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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.218 Lisboa mar. 2016

 

ARTIGO

Esboço de uma sociologia com desastres: o caso da tragédia de Entre-os-Rios

Proposal of a sociology with disasters: the Entre-os-Rios Tragedy

 

Pedro Araújo*

*Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Aparatdo 3087 - 3000-995 Coimbra, Portugal. E-mail: paraujo@ces.uc.pt

 

RESUMO

 

A partir da análise sociológica do colapso da Ponte Hintze Ribeiro, neste artigo salientam-se as potencialidades analíticas de uma sociologia com desastres, que se caracteriza por atender à interação entre gestão política da crise induzida pelo desastre, mediatização do acontecimento, e poder interpelativo do sofrimento e da morte. A produção discricionária de exceção amplia a distância entre Estado e cidadãos, reforçando o poder do primeiro ao mesmo tempo que acentua o desapossamento de poder dos segundos.

PALAVRAS-CHAVE: Estado; desastres; crises políticas; práticas de governação.

 

ABSTRACT

 

Based on the collapse of Hintze Ribeiro’s bridge in Portugal this article highlights the analytic possibilities of a sociology with disasters. This sociology takes into account interaction between the political management of crisis induced by the disaster, the event mediatisation and the interpellative power of suffering and death. The discretionary production of exception amplifies the distance between the state and the citizens, reforming the power of the first and augmenting the dis-power of the left.

KEYWORDS: State; disasters; political crisis; governance practice.

 

“Lire, c’est penser avec d’autres dans leurs textes,

pour autant que leurs textes ne se referment pas sur eux-mêmes […]

mais conduisent le lecteur à basculer dans

un autre champ de réflexion,

c’est -à-dire à poursuivre son questionnement dans un autre texte.”

Bruno Karsenti, D’une philosophie à l’autre.
Les sciences sociales et la politique des modernes (2013).

 

INTRODUÇÃO

 

No dia 4 de março de 2001, às 21 horas e 10 minutos, o desabamento do quarto pilar da Ponte Hintze Ribeiro, em Castelo de Paiva, provoca a queda parcial da estrutura do tabuleiro da ponte. Um autocarro, com 53 pessoas a bordo, e três viaturas ligeiras, com seis ocupantes, são atirados para as águas frias do rio Douro. Cinquenta e nove pessoas perdem a vida.1 Na sequência da fração de segundos necessária à perpetuação do desastre, Castelo de Paiva passa de uma pequena vila desconhecida a palco de uma intensa e prolongada operação mediática que deixará Portugal cativo perante as operações de busca e resgate e os sobressaltos políticos. Cativo perante a tragédia televisiva (Torres, 2006, p. 23).

A análise sociológica da tragédia de Entre-os-Rios aqui desenvolvida parte de duas interrogações basilares prévias: a sociologia dos desastres esgotar-se-á numa postura analítica funcionalista, pioneira no campo, resolvida em ver nas ações recíprocas dos intervenientes nos desastres uma sempre complexa tentativa de compreender o que esteve na origem da falência dos sistemas e/ou de restabelecer o equilíbrio dos sistemas afetados pelo acontecimento? Não será necessário, como insiste Robert Stallings (2006), introduzir mais sociologia na análise dos desastres? A resposta à primeira pergunta é, evidentemente, negativa. A resposta à segunda é, evidentemente, positiva. Neste artigo, não procurarei refazer a longa história da sociologia dos desastres mas, antes, inspirando-me dos trabalhos de J. Langumier e S. Revet (2011) explicitar uma forma particular de fazer sociologia com um desastre. Em linhas muitos gerais, J. Langumier e S. Revet avançam com dois argumentos muitos pertinentes para uma sociologia com desastres: que se atenda aos quotidianos locais destabilizados pelos acontecimentos extremos e que se atenda às lógicas de ação (locais, políticas, institucionais, etc.) que estes desencadeiam. Por outras palavras, que se atenda ao caráter fluido, dinâmico e complexo dos acontecimentos extraordinários (Wagner-Pacifici, 2010). Não importa, pois, saber se a queda parcial da Ponte Hintze Ribeiro pode ou não ser canonicamente considerada um desastre (Quarantelli, 1987), interessa, outrossim, partir da sua real ocorrência para atender aos diversos processos que desencadeou. Na sequência de um determinado acontecimento extraordinário, já nada será igual. O que se procura deslindar nessas palavras graves é, precisamente, em que sentido já nada será igual, quais os atores e através de que processos o acontecimento extraordinário foi e continua a ser mobilizado para a mudança, mas igualmente as razões subjacentes ao esgotamento da capacidade de interpelação do acontecimento.

Neste artigo, partindo do caso da queda parcial da Ponte Hintze Ribeiro, traçarei as grandes linhas daquilo que denomino por uma sociologia com desastres, assinalando os seus elementos distintivos e as suas potencialidades teóricas para, mais do que explicar as razões político-administrativas que estiveram na origem do desastre, 1) identificar e caracterizar a prática de governação de um território e de uma população afetados por um dado acontecimento extraordinário, ou seja, a resposta político-administrativa a uma crise induzida por um desastre e para 2) salientar as distintas materialidades decorrentes dessa prática no momento da urgência, bem como a longo prazo.

