aos conhecimentos ancestrais dos curandeiros ou xamãs –, ser completamente autodidatas (pois toda a educação é por natureza opressiva), etc., etc.

Estamos portanto perante o ideal burguês do sujeito que apenas depende de si mesmo e em que o caráter social dos indivíduos é pura e simplesmente escamoteado (fora das relações familiares ou de vizinhança). Todavia, se o burguês proclama alto e bom som que “o mundo é a minha aldeia”, Illich defende que “a aldeia é o meu mundo”. Note-se que a antinomia esfera pública/esfera privada não é transcendida; pelo contrário, a esfera doméstica, privada é afirmada unilateralmente como o locus da liberdade individual. Fora desta esfera, apenas existe a opressão e a heteronomia de um mundo estranho, corporizado nos predicados da “civilização industrial” e que impõe os seus desígnios ao indivíduo.

A vida humana é degradada à condição de sobrevivência física como fim em si mesmo. O indivíduo deve perder a sua vida a garantir os meios da sua sobrevivência. Tal como sob o capitalismo. Só que neste caso fá-lo-á “diretamente”, sem a mediação de terceiros e, sobretudo, de tecnologia “industrial”. Isto porque, em Illich, qualquer elemento que medeie o metabolismo do ser humano com a natureza é, em si mesmo, pernicioso; mas, curiosamente, reduzir o ser humano a esse metabolismo com a natureza não o é. A necessidade é apresentada como o expoente máximo da liberdade.4

 

DIVISÃO DO TRABALHO E MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA (1973)

 

Em 1973 é publicada a obra coletiva intitulada Divisão do Trabalho e Modo de Produção Capitalista, na qual Gorz assina o prefácio (Gorz, 1976c [1973]) e dois capítulos (Gorz, 1976d [1973]; 1976e [1973]). A tese defendida pelo autor é que “a divisão capitalista do trabalho é a fonte de todas as alienações. (…) E o comunismo não é senão o movimento que suprime essa divisão do trabalho” (Gorz, 1976c [1973], p. 7).

 

A DIVISÃO DO TRABALHO E A SUA ABOLIÇÃO

 

Em clara sintonia com as teses avançadas em O Socialismo Difícil (Gorz, 1968), Gorz afirma que a divisão e a parcelarização do trabalho são a “consequência de uma tecnologia concebida [pela classe dominante] para servir de arma na luta de classes” (Gorz, 1976e [1973], p. 258). A principal função da divisão do trabalho não é aumentar a produtividade, mas assegurar a manutenção das relações hierárquicas e de exploração consubstanciadas no “despotismo de fábrica” militarizado (idem, pp. 254-255).

Por conseguinte, a transição para o comunismo exige que a divisão do trabalho seja abolida e que o trabalho seja “progressivamente enriquecido”, permitindo aos operários desenvolver capacidades criativas cada vez mais alargadas (idem, p. 260). Em outros termos, os “produtores diretos” têm de transformar as técnicas de produção, a organização do trabalho, a forma como as máquinas são utilizadas e a relação com o saber e com as instituições que o transmitem (Gorz, 1976c [1973], pp. 10-11). A ciência e a técnica devem ser “revolucionadas” e reapropriadas enquanto “potência comum”, mediante a reunificação do trabalho intelectual e do trabalho manual (idem, p. 11).

A “emancipação da classe operária” passa, pois, pela reconquista da sua “integridade física, nervosa, intelectual, cultural, no seio do trabalho, isto é, pela luta para impor um poder de autodeterminação do processo de trabalho” (idem, p. 11, itálico nosso). Em 1973, portanto, Gorz ainda preconiza uma autonomia no trabalho.

É de realçar que todas estas posições serão abandonadas por Gorz a partir de Adeus ao Proletariado (Gorz, 1982 [1980]): a especialização, a divisão do trabalho e o “despotismo de fábrica” deixam de poder ser abolidos ao nível da produção “macrossocial” e apenas ao nível “microssocial”, i.e., das pequenas comunidades autónomas, é possível instaurar relações de produção humanizadas baseadas na reciprocidade e na cooperação espontânea.

 

A TECNOLOGIA COMO MATRIZ A PRIORI

 

Na década de 1960, Gorz discordava da atribuição da “dominação totalitária à racionalidade tecnológica per se”, pois esta dominação era, ao invés, o resultado do uso da tecnologia sob as condições de um “capitalismo monopolista ou estatista” (Gorz, 1964, p. 536). Numa resenha a O Homem Unidimensional, Gorz diz mesmo que Marcuse “exagera os efeitos da tecnologia sobre a ideologia, a civilização e a política”, uma vez que não é correto “considerar a tecnologia uma variável independente” (idem). É possível desenvolver uma “sociedade industrial” diferente da que existe nos países capitalistas avançados (idem).

Ora, em Divisão do Trabalho e Modo de Produção Capitalista opera-se uma mudança decisiva no pensamento gorziano, em que é possível discernir a influência de Ivan Illich (cf. Gorz, 2009 [2006]). Na presente obra, o autor salienta que a organização, as técnicas de produção e a divisão do trabalho vigentes constituem a “matriz material” que reproduz invariavelmente as “relações (…) de produção capitalistas” (Gorz, 1976c [1973], p. 9). A “tecnologia da fábrica” impõe uma determinada divisão técnica do trabalho que, por seu turno, “exige um certo tipo de subordinação” dos trabalhadores (idem, pp. 9-10). Neste sentido,

 

A tecnologia é (…) a matriz e a causa última de tudo e não se vê como a “apropriação coletiva” dos meios de produção que integra em si a marca dessa tecnologia poderia mudar no que quer que fosse o regime da fábrica (…) e a opressão dos operários. (…) Enquanto a matriz material se mantiver sem alteração, a “apropriação coletiva” do conjunto das fábricas não pode deixar de ser uma transferência perfeitamente abstrata da propriedade jurídica, (…) que será completamente incapaz de pôr fim à opressão. (…) [O] poder manter-se-á no capital, apenas mudarão aqueles que o representam; o patronato privado será substituído pelo Estado-patrão [idem, p. 10, itálico no original].

 

Na mesma obra, contudo, Gorz acaba por voltar atrás e dizer que as ciências e as técnicas de produção “trazem a marca das relações de produção (…) capitalistas na sua orientação, (…), na sua especialização, na sua prática e até na sua linguagem” (Gorz, 1976e [1973], p. 243). O desenvolvimento do capitalismo processa-se de tal forma que “as forças produtivas e as capacidades de trabalho (…) permanecem submetidas à lógica do sistema e funcionais relativamente a ele, por causa da deformação que lhes imprime” (idem, p. 242). Por conseguinte, a crítica já não pode ser feita “do interior do sistema nem do ponto de vista das capacidades e das forças produtivas existentes, mas apenas do ponto de vista do além do sistema, da [sua] superação possível” (idem, itálico no original).

