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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.218 Lisboa mar. 2016

 

RECENSÃO

MACKAY, Ruth

The Baker Who Pretended to Be King of Portugal,

Chicago, University of Chicago Press, 2012, 328 pp.

ISBN 9780226501086

 

André Belo*

*Universidade de Rennes 2, Place du Recteur Henri Le Moal, CS 24307 — 35043 Rennes Cedex, France. E-mail: andre.belo@uhb.fr

 

Eis um bom livro de história cultural, dedicado ao episódio do falso rei D. Sebastião que ocorreu em Castela em 1594, também conhecido como o do “pasteleiro de Madrigal”1. A autora utiliza com pertinência e imaginação uma grande variedade de fontes, sobretudo de arquivos espanhóis, mas também portugueses e norte-americanos, e consegue ligar numa intriga convincente vários fios temáticos. Em lugar central, como não podia deixar de ser, encontramos o processo-crime conservado no Arquivo de Simancas relativo ao caso de lesa-majestade e usurpação de identidade que foi descoberto em torno do convento de monjas agostinhas de Madrigal de Altas Torres (região de Ávila); mas o que faz a riqueza do estudo é a forma como a história político-judicial, já contada por diferentes autores, se articula com uma reconstituição detalhada dos percursos individuais e sociais dos protagonistas da história, que por sua vez entroncam no complexo ambiente de dissidência política da monarquia hispânica após a integração nesta do reino de Portugal. A isto se junta uma bibliografia ampla e informada, com referências úteis para leitores com diferentes níveis de informação e interesse no tema. Um ou outro erro factual, como dizer que D. António, Prior do Crato, era filho do duque de ­Bragança (n. 90, p. 240), e alguma tendência “psicologizante”, em especial nas páginas sobre a educação do jovem D. Sebastião (pp. 13-14), não afetam o valor inegável deste trabalho.

Os capítulos da obra apresentam-se com uma dupla articulação entre um referente geográfico e as figuras centrais da história, desde D. Sebastião e a sua malograda jornada a Marrocos até à prima que este nunca conheceu, Ana de Áustria, monja num convento na localidade de Madrigal de Altas Torres. A construção da narrativa leva-nos dos episódios históricos mais conhecidos, relevantes para a compreensão do processo, à micro-intriga político-judicial. Progressivamente, e seguindo a cronologia que leva da batalha de 1578 à sucessão da coroa portuguesa e à resistência antonista, a autora vai introduzindo os principais proganistas e uma série de atores secundários, num processo de colocação em intriga – e já veremos que não é por acaso – que faz pensar no dispositivo teatral. Ao chegar ao fim do livro, o leitor ficou a conhecer em detalhe – ou pôde relembrar, se já o conhecia – o percurso, as motivações aparentes, as declarações feitas aos juízes e o funesto fim que tiveram os dois principais condenados, executados na praça pública em Madrigal: o soldado, viajante e pasteleiro Gabriel Espinosa, e o frade agostinho português Miguel dos Santos. Do mesmo modo, o leitor acompanhou a sorte da figura feminina deste triângulo conspirativo, a referida Ana de Áustria, filha de D. Juan de Áustria e sobrinha do rei Filipe II. Também ela foi condenada, embora com circunstâncias muito atenuantes, a alguns anos de reclusão estrita e silêncio.