O primeiro elemento distintivo da sociologia com desastres consiste, pois, na inscrição do acontecimento num contínuo analítico longo que encontra correspondência na longa temporalidade do desastre. O recurso a um contínuo temporal longo restitui plasticidade ao acontecimento, restitui-lhe desassossego (restlessness), ideia à qual recorre Robin Wagner-Pacifici (2010, p. 1354) para dar conta do caráter fluído, dinâmico, complexo dos ­acontecimentos ­históricos, mas permite igualmente atender aos momentos em que os ­acontecimentos são votados à quietude, ou seja, em que perdem em capacidade e em intensidade de interpelação. Este aspeto remete para dois outros elementos distintivos que caracterizam a sociologia com desastres: a mediatização do acontecimento e o poder interpelativo do sofrimento e da morte, cuja intensidade e ação diferem igualmente ao longo do contínuo. As potencialidades analíticas da sociologia com desastres serão, deste modo, apreendidas a partir da interação num contínuo temporal longo entre gestão política da crise induzida pelo desastre, mediatização do acontecimento e poder interpelativo do sofrimento e da morte.

Para K. Tierney (2007, p.520), enquanto sociólogos devemos evitar limitar o estudo dos desastres aos problemas que são significativos primordialmente para as organizações e instituições responsáveis pela sua gestão, para o estender às questões que são centrais no campo da sociologia. É precisamente este conselho que tentarei seguir na análise da queda parcial da Hintze Ribeiro tendo por base uma sociologia com desastres.

 

OS DESASTRES COMO CRISES POLÍTICAS

 

Na análise de um dado desastre, o primeiro elemento a considerar é o acontecimento em si, o facto em bruto, neste caso o colapso parcial de uma estrutura estatal, do qual resultaram 59 vítimas mortais. No final das longas e duras operações de busca e resgate realizadas pela Marinha Portuguesa — transmitidas à exaustão e em direto pelas televisões nacionais — trinte e seis corpos ficarão por encontrar. O extraordinário na queda da Ponte Hintze Ribeiro decorre deste número anormalmente elevado de vítimas mortais resultantes, à data, do maior acidente coletivo em Portugal. São as vítimas e os corpos ausentes que dão um especial significado à P onte Hintze Ribeiro e à sua esgotada fadiga; que tornam as causas do colapso parcial da ponte num tema disputado; que amplificam a crise política; que obrigam o Governo a mobilizar-se; que geram um consenso nacional e local em torno das muito justas medidas de reparação e de compensação a outorgar ao território e aos familiares das vítimas. Um consenso que, mesmo se volátil a nível local, servirá de base ao XIV Governo Constitucional (1999-2002), liderado por António Guterres (PS), para produzir exceção. É aqui que entra a gestão política das crises.

Perspetivado o colapso parcial da ponte como encetando uma crise política, diversas possibilidades analíticas se tornam possíveis. De uma vasta literatura sobre a temática das crises e da gestão política de crises considero muito pertinentes os quadros teóricos propostos, por um lado, por alguns dos representantes da escola de Leiden, Arjen Boin, Allan McConnel e Paul ‘t Hart (2008a; 2008b) em Governing after Crisis, e, por outro, na incisiva análise de Thomas A. Birkland (2006) em Lessons of Disaster. Enquanto em Boin et al. o enfoque recai sobre as dimensões políticas e estratégicas da gestão de crises, a análise de Birkland atenta não somente às questões que saltam para a agenda pública na sequência de uma crise, mas, principalmente, para o alcance efetivo das reformas e mudanças políticas na sequência de um desastre ou de uma crise induzida por um desastre. Conjuntamente, os contributos de Arjen Boin et al. e de Thomas Birkland permitem olhar, por um lado, para a resposta governamental à crise e para o processo de politização da crise e, por outro, para as efetivas alterações desencadeadas pelo desastre.

Arjen Boin et al. (2008a; 2008b) partem da constatação de que, no conjunto da literatura contemporânea dedicada à gestão de crises, as dimensões simbólica e política têm recebido pouca atenção, pelo que, tendo por base um conjunto de crises, propõem-se elaborar um quadro analítico que possa ser utilizado para compreender a natureza e o impacto diferenciado, principalmente eleitoral, da gestão de crises políticas. Diferentemente de Boin et al. o objetivo da sociologia com desastres não é o de analisar as consequências de diferentes tipos de crises e de modos de gestão de crises nas atitudes eleitorais pós-crise, mas antes de explorar os elementos que podem interferir na gestão política de uma crise induzida por um desastre, influenciando-a ao mesmo tempo que procuram definir os seus contornos e as direções que esta é passível de assumir no imediato e a mais longo prazo. É neste sentido que se atenderá à mediatização do acontecimento, relativizada no modelo de Boin et al., e ao poder interpelativo do sofrimento e da morte, completamente ausente do referido modelo.2

 

PROCESSO DE RESPONSABILIZAÇÃO E PROCESSO DE APRENDIZAGEM

 

Tal como concebida por Boin et al. (2008a; 2008b), a análise da gestão política das crises remete para a ação dos governos em função na altura da sua ocorrência para administrar/gerir os seus impactos políticos e sociais, uma ação que passa, obrigatoriamente, por fornecer explicações para a origem da crise e por apontar lições para o futuro, dois processos que constituem a base daquilo a que Boin et al. se referem como a politização da crise.3A politização da crise é, assim, entendida como a luta pela interpretação dominante das causas e consequências da crise e desenvolve-se através de dois processos cuja interação será decisiva para os destinos políticos e administrativos individuais, por um lado, e por outro para o grau de mudança a verificar-se nas instituições e políticas: o processo de responsabilização (accountability) e o processo de aprendizagem (learning). Enquanto o processo de responsabilização olha para trás, incide na performance dos indivíduos, e afeta os destinos individuais (carreiras políticas e administrativas), o processo de aprendizagem olha para a frente, incide na performance das estruturas, e afeta as políticas públicas e as instituições. O contributo de T. Birkland afigura-se aqui fundamental para determinar quais os domínios políticos e administrativos sobre os quais incide o processo de aprendizagem e de que modo se torna possível avaliar a sua concretização.