Subsiste, portanto, uma grande ambiguidade na conceção gorziana de tecnologia: se por um lado, seguindo de perto a tese illichiana, a tecnologia parece ser transhistoricizada e elevada ao estatuto de “matriz e causa última de tudo” (Gorz, 1976c [1973], p. 10), por outro lado, contradizendo claramente esta asserção, Gorz diz que o caráter nefasto da tecnologia capitalista deriva precisamente do fato de ser marcada pelas relações sociais capitalistas. Esta segunda posição – em consonância com a teoria gorziana da década de 1960 – parece-me ser a mais correta, uma vez que a tecnologia não existe num vácuo mas sempre no seio de relações sociais específicas: a tecnologia é determinada socialmente e não o inverso. Todavia, a partir de Ecologia e Política (Gorz, 1980 [1975]), Gorz acabará muitas vezes por privilegiar a primeira explicação e ver na técnica, na ciência e na tecnologia a raiz de todo o mal.

 

 

Daquilo que foi exposto fica claro que a Divisão do Trabalho e Modo de Produção Capitalista se assume claramente como uma obra de transição no pensamento gorziano. Por um lado, Gorz ainda permanece agarrado a uma conceção positiva de trabalho e ao papel revolucionário do proletariado. Por outro lado, começa a notar-se a mudança de “paradigma” causada pela incorporação da teoria de Ivan Illich, que será mais vincada em Ecologia e Política (Gorz, 1980 [1975]). Neste contexto, é elucidativa a crítica da tecnologia e da indústria per se.

 

CRÍTICA DO CAPITALISMO QUOTIDIANO (1973)

 

Em 1973 Gorz publica igualmente uma coletânea de artigos – escritos entre 1965 e 1973, e publicados originalmente no jornal Le Nouvel Observateur – intitulada Crítica do Capitalismo Quotidiano (Gorz, 1976a [1973]; 1976b [1973]). São artigos de cunho jornalístico que analisam inúmeros aspetos da realidade capitalista – nomeadamente da francesa –, a partir do arcabouço teórico desenvolvido nas suas obras da década de 1960. Nas palavras de Gorz, “partindo do quotidiano, revelam por detrás dos factos e dos acontecimentos um sistema do qual analisam a lógica, as contradições e os impasses” (Gorz, 1976a [1973], p. 7). Todavia, na maior parte dos casos os textos estão claramente datados e contribuem, em minha opinião, muito pouco para o entendimento da teoria gorziana. É de destacar, sobretudo, a intuição da crise do trabalho e a introdução das preocupações ecológicas do autor que serão devidamente aprofundadas em Ecologia e Política.

 

“O PLENO EMPREGO PARA QUÊ?”

 

No início dos anos 70 a teoria gorziana ainda é marcada pela ontologia do trabalho do marxismo tradicional (Gorz, 1976b [1973], pp. 21, 80-81). Deste modo, em julho de 1972, o autor ainda condena o capitalismo com base na injustiça da exploração de uma classe pela outra: “os operários não têm necessidade nem do patrão nem dos chefes, para produzir” (idem, p. 73, itálico no original). O pleno desenvolvimento das capacidades humanas será feito através do trabalho proletário.

Não obstante, apesar das aporias do seu pensamento, num artigo de 1971, intitulado “O pleno emprego para quê?” (idem, pp. 135-142), Gorz esboça, ainda que de um modo incipiente, algumas das ideias-chave que nortearão a sua teoria ao longo da década de 1980. Diz-nos o autor que “a mola do crescimento capitalista está quebrada” (idem, p. 135), em virtude de os dois principais fatores do crescimento económico se terem esgotado: as “grandes mutações tecnológicas” e a “difusão maciça dos ‘bens duráveis’” (idem).

Uma vez que a maioria das famílias já está equipada com uma panóplia de aparelhos e eletrodomésticos, a produção de bens duráveis tende a estabilizar ou até a declinar (idem, p. 137). Isto significa que a maior parte das empresas “já (…) não encontram utilizações rendosas para a massa dos seus lucros” (idem, p. 145). Neste contexto, segundo Gorz, caminha-se então para um “período de feroz concorrência oligopolística” (idem, p. 138) e “o pleno emprego, nestas condições, torna-se um objetivo fora de alcance” (idem).

A concentração e a modernização da indústria realizam-se já não através de um aumento da produção, mas da sua racionalização, “o que quer dizer que já não cria empregos suplementares mas, pelo contrário, substitui o trabalho humano por máquinas mais eficazes, servidas por um mais pequeno número de trabalhadores” (idem).

A tese do fim do trabalho começa então a transparecer nos escritos de Gorz:

 

[O] que fazer dos cerca de 200 000 trabalhadores suplementares que, todos os anos, vêm aumentar os efetivos da população ativa urbana? Deve-se a qualquer preço encontrar-lhes uma ocupação durante quarenta e cinco horas por semana? Deve-se criar produtos cada vez mais sofisticados ou gastando-se cada vez mais depressa, para que a satisfação das necessidades (normais e artificiais) consuma cada vez mais trabalho (útil ou inútil)? [idem, p. 139].

 

O cerne da questão é que não há nada de intrinsecamente desejável na plena utilização dos recursos disponíveis, a menos que a sua utilização sirva para produzir bens e serviços efetivamente necessários. Pelo contrário,

 

se se exige um crescimento [económico] mais forte para realizar o pleno emprego, a produção e a utilização dos recursos tornam-se o fim, e o consumo o meio. É preciso produzir mais bens para empregar mais pessoas; e só se pode empregar mais gente se se consumir um maior número de bens. (…) [A]s pessoas devem consumir para trabalhar. Isto não tem sentido [idem, p. 141].

 

A única coisa que teria sentido seria a redução dos horários de trabalho, “cuja possibilidade objetiva é revelada pelo aumento do desemprego” (idem). Os indivíduos poderiam trabalhar muito menos, desde que toda a gente “trabalhasse de modo produtivo”, e o trabalho poderia mesmo converter-se numa atividade satisfatória (idem, p. 142). Obviamente que isto pressuporia uma “formação polivalente” dos trabalhadores, a rotação das tarefas, a autogestão das “comunidades de base” (idem).

Note-se que ainda estamos num quadro teórico marcado pela transformação do trabalho numa atividade atrativa e não pela necessidade da sua abolição. Mas a redução dos horários de trabalho – que era secundarizada na década de 1960 em virtude de traduzir uma revindicação “quantitativa” em detrimento de uma transformação qualitativa do trabalho (Gorz, 1975 [1964]; 1968) – começa a adquirir preponderância no seio do pensamento gorziano.

 

O INÍCIO DAS PREOCUPAÇÕES ECOLÓGICAS

 

O artigo “Ecologia e Revolução” (cf. Gorz, 1976b [1973], pp. 153-186), escrito igualmente em 1972, marca o início das preocupações ecológicas de André Gorz que culminarão na publicação de Ecologia e Política (cf. Gorz, 1980 [1975]), em 1975. Posteriormente, Gorz fará uma autocrítica relativamente a algumas das posições assumidas neste artigo; mas para já, analisarei em detalhe o argumento exposto no mesmo.