Mas conspiração de quem exatamente, e para quê? Mackay não dá uma resposta cabal a esta pergunta – e é certamente muito difícil fazê-lo. No essencial, o livro retoma a tese de que a conspiração terá sido conduzida por frei Miguel dos Santos, que fora nomeado vigário do referido convento e era um antigo partidário do Prior do Crato. O seu plano teria consistido em fazer aclamar Gabriel ­Espinosa como o rei português D. ­Sebastião que teria regressado vivo da batalha de Alcácer-Quibir, para depois o desmascarar (e matar) e substituir pelo pretendente português. Pelo caminho, os dois homens teriam ludibriado a sobrinha do rei, com promessas de casamento com o “rei” retornado. No entanto, a extensão efetiva da conjura resulta pouco clara do processo, pois as declarações do frade, aliás contraditórias entre si, não parecem recobrir uma rede real de conspiradores antonistas. Ou seja, apesar dos evidentes receios das autoridades políticas e judiciais de Castela, o episódio não parece ter tido um alcance de resistência política portuguesa ao governo filipino. A própria autora não considera este um exemplo de sebastianismo (p. 58), ao contrário dos dois episódios anteriores sucedidos em Portugal uma década antes, e também do caso do falso rei Sebastião que maior repercussão política teve, poucos anos depois deste, o do calabrês Marco Tullio Catizone.

Não é este o lado menos fascinante desta história: um conjunto de figuras socialmente diversificadas agindo no espaço fechado de um convento de freiras – mas afinal não tão fechado, pois as freiras falavam entre si e, através das gradas, passavam notícias à comunidade local –, alimentando um misterioso plano em que, através da dissimulação de identidades, se propaga uma ilusão de ascensão social (o pasteleiro que seria rei, o frade que chegaria a papa, a freira de sangue real que se tornaria, enfim, rainha), a qual parece sobrepôr-se ao alcance prático da empresa. Encontramos aqui, a meu ver, um primeiro elemento inovador do trabalho de Mackay: a importância que, na sua interpretação das fontes judiciais e narrativas, assumem as questões relacionadas com a identidade social, assumida e reconhecida coletivamente a partir de determinados indicadores de um status (como a roupa, os objetos, os gestos, a linguagem), e também a importância das formas de dissimulação dessa mesma identidade. A investigação judicial, aliás, foi desencadeada porque Gabriel Espinosa, antigo soldado, pasteleiro do convento de Madrigal, exibiu durante semanas uma dissonância flagrante entre a roupa plebeia que vestia e as ricas jóias que trazia, para além dos discursos sobre reis que fazia. Na sentença final, o facto de Espinosa ser considerado um homem de baixa extração foi agravante da sua condenação como usurpador de ­identidade régia. De um modo geral, a intriga reconstituída por Mackay é povoada por uma “multidão de pessoas disfarçadas” (p. 118), ocultando identidades ou fingindo outras: encobertos em África, como D. António ao escapar do cativeiro, viajantes incógnitos portugueses (supostamente) de visita ao mosteiro, um irmão (suposto) de Ana de Áustria, os (supostamente vivos) D. Sebastião e príncipe D. Carlos, e por fim o referido Espinosa, nome incerto para um pasteleiro de ofício também não totalmente reconhecido pelas testemunhas ouvidas pelos juízes. O trabalho de Mackay sugere-nos que, ao lado dos seus fortes mecanismos de controlo social, a sociedade da alta idade moderna era atravessada por uma forte instabilidade identitária quer dos indivíduos na relação com as autoridades civis e eclesiásticas, quer nas relações entre pessoas. Nesta instabilidade, a ausência de meios sistemáticos de controlo da identidade individual tinha evidentemente um papel, mas também o tinha a proliferação de narrativas sobre eventos e indivíduos, nomeadamente por via das notícias e das histórias, certas ou incertas, em circulação.

O segundo aspeto em que o trabalho de Ruth Mackay me parece inovar é precisamente no papel que atribui à circulação de notícias e rumores no desenvolvimento de expectativas sociais e políticas como as que se manifestam nos casos dos falsos reis. Para a autora, as notícias são um dos nós que permite a articulação entre as intrigas político-diplomáticas contadas habitualmente pelos historiadores e as narrativas que circulavam socialmente. Entre essas narrativas podem-se incluir as profecias e mitos de alcance político como os do “encoberto”, de dimensão peninsular, mas também uma série de outras histórias em circulação, oriundas dos romances de cavalaria ou das crónicas, do palco das comédias ou dos rumores noticiosos. Numa das páginas sugestivas do livro, a autora especula sobre a possibilidade de frei Miguel dos Santos e Gabriel ­Espinosa se terem encontrado em Madrid no final da década de 1580 e ali ter nascido uma cumplicidade ou um plano comum. A razão por que tal especulação parece válida, mesmo não podendo ser confirmada diretamente pelas fontes, é porque ela se encontra ao serviço de uma reflexão da autora sobre os locais de encontro na corte castelhana da época, onde se processava a troca e o comentário das notícias.