Em consequência do processo de responsabilização, Boin et al. (2008a, p. 13) identificam três tipos-ideais de resultados possíveis para os líderes políticos e administrativos: 1) o reforço da elite (elite reinvigoration); 2) o impacto negativo na elite (elite damage); e 3) os casos em que a elite sai ilesa ou é inatingida (elite escape). O meu enfoque é, todavia, distinto. Os desastres representam, na esteira de W. Freudenburg (1993), momentos em que as instituições – nomeadamente as instituições governamentais responsáveis por garantirem a segurança de pessoas e bens – são postas à prova, podendo determinados acontecimentos conduzir à quebra de expectativas ou mesmo à rutura de confiança nessas instituições e, consequentemente ser portadores de um impulso reformista. Deste modo, o enfoque recai primordialmente sobre o processo de aprendizagem, ou seja, sobre as lições para o futuro. Na sequência de um desastre, os líderes políticos e administrativos ficam, porém, divididos pela tensão entre o anúncio de reformas políticas e alterações institucionais e a necessidade de garantir que a crise teve origem, de facto, num acontecimento que escapa à rotina. Embora sempre acompanhados de uma retórica de mudança, os impactos efetivos do processo de aprendizagem serão variáveis na sua intensidade e, mais do que isso, na sua longevidade: poderão pautar-se exclusivamente por gestos simbólicos inconsequentes, muitas vezes estimulados pelo frenesim mediático e pela necessidade de “fazer alguma coisa”, conduzir a mudanças pontuais, ou levar a alterações radicais.

Inspirados por um conjunto de tipologias que desagregam as alterações subsequentes às crises em diversos graus, Boin et al. (2008a, p. 16) identificam três categorias de efeitos do processo de aprendizagem subsequente a crises nas políticas e instituições: 1) o afinamento ou ajustamento (fine tuning); 2) a reforma (policy reform); e 3) a alteração paradigmática (paradigm shift). A primeira categoria corresponde ao nível mais elementar de alterações, com adaptações pontuais nas políticas, instituições e práticas. Plasmando em menor ou maior grau a retórica de mudança induzida pela crise, o importante é que a legitimidade de uma qualquer organização ou governo se torna mais vulnerável se não mostrar abertura para mudar na sequência de uma crise (Boin et al., 2008b, p. 295). A segunda categoria implica alterações de natureza mais substancial nos princípios orientadores das políticas e novos valores institucionais e tende a verificar-se apenas quando a estratégia de ajustamento ou afinamento se revela politicamente insuficiente (Boin et al., 2008b, p. 296). Finalmente, a terceira categoria, mais rara, corresponde a alterações radicais das políticas e instituições ou mesmo a alterações radicais de aspetos fundamentais do sistema político e dos partidos políticos.

Embora as categorias de Boin et al. (2008a; 2008b) sejam úteis enquanto tipo-ideais, T. Birkland (2006) introduz, uma vez mais, um aspeto fundamental para aferir da materialização das alterações nas políticas e nas instituições: a legislação. Nesse sentido, um desastre pode efetivamente funcionar como um catalisador para a crise política e desencadear, consequentemente, o processo de aprendizagem. O processo de aprendizagem pode, por sua vez, plasmar-se em alterações político-institucionais concretas que podem ser observadas na legislação (event-related policy change) (Birkland, 2006, p. 2).

Inspirando-me em Birkland, no âmbito de uma sociologia com desastres, falarei em alterações legislativas relacionadas com o evento para assinalar um aspeto que me parece relevante para a identificação e caracterização da prática de governação e para a apreensão dos elementos suscetíveis de interferir na sua definição e orientações: o recurso discricionário por parte dos governos ao poder legislativo na gestão política de uma crise induzida por um desastre. Esta ideia implica que se estabeleça uma distinção entre dois tipos-ideais de alterações legislativas: às primeiras, do tempo da urgência, denomino por reformas legislativas de exceção relacionadas com o evento ou legislação de exceção e, às segundas, de longo prazo, de reformas legislativas relacionadas com o evento ou legislação de reforma.

Em virtude da crise, o Governo torna-se num campo concreto, situado, e inscrito numa temporalidade definida. Uma temporalidade marcada por um acontecimento concreto com o qual representantes políticos e administrativos concretos têm de lidar. Talvez, então, como refere P. Lagadec, citando C. Bell (1978 , p. 18), o próprio termo “gestão” não seja o mais adequado. A palavra gestão implica, de facto, uma atividade racional, desapaixonada, marcada pelo cálculo, quando na realidade a gestão de crises assenta em características como a improvisação, a pressão dos tempos e dos acontecimentos, a ambiguidade (Bell apud Lagadec, 1991, p. 18). O que dizer, então, das crises que têm origem em desastres?