Na perspetiva de Gorz,

 

O capitalismo, quer seja privado ou de Estado, é incompatível com a sobrevivência da humanidade. Está fundado na corrida ao lucro e ao rendimento; na concorrência entre firmas que apenas conhecem o seu interesse particular; na necessidade de produzir sempre mais, de vender sempre mais, portanto de fazer de modo que os produtos se gastem sempre mais depressa, a fim de que as pessoas comprem deles quantidades cada vez maiores. Resulta disso um desperdício assustador de recursos minerais insubstituíveis; um saque do meio ambiente; um envenenamento e uma destruição de processos naturais (…) indispensáveis à preservação da vida [Gorz, 1976b [1973], p. 158].

 

Gorz salienta “o beco sem saída da ‘civilização industrial’” (idem, p. 162), que “não ultrapassará o fim deste século” (idem) uma vez que as reservas de todos os metais e as reservas petrolíferas esgotar-se-ão no período de algumas décadas (idem, pp. 163-164). Para além dos limites naturais óbvios, o crescimento da produção e do consumo nos países industrializados constitui um

 

desperdício absurdo: porquê querer sempre mais, se se pode viver melhor, consumindo e produzindo menos, mas de modo diferente? Questão de puro bom senso, mas eminentemente subversiva. Porque mais é a palavra-chave do capitalismo. (…) A pergunta produzir o quê? Produzir mais de quê? É estranha ao espírito deste sistema. A mercadoria é apenas a forma transitória que toma o capital na perseguição do seu objetivo: aumentar. E, por este fato, o crescimento capitalista é o crescimento de seja o que for; pode ser a soma de duas grandezas de sinal contraditório que, em boa lógica (não capitalista), é igual a zero. É, por exemplo, o dinheiro ganho por aquele que aumenta os seus lucros poluindo, mais o dinheiro que ganha aquele que limpa, apanha e filtra as porcarias dos outros [idem, p. 175, itálico no original].

 

A revindicação da paragem do crescimento industrial inscreve-se numa “lógica ecológica” que constitui a negação da “lógica capitalista” (idem, p. 176). A ecologia constitui uma “caução científica” para todos os seres humanos que “sentem a ordem presente como uma bárbara desordem e a rejeitam – recusando as formas atuais de produção do consumo, do trabalho, da técnica”, pois acreditam que se pode viver melhor produzindo e consumindo menos (idem, pp. 177-178).5

Todavia, a sustentabilidade ecológica apenas será uma realidade se a ­economia capitalista for substituída por uma “economia descentralizada e ­distributiva” (idem, p. 177) e se “a atividade livre, a autodeterminação soberana dos produtores, associados à escala das comunas e das regiões” for capaz de superar “o trabalho assalariado e as relações mercantis” (idem).

A chamada “civilização pós-industrial” contém, potencialmente, algumas das “caraterísticas principais do socialismo”, tal como era entendido originalmente:

 

a igualdade económica e cultural; a libertação do trabalho; uma repartição das riquezas sociais subtraída às leis do mercado; uma produção social que já não tem como objetivo o lucro e a acumulação do capital; uma base tecnológica radicalmente transformada, que já não submete o trabalho vivo ao domínio do capital (…). Resumindo, uma economia que já não é regida pela lei do valor, mas pela divisa: a cada um segundo as suas necessidades [idem, p. 178].

 

Esta visão de uma sociedade pós-industrial e pós-capitalista é a única compatível com uma utilização e gestão racionais dos recursos naturais, ou seja, com uma “revolução económica” que pressupõe a alteração radical da relação entre o homem e a natureza preconizada pela ecologia (idem, pp. 178-179). Neste sentido, “a ecologia (…) é, virtualmente, uma disciplina fundamentalmente anticapitalista e subversiva”, pois introduz “parâmetros extrínsecos” que limitam a racionalidade económica (idem, p. 179).

Para concluir, atente-se apenas num detalhe: a modificação do modelo de produção e de consumo precisa de um “sujeito revolucionário“ para ser levada a cabo e Gorz continua a identificá-lo (implicitamente) com o proletariado (idem, pp. 184-185).

 

ECOLOGIA E POLÍTICA (1975)

 

Ecologia e Política (Gorz, 1980 [1975]) é o único trabalho de fundo de André Gorz dedicado às questões ecológicas. É também o primeiro livro do autor em que a influência de Ivan Illich se faz sentir de um modo mais notório. Se na década de 1960 tinha sido um dos principais teóricos da Nova Esquerda, com a publicação de Ecologia e Política Gorz adquire uma grande proeminência no seio do movimento e do pensamento ecológicos (Gollain, 2000; Petitjean, 2013). Aliás, hoje em dia é quase consensual que esta obra marca o início, de facto, da chamada “ecologia política”. A relação entre sociedade e natureza, entre desenvolvimento económico e meio ambiente, passa, pois, a ocupar um lugar central no edifício teórico de Gorz.

Gorz parte da premissa de que a ecologia já foi cooptada pelas instituições do capitalismo moderno. Neste sentido, a ecologia não é, por si só, “suficiente: o movimento ecológico não é um fim em si mesmo, mas uma etapa numa luta mais abrangente” (Gorz, 1980 [1975], p. 3, itálico no original). A humanidade está confrontada com duas alternativas: “um capitalismo adaptado aos constrangimentos ecológicos; ou uma revolução social, económica e cultural que abula os constrangimentos do capitalismo e, ao fazê-lo, estabeleça uma nova relação entre o indivíduo e a sociedade e entre as pessoas e a natureza” (idem, p. 4).

 

OS LIMITES DO CRESCIMENTO: CRISE ECONÓMICA E CRISE ECOLÓGICA

 

Gorz realça que o capitalismo enfrenta uma crise de “sobreacumulação”, agravada por uma crise ecológica (idem, p. 21): “o crescimento capitalista está em crise não apenas porque é capitalista, mas também porque esbarrou com limites físicos” (idem, p. 11).

A crise de sobreacumulação deriva do fato de o capitalismo avançado basear-se na substituição do trabalho humano por máquinas, de trabalho vivo por trabalho morto (idem, p. 21). Máquinas cada vez mais sofisticadas são operadas por um número cada vez mais reduzido de trabalhadores. Por outras palavras, usando a terminologia marxista, a “composição orgânica do capital” aumenta, i.e., a indústria torna-se “capital-intensiva” (idem, p. 22). O capitalismo empreendeu uma autêntica “fuga para a frente”, procurando contrariar a diminuição da taxa de lucro e a saturação dos mercados com a rotação acelerada do capital e obsolescência planificada dos bens de consumo (idem, p. 24).

Ademais, a delapidação dos recursos naturais e os níveis de poluição atingiram um nível tal que a indústria, para poder continuar a funcionar, vê-se perante a necessidade – apesar de isso contrariar a racionalidade económica pura – de investir recursos financeiros na adoção de tecnologias (mais) “limpas” (idem, p. 5). Assim, há um aumento inevitável dos custos de reprodução do capital fixo, sem um aumento correspondente nas vendas que permita contrabalançá-lo (idem, p. 6).