A obra de Mackay presta-se também a uma reflexão sobre as fronteiras porosas entre história e literatura. O episódio do falso D. Sebastião de Madrigal teve fortuna literária em escritores do século XIX. A dimensão romanesca desta intriga – com os seus contrastes sociais, crenças quase alucinadas e desenlaces dramáticos – parece impôr-se à imaginação do leitor, mesmo quando ela é apresentada de um ponto de vista histórico, como é o caso. Ruth Mackay, sendo historiadora – esta é a sua terceira monografia sobre temas de história social e cultural espanhola2 –, revela consciência disso e alerta, na sua introdução, para a tentação de “pintar esta conspiração e os seus atores em tons cómicos”, o que resultaria numa forma de “história como entretenimento” (p. xxi). Por outro lado, Mackay é também escritora, sendo isso uma mais-valia para o leitor. Há porém vários elementos do livro e do texto que acabam por nos conduzir, quase inevitavelmente, para uma construção da história de Madrigal em tons de “tragicomédia”. Para além da ilustração da capa e do título – que envolvem o texto de uma aura de romance histórico com um travo de exotismo –, Mackay dá-nos no início da obra uma lista das personagens (characters) que são citadas ao longo do texto, para permitir ao leitor uma mais fácil identificação, mas que, sobretudo, fazem pensar numa apresentação das personagens de edição teatral. Mais ainda, a indefinição entre géneros ficcionais e não ficcionais faz parte da tese da própria obra, propondo a autora um paralelo entre as estruturas narrativas das histórias que circularam sobre o episódio do falso rei de Madrigal e a dos textos legais e políticos que se referiram ao caso. A autora afirma, nomeadamente, a grande proximidade entre a estrutura narrativa da “novela bizantina” da época e o padrão narrativo dos acontecimentos de Madrigal (p. 142). Tal contaminação seria característica de uma época em que “distinguir o verdadeiro do falso se tornou uma obsessão, [em que] os escritores debatiam a diferença entre a história e a fábula, em que as mensagens eram frequentemente falsas, as notícias não eram de confiança, e os palcos eram habitados por personagens que vestiam roupas que não eram as suas, em que reis se faziam passar por plebeus e plebeus diziam ser reis” (p. 140).

Ora, se a contaminação narrativa entre diferentes textos e fontes é uma questão do maior interesse para percebermos esta história, talvez tivesse sido útil insistir na diferença de situação entre histórias que se contavam num palco, por exemplo, e histórias que se contavam sob coação perante um juiz, entre identidades disfarçadas no teatro para efeitos cómicos ou moralizantes, e identidades usurpadas ao nível das relações entre as pessoas. Isto para se atenuar um pouco o efeito tragicomédia do “Siglo de Oro” ou “romance histórico oitocentista”, risco de que a autora, como referi, foi a primeira a aperceber-se, e que não retira a importância deste livro.

 

NOTAS

1 Existe tradução portuguesa desta obra: O Pasteleiro que queria ser Rei de Portugal, Lisboa, Presença, 2013. A presente recensão foi feita a partir da edição original em inglês.

2 Obras anteriores: The Limits of Royal Authority: Resistance and Obedience in Seventeenth-Century Castille, Cambridge, Cambridge University Press, 1999. “Lazy, Improvident People”: Myth and Reality in the Writing of Spanish History, Ithaca e Londres, Cornell University Press, 2006.

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