O argumento central é o de que as crises políticas induzidas por um desastre constituem momentos durante os quais os representantes políticos e administrativos passam a existir para além das funções simbólicas, burocráticas e administrativas que desempenham, ou seja, que é porque confrontados com um acontecimento extraordinário que provoca uma disrupção governativa que governos e instituições se veem impedidos de governar, nas palavras de Nietzsche, como os mais frios de todos os monstros frios (Nietzsche, 1985 [1892], p. 55).

As crises políticas induzidas por um desastre podem, desta forma, representar verdadeiras provas de humanidade. Subjacente a este argumento encontram-se as ideias de que, primeiro, a ação governamental e institucional não se pauta exclusivamente por uma racionalidade burocrática e, segundo, que governos e instituições não são impermeáveis ao contexto moral gerado pelo acontecimento. Assim, apesar de fundamentais para explicitar a gestão política de uma crise e, assim, identificar e caracterizar a prática de governação avançada, os contributos de Boin et al. e de Birkland podem ser enriquecidos se se recorrer a duas dimensões da sociologia com desastres — a mediatização do acontecimento e o poder interpelativo do sofrimento e da morte — no sentido de identificar os elementos capazes de interferir na gestão política de uma crise induzida por um desastre (atores, argumentos, lógicas de mobilização e de ação, etc.), ou seja, de influenciar a prática de governação nos seus contornos tanto quanto nas suas orientações.

 

POLITIZAÇÃO DO SOFRIMENTO E DA MORTE: MEDIATIZAÇÃO DOS ACONTECIMENTOS EXTRAORDINÁRIOS E PODER INTERPELATIVO DO SOFRIMENTO E DA MORTE

 

A comunicação social desempenha um papel fundamental na construção (Altheide, 2002; Bytzek, 2008) e na dinâmica de uma crise (Melo e Mendes, 2006), desde logo porque são o meio por excelência através do qual a politização da crise se torna pública, podendo fazer eco ou, pelo contrário, lançar dúvidas sobre os distintos enquadramentos da crise em competição e sobre os culpados ou responsáveis pelo acontecimento (Delicado et al., 2007; t’Hart, 2008; Scheufele, 1999; Schonewille, 2010). A comunicação social desempenha, todavia, um outro papel igualmente importante que deriva da exposição do sofrimento e da morte através da apropriação mediática das suas imagens e das suas palavras e, principalmente, do efeito emocional da comunicação social (Charaudeau, 2002), ou seja, das emoções que imagens e palavras são suscetíveis de desencadear.4

Porém, como é fácil constatar no nosso quotidiano, o sofrimento e a morte não são necessariamente inaceitáveis, não apelam necessariamente a uma obrigação de agir e, quando mobilizam a ação, essa não é necessariamente inequívoca (Boltanski, 2007). O que teve, então, a tragédia de Entre-os-Rios de diferente para mobilizar como mobilizou a comunicação social?5 Poderia destacar aspetos como o facto de envolver uma estrutura pública, o caráter inédito do desastre, as dificuldades nas operações de busca e resgate, e a cristalização da opinião pública numa definição da injustiça, favorável ao território e à população afetados. Como tive ocasião de referir, o extraordinário na queda da Hintze Ribeiro decorreu, principalmente, do número anormalmente elevado de vítimas mortais resultantes do, então, maior acidente coletivo em Portugal. Foram as imagens e as palavras das vítimas e os corpos ausentes que obrigaram o Governo a mobilizar-se de corpo e alma, ou seja, foi a forte mediatização do acontecimento que desalojou o Governo da esfera etérea a partir da qual – supostamente, diz bem D. Fassin (2013a, p. 18) – opera de maneira imparcial, obrigando-o a humanizar-se.

O meu argumento é, assim, o de que em Entre-os-Rios, o principal catalisador para a ação governamental não foi a disputada e indubitável negligência político-institucional, mas principalmente a exposição mediática do sofrimento e da morte. A difusão mediática das imagens e das palavras do sofrimento e da morte compeliu os representantes políticos e institucionais a ostentar qualidades que contrariassem a ideia da pertença a instituições ­imparciais e desapaixonadas (Fassin, 2010; Fassin e Eideliman, 2012). Tornaram-se humanos que se compadecem do sofrimento de outros humanos, sendo a compaixão em grande parte devedora da apropriação mediática das imagens e das palavras do sofrimento e da morte e fundamental para a imposição de uma gramática de reação na qual emoções e valores representam uma parte importante. A mensagem ficou clara: à natureza excecional do acontecimento devia o Governo responder com exceção.