No que se refere à crise ecológica, a “sociedade industrial” desenvolveu-se mediante a “pilhagem acelerada” das reservas de recursos naturais que levaram milhões de anos a formar-se (idem, p. 12). De acordo com Gorz, é preciso reconhecer que a atividade produtiva depende da utilização dos “recursos finitos” do planeta Terra e da “organização de um conjunto de intercâmbios” com “um sistema frágil de múltiplos equilíbrios” ecológicos (idem, p. 13). Todavia,

 

Não se trata de deificar a natureza ou de “regressar” a ela, mas de tomar em consideração um simples fato: a atividade humana encontra no mundo natural os seus limites externos. (…) Não se trata de abster-se de consumir cada vez mais, mas de consumir cada vez menos – não há outra maneira de conservar as reservas disponíveis para as gerações futuras. É nisto que consiste o realismo ecológico [idem].

 

Gorz adverte que

 

A solução para esta [dupla] crise não se encontra na recuperação do crescimento económico, mas somente numa inversão da própria lógica do capitalismo. Esta lógica tende intrinsecamente para a maximização: criação do maior número possível de necessidades e procura da sua satisfação com o maior número possível de bens e serviços comercializáveis de modo a obter o maior lucro possível do maior fluxo possível de energia e de recursos. Porém, a ligação entre “mais” e “melhor” foi quebrada. “Melhor” pode agora significar “menos”: criar o menor número possível de necessidades, satisfazendo-as com o menor dispêndio possível de materiais, energia e trabalho, e afetando o menos possível (imposing the least possible burden) o [meio] ambiente [idem, p. 27].

 

A raison d’être da ecologia é, portanto, a limitação dos efeitos nefastos da racionalidade económica.

 

A ALTERNATIVA: SOCIALISMO ECOLÓGICO OU BARBÁRIE TECNO-FASCISTA

 

Na ótica de Gorz, a economia política aplica-se apenas à “produção [macros]social (…) baseada na divisão social do trabalho e regulada por mecanismos exteriores à vontade e à consciência dos indivíduos – por processos mercantis ou pela planificação central” (idem, p. 14).

Diz-nos o autor que é “impossível derivar uma ética da racionalidade económica” (idem, p. 15). Marx compreendeu esse fato e enunciou as alternativas que se colocam aos seres humanos: ou os indivíduos conseguem unir-se para subordinar o processo económico à sua “vontade coletiva”, substituindo a divisão social do trabalho pela “cooperação voluntária dos produtores associados”; ou, caso contrário, o processo económico prevalecerá sobre os objetivos das pessoas (idem). “A escolha é simples: ‘socialismo ou barbárie’” (idem).

Por sua vez, a ecologia, enquanto disciplina específica, não se aplica àquelas comunidades ou povos cujos modos de vida não produzem quaisquer efeitos duradouros sobre o meio ambiente (idem). A ecologia apenas surge como disciplina autónoma quando a atividade económica perturba permanentemente natureza; a sua preocupação nuclear é com os limites externos que a economia deve respeitar (idem).

A racionalidade ecológica é fundamentalmente diferente da racionalidade económica (idem, p. 16).

 

Ela permite-nos descobrir que o esforço da economia para superar escassezes relativas engendra, ultrapassado um certo limiar, escassezes absolutas e inultrapassáveis. Os resultados [da atividade económica] tornam-se negativos: a produção destrói mais do que aquilo que produz. A inversão ocorre quando a atividade económica infringe o equilíbrio dos ciclos ecológicos primários e/ou destrói recursos que é incapaz de regenerar ou reconstituir [idem, itálico no original].

 

A ecologia demonstra que a resposta aos efeitos perniciosos da “civilização industrial” não jaz no crescimento mas na limitação da “produção material” (idem). Todavia, Gorz defende que, tal como acontece com a racionalidade económica, é “impossível derivar uma ética da ecologia” (idem). No seu entendimento, Ivan Illich foi um dos primeiros autores a aperceber-se disso, tendo esboçado a seguinte alternativa: ou os seres humanos chegam a acordo quanto à urgência de “impor limites à tecnologia e à produção industrial de modo a conservar os recursos naturais, manter os equilíbrios ecológicos necessários à vida e favorecer o desenvolvimento e a autonomia das comunidades e dos indivíduos (esta é a opção convivial)” [idem, pp. 16-17]; ou, caso contrário, os limites ecológicos serão “determinados centralmente e planificados por engenheiros ecológicos”, pelo que “a produção programada de um ambiente ‘ótimo’ será confiada a instituições centralizadas e às tecnologias pesadas [hard technologies] (esta é a opção tecno-fascista […]). A escolha é simples: convivialidade ou tecno-fascismo” (idem, p. 17).

O facto a salientar é que a ecologia, “enquanto disciplina puramente científica”, não implica forçosamente a rejeição de soluções “autoritárias”; essa rejeição terá de resultar de uma “escolha política e cultural” (idem). Ao contrário do que defendia em “Ecologia e revolução” (cf. Gorz, 1976b [1973], pp. 153-186), Gorz rejeita atualmente a ideia de que seja possível fundamentar cientificamente uma alternativa ecologicamente sustentável ao capitalismo.

No entendimento de Gorz, o socialismo e a ecologia, tomados isoladamente, são uma condição necessária mas não suficiente para a emancipação social. A superação emancipatória do capitalismo industrial passa forçosamente por uma sinergia entre socialismo e ecologia, que devem ser coextensivos – i.e., exige a criação prática de uma ecologia política.

 

A NECESSIDADE DE UMA TECNOLOGIA DIFERENTE

 

Segundo Gorz, a ecologia versa sobre os “pré-requisitos materiais do sistema económico” (idem, itálico nosso). Deste modo, analisa primariamente o “caráter das tecnologias atuais, visto que as técnicas nas quais se baseia o sistema económico não são neutras. (…) A tecnologia é a matriz na qual a distribuição de poder, as relações sociais de produção e a divisão hierárquica do trabalho estão incrustadas” (idem, pp. 18-19, itálico nosso).

Neste sentido, “a luta por tecnologias diferentes é essencial para a luta por uma sociedade diferente. (…) A inversão das ferramentas é uma condição fundamental para a transformação da sociedade” (idem, p. 19, itálico no original). O desenvolvimento da cooperação voluntária, da autodeterminação e da liberdade das comunidades e dos indivíduos exige a criação de tecnologias que possam ser utilizadas e controladas ao nível microssocial (bairro ou pequena comunidade); sejam capazes de gerar uma “autonomia económica das coletividades locais e regionais”; não sejam prejudiciais ao meio ambiente; sejam compatíveis com “o exercício do controlo conjunto pelos produtores e consumidores dos produtos e dos processos de produção” (idem).

A autogestão pressupõe, pois, unidades sociais e económicas suficientemente pequenas (idem, p. 39) e a existência de ferramentas conviviais para que possa ser posta em prática (idem, p. 40). As tecnologias industriais devem ser subordinadas à extensão contínua da autonomia pessoal e coletiva.