No quadro da sociologia com desastres, a comunicação social é considerada como capaz de gerar um consenso em torno da tradução crítica do sofrimento e da morte como uma injustiça e como algo inaceitável que exige uma ação (Boltanski, 2007) e, consequentemente, para a emergência de determinados sentimentos morais no espaço público que legitimam determinadas práticas políticas (Fassin, 2010, p. 7). Se a intensidade da interpelação de um dado acontecimento for, assim, suficientemente forte para mobilizar a comunicação social (e a opinião pública), os acontecimentos extraordinários podem perturbar a rotina da gestão corrente da coisa pública e, consequentemente, obrigar a um alinhamento do campo político, ou seja, a uma concentração da ação governamental com o objetivo de cercear o acontecimento. Nos momentos de exposição das suas fraquezas ou falências os governos devem mostrar-se mais fortes e revelar a sua força através de uma ação que, na sua concretização, faz efetivamente uso dos recursos estatais e públicos concentrados no Estado. Subjacente a este argumento encontra-se a distinção entre Governo e Estado, partindo-se da hipótese de que, no momento da urgência, o Governo corporaliza a gestão da crise induzida pelo desastre, valendo-se dos recursos públicos, materiais e simbólicos aos quais se associa o nome Estado (Bourdieu, 2012). Por sua vez, a longo prazo, o Estado incorpora alguns dos adquiridos do processo de aprendizagem decorrente da politização da crise, que passam a integrar o património de recursos públicos, materiais e simbólicos do próprio Estado.

As lágrimas dos paivenses não são, como sugere E.C. Torres (2001), politicamente incorretas, mas sim politicamente perturbadoras, e isso porque obrigam o político a afastar-se do seu quadro de funcionamento normal em relação a um território e a pessoas que, em tempos comuns, gravitariam longe da sua órbita. Na sequência do colapso da Ponte Hintze Ribeiro, os tempos são, porém, de desassossego. E as lágrimas do povo são politicamente perturbadoras porque evocam a possibilidade das vidas perdidas serem irrelevantes para o Estado, vidas que podiam ser sacrificadas, que, aparentemente, se encontravam fora da comunidade política, a mesma comunidade política na qual farão, agora, subitamente irrupção porque ausentes e porque mortas. São lágrimas politicamente perturbadoras, finalmente, porque evocam a possibilidade dessa súbita pertença à comunidade política se dever exclusivamente a um acontecimento extraordinário e de se restringir, por essa razão, ao tempo da urgência. O que aparece, pois, como perturbador, primeiro, não são as lágrimas em si, mas o facto de estas adquirirem capacidade ou empoderamento político precisamente por serem lágrimas. O que aparece como perturbador, em segundo lugar, é que, nas palavras de um entrevistado, “as tragédias têm um prazo, um prazo muito limitado” (Carlos Andrade, familiar de vítima e membro da direção da AFVTER, entrevista, 08-05-2012).6 Um prazo que não resiste aos ciclos eleitorais.

A politização do sofrimento resulta, deste modo, da interação entre mediatização do acontecimento e poder interpelativo do sofrimento e pode ser definida como um processo crítico que transporta determinados fragmentos de vidas feridas do espaço privado para o espaço público (Périlleux e Cultiaux, 2009, p. 11). No contexto das crises induzidas por desastres, a politização do sofrimento e da morte pode ser apreendida por duas vias:

1. Por via do impacto do sofrimento e da morte no político, que é relativo ao modo como, da mediatização do sofrimento e da morte, emergem determinados sentimentos de injustiça e determinados enquadramentos de injustiça impelindo à ação política oficial. A luta pelo enquadramento da tragédia de Entre-os-Rios e das lições a tirar do acontecimento é uma luta que se trava por via de palavras e de imagens e, consequentemente, por via das emoções que estas suscitam e dos valores aos quais estas apelam. Participando ativamente dessa luta, a comunicação social confere visibilidade a discursos e narrativas que se situam fora do enquadramento político, pericial ou judicial. Discursos e narrativas que não apenas fornecem interpretações alternativas ao acontecimento como revelam, na sua nudez, o sofrimento provocado pelo acontecimento, o drama humano do acontecimento, conferindo às emoções um caráter politicamente subversivo e um papel orientador da ação política visando à reparação.

2. Por via da apropriação do político pelo sofrimento e pela morte, que é relativa ao modo como sofrimento e morte se podem desprender da sua singularidade vivenciada (Kleinman, 1992), e assumir-se no espaço público como experiências coletivamente partilhadas que impelem à mobilização, à organização e à ação e que procuram, desta forma, influenciar a ação governamental.

O objetivo da análise das materialidades decorrentes da politização do sofrimento não é o de tomar como objetos o sofrimento e a morte em si mesmos, mas de salientar o modo como estes impactam o poder político e são objeto de apropriação por parte do território afetado e da população atingida para contrariarem as relações de poder entre um centro político indiferente e um território votado ao esquecimento. Não se trata, pois, de atender às consequências individuais do sofrimento e da morte – ou mesmo a algumas das suas noções conexas como a dor, o luto ou o trauma –, mas, sim, ao sofrimento e à morte que, virtualmente inacessíveis na sua espessura individual, transcendem o individual para se constituírem como bases para fundamentar e legitimar a exceção moral, política e jurídica e como bases para a mobilização e a ação.

A mediatização da tragédia de Entre-os-Rios – e, mesmo, a sua sobremediatização (Revault D’Allones, 2008, p. 92) – contribuiu grandemente para assegurar que, no tempo da urgência, os paivenses se tornassem gente real, diria A. Roy (2010), que passassem a existir fisicamente e, mais do que isso, politicamente, ampliando-se a sua singularidade humana e, nesse processo, anulando-se o desvalor da sua singularidade cidadã. A Ponte Hintze Ribeiro, na sua queda, a provocar o inverso do desapossamento de poder e a obrigar o Governo a adotar uma determinada prática de governação perante um próximo tornado demasiado próximo pela comunicação social, perante um humano tornado plenamente humano pelo sofrimento e pela morte.

Não se detendo na explanação das causas político-administrativas do desastre, nem se fixando exclusivamente na resposta governamental à crise política, a sociologia com desastres permite que se considerem os efeitos conjuntos, no imediato como a longo prazo, da mediatização do acontecimento e do poder interpelativo do sofrimento e da morte, não apenas na identificação e caracterização da prática de governação, mas principalmente na identificação e caracterização do efeitos concretos dos elementos que interferem na delineação e orientação dessa prática. Invertendo a metáfora de M. Pollak (1993, p. 166), a sociologia com desastres permite introduzir quente onde só sopra o frio .7

 

PRÁTICA DE GOVERNAÇÃO DE UM ACONTECIMENTO EXTRAORDINÁRIO: A TRAGÉDIA DE ENTRE-OS-RIOS

 

Na sequência da queda parcial da Ponte Hintze Ribeiro, instalou-se temporariamente uma espécie de regime do estado de sítio ou de emergência não formalmente ou tecnicamente declarado e que não colocou em causa o Estado de Direito. Adoto aqui a posição de D. Fassin (2010), que, refletindo sobre o estado de exceção a partir da Tragedia que ocorreu em 1999 na Venezuela, propõe que este seja contemporaneamente pensado como “uma condição matizada, e logo eufemizada, nas suas causas como nos seus efeitos” (Fassin, 2010, p. 238). Em Entre-os-Rios, estivemos perante uma descontinuidade radical, a exceção, que se produziu sobre o fundo de uma dinâmica contínua de ausência e de indiferença, esta última construída como uma insensibilidade histórica do centro político relativamente a um interior habitado por vidas precárias e vulneráveis. Uma precariedade e uma vulnerabilidade que a queda parcial da ponte tornaram duramente manifestas.

A urgência aparece, consequentemente, por um lado, como uma condição temporal e, por outro, como legitimadora de uma prática de governação que se pode definir como de expiação produto de um Governo que se pode classificar de exceção. Na sequência da queda parcial da Hintze Ribeiro, abre-se um parêntese politicamente consensual no contínuo de indiferença do centro relativamente ao território e à sua população e assiste-se à concentração do poder de decisão no chefe do Governo, António Guterres, com vista não à suspensão, mas à extensão, se não mesmo à criação, de direitos quer para o território e quer para os familiares das vítimas. Na definição e aplicação da resposta a uma situação local e particular, os representantes políticos não assumiram uma postura exclusivamente racional, constatando-se igualmente que, na receção dessa resposta, território e familiares das vítimas não assumiram uma postura exclusivamente passiva.

A forte mediatização do desastre favoreceu, de facto, o poder interpelativo do sofrimento e da morte, influenciando as orientações assumidas pela gestão política da crise e assegurando que esta última se desenrolasse nas fronteiras flexíveis e negociadas de um determinado enquadramento de injustiça. Saliente-se, pois, que nem o impacto do sofrimento e da morte no político nem a apropriação do político pelo sofrimento e pela morte são isentos de conflito, nem os seus níveis de intensidade perduram ao longo do contínuo temporal balizado pelo momento da urgência e o longo prazo. A título de exemplo, à apropriação do político por parte do, então, presidente da Câmara Municipal de Castelo de Paiva, Paulo Teixeira, opor-se-á uma apropriação concorrente por parte dos familiares das vítimas, o primeiro ancorando-se na ­compensação/reparação, perante a indiferença do Estado para com o território, e os segundos na verdade/responsabilização, perante a responsabilidade do Estado para com as vítimas. Em ambos os casos, as promessas assumidas pelo Governo de António Guterres não resistirão à inércia dos ciclos eleitorais pós-desastre.

Assim, durante a crise induzida pelo desastre, a resposta política liderada por António Guterres não se esgotou num processo de aprendizagem8 que se fez acompanhar de um processo de responsabilização política de baixa intensidade9 , mas igualmente em medidas excecionais. A resposta política incluiu, de facto, uma responsabilização moral e reparatória relativamente ao território e à população afetados pelo acontecimento extraordinário, ou seja, relativamente a Castelo de Paiva e aos familiares das vítimas da tragédia de Entre-os-Rios, residindo o ponto de ancoragem empírico para aferir dessas medidas na legislação de exceção. O exemplo acabado do imperativo moral que esteve na base da lógica expiatória patente na resposta governamental encontra-se, talvez, no processo de indemnização dos familiares das vítimas da tragédia de Entre-os-Rios. A iniciativa pelo processo indemnizatório dos familiares das vítimas deve-se, uma vez mais, ao primeiro-ministro António Guterres. Assumida a responsabilidade do Estado pelo acontecimento, é ao Governo que cabe oferecer reparação. Uma reparação excecional. É o valor da vida, valor supremo (Fassin, 2010, p. 320), que está em jogo, mas igualmente o valor do sofrimento e o valor da morte. Um sofrimento incomensurável e uma morte evitável que resultam do desperdício da vida pelo Estado de indiferença. A indemnização aos familiares das vítimas de Entre-os-Rios cumprirá uma dupla finalidade: reparar os danos causados pelo colapso parcial da Ponte de Entre-os-Rios e sancionar o Estado. Expiar e castigar. O caráter inovador – e, mesmo, algo inédito dos Critérios apresentados pelo Provedor de Justiça para indemnização dos danos causados pela derrocada da ponte de Entre-os-Rios – reside precisamente no facto de estas assumirem um cariz sancionatório ao invés de, como é regra geral, unicamente reparatório. Uma prova mais de humanidade.