Embora não o designe ainda dessa forma, Gorz inspira-se na visão de Illich para esboçar, ainda que de modo incipiente, o conceito de uma “sociedade dual” – a trave-mestra do seu edifício teórico na década de 1980. Assim, por um lado, temos as grandes indústrias, “planificadas centralmente”, que produzirão apenas aquilo que é requerido para satisfazer as necessidades mais elementares da população: “três ou quatro tipos de calçado e vestuário duradouros, três ou quatro modelos de veículos robustos e adaptáveis, e tudo o resto que é necessário para abastecer os serviços e os equipamentos coletivos” (Gorz, 1980 [1975], p. 9). Em Adeus ao Proletariado, esta será designada por “esfera da heteronomia” (Gorz, 1982 [1980]).

Por outro lado, cada localidade e cada bairro possuirão oficinas públicas equipadas com uma vasta gama de ferramentas, máquinas e matérias-primas, onde as pessoas poderão “produzir para uso próprio, fora da economia de mercado, os bens não essenciais de acordo com os seus gostos e desejos” (Gorz, 1980 [1975], p. 9) Em Adeus ao Proletariado, esta será designada por “esfera da autonomia” (Gorz, 1982 [1980]).

Na perspetiva de Gorz, este esboço de “utopia” corresponde à forma mais avançada de socialismo: uma sociedade sem burocracia, em que o mercado desaparece gradualmente, em que as necessidades básicas são satisfeitas e em que “as pessoas são coletiva e individualmente livres de moldar as suas vidas” e de produzir não apenas de acordo com as suas necessidades, mas de acordo com as suas “fantasias” (Gorz, 1980 [1975], p. 9)

Terminarei este subponto com algumas observações críticas. Gorz salienta a necessidade de implementar tecnologias diferentes pois a tecnologia não pode ser considerada uma variável “neutra”. Isto é obviamente verdade, mas será que as técnicas e as tecnologias produtivas não são determinadas pelas relações sociais onde estão inseridas, nomeadamente pela racionalidade instrumental subjacente ao “sistema económico” capitalista?

À semelhança do que sucedia em Divisão do Trabalho e Modo de Produção Capitalista, a que já fiz referência, Gorz defende – do meu ponto de vista, erradamente – a posição contrária, a saber: não é a tecnologia que está incrustada nas relações sociais, mas são as relações sociais que estão incrustadas na tecnologia! Temos aqui, portanto, a raiz da crítica gorziana à “civilização industrial” tout court, claramente decalcada da teoria illichiana.

Ora, é preciso realçar que não é a tecnologia per se que causa a delapidação dos recursos naturais, mas sim o fetichismo da mercadoria reinante no capitalismo, cuja (ir)racionalidade determina: i) a prossecução de um “crescimento económico” infinito; ii) a natureza das tecnologias a serem utilizadas para alcançar esse fim, mediante um aumento a todo o custo da produtividade e da produção.

A diminuição do valor contido em cada mercadoria individual conduz ao aumento exponencial da produção material e ao desgaste acelerado dos produtos como tentativa de resolver as contradições da economia capitalista (cf. Postone, 2003 [1993]). Gorz aflora esta questão (como se constatou nas secções “O pleno emprego para quê?” e “Os limites do crescimento”), pelo que não deixa de ser estranho que, em simultâneo, conceba a tecnologia como a “matriz” apriorística responsável pela síntese social capitalista.

 

A ECOLOGIA NA OBRA TARDIA DE ANDRÉ GORZ

 

Numa entrevista de 2006, Gorz confidenciará o seguinte: “A partir de 1980, preferi tratar outros temas. Já não tinha nada de novo a dizer sobre a ecologia política” (Gorz, 2006, p. 4). Podemos afirmar que a primeira asserção é falsa: apesar de não estar no centro das suas preocupações, a ecologia é abordada por várias vezes ao longo das décadas seguintes, nomeadamente em Capitalismo, Socialismo, Ecologia (Gorz, 1994 [1991]) e no artigo “Political ecology – between expertocracy and self-limitation” (Gorz, 2010b [1992]).6

No que se refere à segunda asserção, sou obrigado a concordar com Gorz: de facto, os princípios teóricos fundamentais da denominada “ecologia política” foram estabelecidos pelo autor na década de 1970. O tratamento das questões de índole ecológica é feito mediante o recurso aos instrumentos conceptuais e teóricos desenvolvidos em Ecologia e Política, embora essa argumentação incorpore agora – quanto a mim, desnecessariamente – a oposição habermasiana entre heterorregulação sistémica e autorregulação do mundo da vida.

Deve contudo ser assinalada uma diferença decisiva entre a posição assumida por Gorz em Ecologia e Política e aquela assumida em Capitalismo, Socialismo, Ecologia. Na secção intitulada “Acerca do pensamento de Ivan Illich” tive oportunidade de salientar algumas diferenças fundamentais entre as teorias de Illich e de Gorz. Não obstante, durante a década de 1970 Gorz não criticava abertamente a tendência romântico-primitivista de Illich, parecendo até adotar essa perspetiva em algumas passagens.

Ora, em Capitalismo, Socialismo, Ecologia Gorz critica explicitamente Hannah Arendt e um certo tipo de pensamento romântico que se inspira nos seus escritos, ilustrando desse modo as diferenças entre o seu pensamento e aquele de Illich. Diz-nos Gorz que o caráter “pré-moderno” da maioria das teorias “eco-radicais” é visível numa “fé quasi-religiosa na bondade da natureza e de uma ordem natural que deve ser restabelecida.” Para esses autores, todo o desenvolvimento moderno foi uma espécie de “pecado” contra a ordem natural do mundo (Gorz, 1994 [1991], p. 7).

Gorz censura uma crítica da sociedade industrial “puramente abstrata” e que toma como ponto de referência modelos de sociedade “medievais ou exóticos”. Mais importante ainda, este tipo de crítica não é capaz de identificar “experiências ou possibilidades práticas” emancipatórias presentes nas sociedades capitalistas; e apenas estas experiências poderão corporizar potenciais atos de “transformação social” (idem, p. 64). Escamoteando as mesmas, Arendt acaba por se limitar a “opor modelos culturais fundamentalmente diferentes aos sistemas industriais que existem atualmente” (idem). Ora, em última instância, este “radicalismo abstrato” parece advogar o regresso às “comunidades agrárias” e às “economias de subsistência” (idem). A desindustrialização é apresentada como uma necessidade inevitável com base em argumentos (supostamente) ecológicos (idem). Se substituíssemos “Arendt” por “Illich”, as palavras de Gorz não perderiam em nada a sua adequabilidade e pertinência.

Pode-se concluir que se na década de 1970 e, particularmente, em Ecologia e Política, Gorz não se demarca suficientemente do entendimento primitivista da ecologia que identifiquei em Illich – fosse porque concordava com ele, pelo menos em parte, ou porque subestimava o seu papel no pensamento de Illich –, em Capitalismo, Socialismo, Ecologia Gorz sente a necessidade de distinguir claramente a sua noção de “ecologia política” das abordagens “eco-radicais” primitivistas. Isto parece comprovar que apesar do seu flirt com a teoria ­illichiana na década de 1970, Gorz nunca postulou uma crítica romântica do capitalismo.

 

ANÁLISE COMPARATIVA DO PENSAMENTO DE ANDRÉ GORZ

 

Estamos agora em condições de aferir a posição ocupada pela obra gorziana da década de 1970 no seio do pensamento do autor através de uma análise comparativa. As principais dimensões da teoria de André Gorz estão descritas no Quadro 1 (pp. 266-267), que passarei agora a descrever sinteticamente.

Na década de 1950, a principal influência de Gorz foi a obra O Ser e o Nada, de Jean-Paul Sartre. Assim, nos seus dois primeiros livros – Fundamentos para uma Moral (Gorz, 1977 [1955]) e O Traidor (Gorz, 1989b [1958]) – a temática da alienação é analisada sobretudo do ponto de vista individual – daquilo que Sartre designou por “má-fé”. A superação da má-fé exige uma profunda autoanálise por parte de cada indivíduo com recurso à “psicanálise existencial”. O intuito será conseguir uma “conversão radical” que coloque o indivíduo no caminho da “autenticidade” e de uma conduta eticamente irrepreensível enquanto expressão máxima da sua liberdade. O conceito de trabalho não desempenha um papel fulcral nestes dois primeiros livros de Gorz, embora esteja implícito um entendimento positivo do mesmo, assim como da classe operária.

A Moral da História (Gorz, 1969 [1959]) pode ser considerada a primeira obra marxista de Gorz, acompanhando de perto as teses desenvolvidas por Sartre em Crítica da Razão Dialética (escrita na mesma época). O trabalho é agora entendido explicitamente de modo ontológico e definido como a essência do ser humano. Gorz desloca a sua atenção para a alienação no plano social, isto é, para o trabalho alienado. A dominação vigente na sociedade moderna é conceptualizada, em última instância, como uma dominação direta exercida pela classe capitalista sobre a classe operária. Por conseguinte, a abolição da alienação implica libertar o trabalho do jugo que lhe é imposto exteriormente pelo capital. Isso exige uma ação coletiva da classe explorada, o proletariado, que é entendido como um sujeito revolucionário apriorístico. A ação do proletariado consistirá na apropriação coletiva dos meios de produção, o que traduz uma conceção positiva da tecnologia tal como existe sob a sua forma capitalista; a ênfase é colocada somente na modificação da forma da sua propriedade jurídica. A visão de uma sociedade pós-capitalista que emerge deste quadro teórico é a de um socialismo de Estado, entendido como a pré-condição necessária para a “moralização da existência” dos indivíduos.

O pensamento gorziano da década de 1960 traduz o compromisso cada vez mais vincado do autor com o marxismo tradicional. Desta maneira, são evidentes vários elementos já introduzidos em A Moral da História: o trabalho continua a ser entendido como uma constante antropológica e a dominação capitalista continua ser percecionada redutoramente como uma dominação de classe. A classe operária ainda é o sujeito coletivo responsável pela emancipação da humanidade; contudo, Gorz passa a atribuir um papel determinante à denominada “nova classe operária”, i.e., aos trabalhadores qualificados e com níveis de competências mais elevados. Na sua ótica, este grupo representa a vanguarda do proletariado, uma vez que a autonomia que estes operários exercem no seu trabalho – ainda que limitada sob o capitalismo – conduzi-los-á a reivindicar um controlo cada vez maior do processo produtivo que, em última instância, será incompatível com os ditames da sociedade capitalista.

Isto conduz-nos ao segundo conceito-chave gorziano da década de 1960: a autogestão. Influenciado por Cornelius Castoriadis e pelos grupos operaístas italianos, Gorz vê na autogestão, i.e., no controlo operário da produção industrial, o meio privilegiado de combater a alienação no trabalho e de subverter a hegemonia do capital. O socialismo ainda é definido, à semelhança de A Moral da História, como a apropriação coletiva dos meios de produção, mas o modelo estatista deve agora ser combinado com o estabelecimento de conselhos operários. Por outras palavras, a planificação central deve ser conjugada com a autogestão. Neste sentido, a sua visão de uma sociedade pós-capitalista assenta numa hibridização algo contraditória da teoria leninista com a teoria conselhista (na tradição de Pannekoek, Mattick, etc.).

O início da década de 1970 não trouxe qualquer mudança ao entendimento ontológico do trabalho nem à afirmação do proletariado como demiurgo do socialismo. Todavia, a conceptualização da dominação capitalista começa a modificar-se, em resultado da alteração da conceção gorziana de tecnologia. A tecnologia é agora a “matriz a priori” que determina a forma das relações sociais capitalistas. Se em Divisão do Trabalho e Modo de Produção Capitalista (Gorz, 1976a [1973]; 1976b [1973]; 1976c [1973]) a dominação ainda parece ser percecionada de modo subjetivo – a técnica, a tecnologia e a ciência predominantes foram introduzidas conscientemente pela classe capitalista para assegurar a manutenção do seu domínio –, a partir de Ecologia e Política (Gorz, 1980 [1975]) a dominação é eminentemente impessoal e o resultado inevitável da “civilização industrial” – capitalismo e indústria são coextensivos, pelo que a produção industrial é inerentemente opressiva e alienante.

Este pessimismo anti-industrial e anticientífico traduz a viragem ecológica no pensamento de Gorz, devida sobretudo à influência de Ivan Illich. A produção industrial em larga escala não é passível de ser apropriada coletivamente ou de ser autogerida. Assim, uma vez que é impossível aboli-la completamente sem regredir para condições pré-modernas, a solução avançada por Gorz passa, por um lado, por limitá-la à produção de um conjunto reduzido de bens essenciais e por colocá-la sob a égide do Estado. Por outro lado, devem ser adotadas “ferramentas conviviais” (Illich), ou seja, tecnologias com um impacto ambiental reduzido e que possam ser operadas autonomamente (“autogeridas”) por pequenos grupos. O gigantismo industrial deve, sempre que possível, ser substituído por uma produção microssocial ecologicamente sustentável. A visão de uma sociedade pós-capitalista corresponde assim a uma rede de pequenas comunidades que produzem localmente a maioria dos bens de que necessitam, complementada pela produção industrial regida pela planificação central.

A década de 1980 traz a primeira grande rutura no pensamento de Gorz. A partir de Adeus ao Proletariado (Gorz, 1982 [1980]), o trabalho passa a ser entendido de um modo negativo e como uma forma de atividade historicamente específica. A alienação do trabalho já não é superável, pois o trabalho é inerentemente uma atividade heterónoma. Consequentemente, em vez de libertar o trabalho, Gorz propõe que a humanidade se liberte do trabalho.

Neste sentido, Gorz faz uma crítica feroz do movimento operário clássico e da sua glorificação do trabalho e abandona a noção do proletariado enquanto sujeito revolucionário. Historicamente, a classe operária interiorizou as categorias capitalistas e limitou-se a lutar pelo reconhecimento no seio das mesmas. Gorz coloca as suas esperanças de transformação social naquilo que designa por “não-classe dos não-trabalhadores” – o conjunto heterogéneo dos indivíduos que rejeitam a racionalidade económica e os valores capitalistas, mormente o trabalho. Não obstante, no final da década de 1980, em Metamorfoses do Trabalho (Gorz, 1989a [1988]), Gorz romperá definitivamente com a noção de um sujeito apriorístico ou “sujeito objetivo”.