O dinheiro do rio (Maria Figueira, familiar de vítima, entrevista, 09-05-2012), assim apelidado localmente, é um dinheiro sujo e não desejado. Justo, é certo, mas sujo e não desejado. O principal efeito das indemnizações é o de quebrar o frágil “círculo da compaixão” (Audi, 2008, p. 190) no centro do qual se encontravam os familiares das vítimas na sequência do desastre e de esvaziar os familiares das vítimas do capital de solidariedade local de que eram portadores. Por via das indemnizações, colapsa uma outra ponte: a ponte entre familiares das vítimas e comunidade local. Neste particular, os donativos angariados em nome e para os familiares das vítimas da tragédia de Entre-os-Rios talvez não tenham feito mais do que exacerbar esse efeito (TSF, 2001).

Existe, todavia, uma diferença essencial entre os donativos e as indemni­zações. Enquanto os donativos relevam de um gesto humano de solidariedade que se exerce à distância e que decorre da mediatização do sofrimento e da morte, as indemnizações relevam de um gesto burocrático – que se quer humano – que decorre do impacto do sofrimento e da morte no político. As indemnizações aparecem, a meu ver, como um simulacro de direito. Um direito que, traduzido num cheque, primeiro, circunscreve a responsabilidade do Governo de exceção pelo desastre ao momento da urgência, ao mesmo tempo que procura apagar a responsabilidade do Estado de indiferença pelo desastre. Um direito que, em segundo lugar, retira alguma da atenção mediática votada aos familiares das vítimas, restituindo o seu sofrimento e as suas mortes ao espaço privado e a sua vivência ao contexto social de pertença. Os desastres aparecem, pois, para além dos discursos humanitários de pendor universalista (Kroll-Smith, 2012), como momentos e espaços de tensão, senão mesmo de construção, da cidadania. Momentos e espaços que tornam inteligíveis a produção de sujeitos relativamente aos quais se estabelece uma relação de obrigação que, nalguns casos, falando com D. Fassin (2013b), excedem os direitos de cidadão.

No final, a queda parcial da Hintze Ribeiro saldou-se, para os familiares das vítimas, em direitos de exceção outorgados com base numa obrigação moral. Um gesto que torna inteligível a produção de sujeitos políticos hiperbolizados porque humanamente hipervalorizados pelo poder interpelativo do sofrimento e da morte.10

Em suma, o tempo da urgência, marcado por uma forte mediatização do acontecimento e pelos efeitos fortes do processo de politização do sofrimento e da morte, abriu espaço a uma prática de governação de expiação produto de um Governo de exceção. Um período que se pode classificar de desassossego do desastre. A longo prazo, esta prática tendeu a esgotar-se, mais por inércia do que por intenção, continuando o acontecimento extraordinário inteligível apenas nos resultados do processo de aprendizagem (o Sistema de Gestão de Obras de Arte, por exemplo), na normalização (a interrupção do extravasamentos ocorridos no tempo da urgência) e na indiferença (o retomar da gestão corrente da coisa pública). Classifico este período de quietude do desastre.

As potencialidades do modelo de análise construído com base nos contributos de A. Boin et al e de T. Birkland para a identificação e caracterização da prática de governação revelam, simultaneamente, as potencialidades teóricas da sociologia com desastres para ir para além desse modelo. De facto, apesar de tomar como ponto de partida a governação do acontecimento, ou seja, a gestão da crise política induzida pelo acontecimento, a sociologia com desastres pauta-se pela convocação de dois outros elementos – a mediatização do acontecimento e o poder interpelativo do sofrimento e da morte – considerados como desempenhando um papel fundamental, no imediato como a longo prazo, para os principais atores envolvidos no acontecimento: o Governo, o Estado, o território afetado e a população atingida.

A sociologia dos desastres caracteriza-se, assim, por um lado, por atender à influência concreta de três atores na gestão política das crises – a comunicação social, o território afetado e a população atingida – e, por outro, por inscrever o acontecimento num contínuo temporal longo balizado por três tempos abertos – o tempo anterior ao desastre, o tempo do durante o desastre (a urgência) e o tempo do quase-silêncio do pós-desastre (o longo prazo). O objetivo é o de, na interação entre gestão política da crise induzida pelo desastre, mediatização do acontecimento, e poder interpelativo do sofrimento e da morte, 1) identificar e caracterizar a prática de governação de um território e de uma população afetados por um acontecimento extraordinário dominante no momento da urgência; 2) identificar e caracterizar as influências recíprocas dos atores envolvidos na definição da prática de governação, 3) identificar e caracterizar as materialidades que esta prática assume no imediato e a longo prazo para os principias atores envolvidos; e 4) identificar e caracterizar as influências concretas dos atores envolvidos na definição dessas materialidades.