Para além disso, a 3.ª Revolução Industrial – aquela da microeletrónica – provocou uma mudança de paradigma no capitalismo: doravante são necessárias quantidades cada vez menores de trabalho para produzir quantidades cada vez maiores de bens e serviços. Isto significa, na ótica de Gorz, a crise incontornável do capitalismo enquanto sociedade do trabalho. O trabalho já não pode continuar, como no passado, a garantir a integração social dos indivíduos.

Para fazer face a este estado de coisas, Gorz preconiza a criação de uma “sociedade dual” composta por duas esferas com lógicas distintas: i) uma esfera heterónoma macrossocial baseada na produção mercantil; ii) uma esfera autónoma microssocial baseada na produção não mercantil. O elemento-chave da sociedade dual é a implementação de uma “política do tempo” assente na redução generalizada das horas de trabalho “heterónomo” – que acompanhe os aumentos da produtividade – e na redistribuição equitativa do trabalho (heterónomo) remanescente por todos os indivíduos. Em suma, o aumento exponencial da produtividade deve permitir a contração contínua do tempo de trabalho individual dedicado à esfera heterónoma e uma expansão correspondente do tempo dedicado às atividades autónomas.

Todavia, na ótica (equivocada) de Gorz, o valor é agora produzido pelas máquinas, pelo que é preciso haver uma redistribuição dos “meios de pagamento”. Deste modo, a política do tempo tem como corolário lógico a atribuição de um rendimento básico como contrapartida do trabalho efetuado na esfera heterónoma. O rendimento básico será financiado através do lançamento de um imposto sobre a produção (crescentemente) automatizada da esfera mercantil.

A dominação vigente sob o capitalismo é inequivocamente caraterizada como impessoal (e insuperável na esfera da heteronomia). Mas quanto à ­origem dessa dominação, subsiste uma aporia central em Gorz. Por vezes, o autor é capaz de discernir a origem da dominação impessoal capitalista na sua forma de organização social, nomeadamente na desvinculação e autonomização da economia e das categorias a ela associadas (valor, mercadoria, trabalho, etc.). Contudo, em outras ocasiões – à semelhança do que sucedia em Ecologia e Política –, Gorz faz da tecnologia, literalmente, uma espécie de Deus ex machina à qual é possível reconduzir todos os malefícios do capitalismo.

Isto conduz-nos à conceção Gorziana de tecnologia. A produção industrial da esfera heterónoma é caracterizada como irremediavelmente alienante, não sendo passível de um controlo coletivo, pois a produção em larga escala só pode ser organizada “racionalmente” de modo capitalista, centralizado e burocrático. Todavia, a microeletrónica pode ser aplicada a uma tecnologia soft, em pequena escala, descentralizada e, portanto, passível de ser gerida autonomamente por pequenos grupos de indivíduos (vislumbra-se aqui uma reminiscência das “ferramentas conviviais” de Ecologia e Política). Abre-se assim a possibilidade de construção de um nicho de produção pós-industrial que não é regulado pela lógica mercantil.

A teoria gorziana da década de 1990 não sofre alterações substanciais, como se denota no quadro. Destaca-se neste período um maior pessimismo e reformismo do autor, na sequência do colapso dos países do socialismo real. O capitalismo parece ser inultrapassável, pelo que o socialismo é redefinido enquanto delimitação da esfera de atuação “legítima” da racionalidade económica.

Na década de 2000 ocorre a segunda grande rutura no pensamento de André Gorz em virtude da descoberta da corrente contemporânea conhecida como Nova Crítica do Valor (NCV).7 O entendimento negativo do trabalho já não se consubstancia numa mera redução dos horários de trabalho, mas na abolição do trabalho tout court, i.e., na sua superação prática enquanto forma de atividade fetichista e historicamente específica. Isto significa que a abolição da alienação e da heteronomia passam a ser concebíveis.

Gorz adota igualmente a distinção basilar entre riqueza (material e imaterial) e valor económico. A crise do trabalho significa forçosamente a crise do valor, o que coloca em cheque a reprodução da economia capitalista. Neste sentido, o rendimento básico já não pode ser financiado ad infinitum através dos impostos coletados pelo Estado, mas terá de ser encarado como uma medida de emergência de caráter transitório.

Gorz abandona definitivamente o conceito de sociedade dual, uma vez que não há nenhuma esfera pretensamente “autónoma” que escape à influência do valor. A sociedade capitalista tem de ser transcendida na sua totalidade. Isto significa que a dominação impessoal (anteriormente imputada à “esfera heterónoma”) passa a ser superável.

No que diz respeito à tecnologia, a disseminação da microeletrónica – e, em particular, da informatização e da automação – tornam possível o estabelecimento da denominada “autoprodução high-tech”. Em outros termos, é possível implementar uma produção em pequena escala com produtividades extremamente elevadas que seja plenamente controlável e gerida autonomamente. Portanto, para o último Gorz, a produção industrial em larga escala parece ser tendencialmente substituível pela produção em rede pós-industrial.

A sua visão de uma sociedade pós-capitalista é, pois, a de uma sociedade pós-mercantil em que o trabalho, o valor, a mercadoria e o dinheiro são completamente abolidos, o que se coaduna perfeitamente com a teoria da Nova Crítica do Valor.8

 

CONCLUSÃO

 

Aquilo que, de um ponto de vista ecológico, aparece como uma poupança [saving] (durabilidade dos produtos, prevenção de doenças e de acidentes, menores consumos de energia e de recursos) reduz a produção de riqueza mensurável economicamente sob a forma do PNB, e aparece ao nível macroeconómico como um aspeto negativo (source of loss) [Gorz, 1994 [1991], pp. 32-33].

 

Ao longo da década de 1970 e, particularmente, em Ecologia e Política, Gorz defende um conjunto de teses que serão devidamente aprofundadas nas suas obras das décadas seguintes. Em primeiro lugar, Gorz aponta como causas principais para a crise do capitalismo o sobredesenvolvimento das capacidades produtivas e a destruição do meio ambiente causada pelas tecnologias utilizadas. Esta crise apenas poderá ser superada mediante a criação de um novo modelo de produção que rompa com a racionalidade económica, utilize com cautela os recursos não renováveis e diminua o consumo de energia e de matérias-primas (Gorz, 1980 [1975], p. 40).

Em segundo lugar, o autor alerta, contudo, que a superação da racionalidade económica pode assumir a forma tanto de uma “regulação centralizada tecno-fascista“ como de uma “autogestão convivial” (idem, pp. 40-41). O tecno-fascismo apenas poderá ser evitado através de uma expansão da sociedade civil que, por sua vez, depende da criação de ferramentas e tecnologias que fomentem a soberania individual e comunitária (idem, p. 41).

Em terceiro lugar, Gorz salienta que a ligação histórica entre “mais” e “melhor” foi quebrada. Hoje em dia, é possível viver melhor trabalhando e consumindo menos, desde que sejam produzidos bens de maior durabilidade e que não sejam prejudiciais ao meio ambiente (idem).

Finalmente o desemprego nas sociedades capitalistas mais desenvolvidas reflete, na ótica do autor, a diminuição do trabalho socialmente necessário. Este fenómeno demonstra que seria possível reduzir os horários de trabalho se toda a gente trabalhasse. A redução dos horários de trabalho poderia ser acompanhada pela expansão das atividades livremente escolhidas pelos indivíduos (idem).

Estas teses representam uma grande mudança relativamente à teoria gorziana da década de 1960, em que o autor defendia um modelo de socialismo mais ou menos estatista e em que o trabalho era entendido de modo positivo enquanto essência do ser humano. Pode-se concluir que a “viragem ecológica” do pensamento de André Gorz foi uma etapa decisiva para o abandono dos predicados do marxismo tradicional e para o desenvolvimento de uma teoria francamente original e heterodoxa nas décadas subsequentes.

 

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Recebido a 20-01-2015. Aceite para publicação a 15-07-2015.

 

NOTAS

1No Brasil, Josué Pereira da Silva é sem dúvida o autor que tem dedicado uma maior atenção ao estudo do pensamento gorziano (Silva, 1999, 2002, 2009). Em 2009 (vol. 21, n.º 1), a revista Tempo Social publicou um número especial sobre Gorz. Em Portugal, não conheço nenhuma análise aprofundada do autor para além do ensaio escrito por José Nuno Matos (2014).

2Utilizamos aqui o termo “marxismo tradicional” na aceção em que foi cunhado por Moishe Postone (cf. Postone, 2003 [1993]). Na ótica de Postone, o marxismo tradicional inclui todas as teorias de inspiração marxista que entendem o capitalismo meramente na base da propriedade (jurídica) privada dos meios de produção por parte dos capitalistas e da respetiva exploração “subjetiva” dos trabalhadores, mediante a apropriação da mais-valia que estes produzem. A dominação impessoal, “quasi-objetiva” (cf. idem) que carateriza o capitalismo, corporizada em abstrações reais – mercadoria, valor, trabalho, dinheiro, etc. – é escamoteada em benefício de uma noção transhistórica de dominação direta. Assim, o “motor da história” é constituído pela “luta de classes”, pela elevação do proletariado a “sujeito da história” responsável pela construção de uma sociedade assente numa ontologia do trabalho. O marxismo tradicional postula uma crítica do capitalismo “do ponto de vista do trabalho”, ao invés de uma “crítica do trabalho” (idem). O trabalho e a produção – mercantil e industrial – moderna são assumidos implicitamente de um modo não problemático; a grande crítica lançada ao capitalismo é que este entrava o desenvolvimento das forças produtivas. Estamos, pois, perante uma conceção tendencialmente produtivista de socialismo. Em suma, o marxismo tradicional consubstancia-se na crítica da distribuição injusta da mais-valia produzida e na oposição da “anarquia do mercado” a uma planificação central do (tempo de) trabalho da sociedade.

3São escassas as referências em língua portuguesa à obra de Ivan Illich. Quase todas elas versam sobre a crítica illichiana à educação formal ou à medicina moderna. A exceção é o artigo de Valdir Fernandes (Fernandes, 2008) que analisa criticamente a racionalidade económica e tecnológica à luz das teorias de Illich, Gorz, Polanyi, Weber, entre outros autores. Todavia, ­Fernandes apenas aborda um livro de Illich – Tools for Conviviality (Illich, 1975b [1973]) – e um livro de Gorz – Metamorfoses do Trabalho (Gorz, 1989a [1988]).

4Em Capitalismo, Socialismo, Ecologia Gorz (1994 [1991]) fará uma crítica semelhante às correntes romântico-primitivistas influenciadas por Hannah Arendt, o que reforça a minha tese quanto às diferenças fundamentais entre as teorias de Gorz e de Illich.

5Como veremos na secção seguinte, Gorz rejeitará posteriormente esta “caução científica”: por outras palavras, não é possível fundamentar “cientificamente” uma ética ecológica necessariamente emancipatória, uma vez que a ecologia, enquanto disciplina, pode também servir para caucionar um “fascismo ecológico”.

6Apesar do título, a coletânea Ecologica (Gorz, 2010a [2008]), publicada postumamente, não acrescenta nada de verdadeiramente novo neste âmbito. A maioria dos ensaios que abordam as questões ecológicas já tinha sido publicada nas décadas anteriores (idem, pp. 77-97, 98-118; 2010b [1992]).

7Esta corrente de pensamento surge em finais da década de 1970/meados da década de 1980 e tem raízes na Escola de Frankfurt e na crítica da economia política de Marx, nomeadamente nas suas teorias do fetichismo e da crise. Os seus principais representantes são Robert Kurz (na Alemanha), Moishe Postone (nos EUA) e Jean-Marie Vincent (em França) [Jappe, 2006]. Ao contrário do marxismo tradicional, a NCV revê-se no núcleo “esotérico” (Kurz, 2001) da teoria de Marx: o escândalo já não é o “roubo” pelos capitalistas da mais-valia produzida pelos trabalhadores, mas a própria produção de valor e o próprio trabalho enquanto substância desse mesmo valor. Recuperando a teoria do fetichismo de Marx, a NCV empreende uma crítica radical do “sistema produtor de mercadorias da modernidade”, evidenciando a necessidade de abolir as suas categorias de base que tendem a ser ontologizadas, inclusive pelos autodenominados marxistas: valor, mercadoria, trabalho, Estado, mercado, etc. Se as sociedades pré-capitalistas eram marcadas por relações de dominação direta no contexto de um fetichismo de natureza religiosa, o capitalismo é caracterizado por uma dominação impessoal, quasi-objetiva (Postone, 2003 [1993]). Estamos na presença de uma “segunda natureza” na qual as relações sociais se autonomizam e se erguem como um poder estranho.

8A convergência da teoria do Gorz tardio com aquela da Nova Crítica do Valor (NCV) é reconhecida por Anselm Jappe (Jappe, 2013), um dos principais autores desta corrente, e por Françoise Gollain (Fourel & Gollain, 2013), amiga íntima e uma das principais estudiosas do pensamento de Gorz. Jappe (2013) destaca os seguintes aspetos comuns entre ambos os corpos teóricos: i) entendimento do trabalho como uma categoria historicamente específica; ii) identificação da crise do trabalho e, por conseguinte, da crise do capitalismo; iii) o entendimento da explosão do “capital fictício” como um sintoma e não como a causa da crise económica; iv) A superação da crise do trabalho requer a superação do próprio trabalho – no sentido hegeliano de aufhebung – assim como a abolição do valor (económico) produzido pelo trabalho e da forma-mercadoria; v) crítica da noção de um sujeito (coletivo) revolucionário apriorístico (proletariado, “multidão”, etc.), i.e., da noção paradoxal de um “sujeito objetivo”; vi) conceção da dominação vigente no capitalismo como uma dominação impessoal.

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