A inscrição, num primeiro momento, da queda parcial da Ponte Hintze Ribeiro num contínuo temporal amplo e balizado por dois tempos abertos (o tempo anterior ao desastre e o tempo do quase-silêncio do pós-desastre), forneceu a matéria para a apreensão da construção do esquecimento e da indiferença por parte do Estado em relação ao território e à população. O colapso da Hintze Ribeiro abriu, por sua vez, um terceiro tempo, o tempo do durante o desastre, circunscrito ao momento da urgência, e que se revelou particularmente apto para classificar e caracterizar a prática governação de expiação adotada pelo Governo de exceção e apreender as suas distintas materialidades para o Governo (demissões de exceção), o território (compromissos materiais de exceção) e os familiares das vítimas (direitos de exceção).

Este enfoque permitiu atender, por um lado, ao estilhaçamento do Estado de indiferença em relação ao território e à população através da apreensão empírica da entrada em força do Governo de exceção de António Guterres no concelho de Castelo de Paiva e nas vidas dos familiares das vítimas. Por outro lado, permitiu atender ao paulatino regresso do Estado de indiferença e às suas distintas materialidades para o Estado (aprendizagem), para o território (fim/incumprimento dos compromissos materiais de exceção) e para os familiares das vítimas (esgotamento dos direitos de exceção).

Considerado sob este ângulo, o alcance da agência quer do território, quer dos familiares das vítimas, revela-se restrito ao período da urgência (o desassossego do desastre), esgotando-se a sua capacidade de interpelação num movimento que acompanha a progressiva despolitização do acontecimento e a progressiva reentrada de território e familiares das vítimas no esquecimento por parte do Estado de indiferença (a quietude do desastre). E, porém, mais do que o estilhaçamento do Estado de indiferença e a entrada em força do Governo de exceção em Castelo de Paiva e nas vidas dos familiares das vítimas, o que a queda parcial da Hintze Ribeiro provocou verdadeiramente foi um encontro: o encontro do Estado com Castelo de Paiva e com os familiares das vítimas. Uma copresença forçada.

No tempo anterior à queda parcial da Hintze Ribeiro, a indiferença do Estado em relação ao território e à sua população era, em certa medida, igualmente válida enquanto indiferença do território e da sua população em relação ao Estado. É evidente que o Estado nunca é completamente ausente de um qualquer território. A forma como a sua presença se manifesta é que se altera radicalmente por via de um desastre. Basta pensar na presença assídua de representantes políticos e de membros do Governo em Castelo de Paiva. O encontro com figuras do Estado (presidente da República, primeiro-ministro, ministros, secretários de Estado, etc.) que circulam, em tempos comuns, em esferas longínquas e distintas.11

Significa isto que não é apenas o acontecimento que se pode qualificar de extraordinário, mas igualmente a presença avassaladora do território e da população para o Estado tanto quanto a presença avassaladora do Estado para o território e para a população. O acontecimento extraordinário perturba, em suma, uma indiferença recíproca, dando origem a um objeto raro de encontro. Um momento de anulação das distâncias e de suspensão episódica do contínuo de indiferença recíproca. Um momento de copresença do qual ninguém sai incólume. O Estado de indiferença, cessou de o ser – em Castelo de Paiva, pelo menos – no momento em que colapsou a Ponte Hintze Ribeiro. O Estado de indiferença cessou de o ser no momento em que a população de Castelo de Paiva – as suas vítimas, pelo menos – ganharam existência no face-a-face com representantes políticos e administrativos, ou seja, no momento em que ganharam existência na copresença. Um corpo político perante corpos mortos e ausentes que darão existência política a vidas nuas. À difusão mediática das imagens e das palavras do sofrimento e da morte não podiam os representantes político-administrativos responder com indiferença e insensibilidade, a mesma indiferença e insensibilidade que provocaram o colapso parcial de uma ponte do interior. A situação exigia que se tornassem permeáveis à emoção, aos afetos e aos valores, aos sentimentos morais emergentes do desastre, que se tornassem, em suma, mais humanos perante esta irrupção de humanidade. A situação exigia compaixão e expiação.

 

Finda uma das visitas de Jorge Sampaio, então presidente da República, a Castelo de Paiva, este dirige-se para o carro acompanhado de um cortejo de representantes do Governo, jornalistas, guarda-costas e populares. Chove torrencialmente e à desordem de microfones, câmaras e máquinas fotográficas juntam-se os guarda-chuvas negros, que quase submergem Jorge Sampaio. Um homem irrompe, então, pela pequena multidão e aborda o presidente da República. Câmaras e microfones orientam-se para ele:

 

Senhor presidente, faça alguma coisa pelas vítimas que estão lá em baixo, senhor presidente. Tire-as cá para fora, senhor presidente! Não nos vire as costas porque eu desloquei-me de muito longe para ver os meus familiares. Faça com que venham cá para cima o mais depress a possível, senhor presidente.

 

O homem irrompe em lágrimas. Jorge Sampaio detém-se e volta atrás, acompanhado nesse movimento pelas câmaras e pelos microfones, e abraça o homem que procura reconforto no ombro do presidente da República.

Porém, as tragédias têm um prazo. No tempo do quase-silêncio do pós-desastre, muito para além do encerramento político, de monumentos e memoriais, perdura nos familiares das vítimas uma memória sem culpados.12 Uma memória que, embora destituída da força interpeladora que possuía no tempo do desastre, continua a conferir desassossego ao acontecimento extraordinário e que, não encontrando eco, se revela incapaz de fazer política; um desassossego que se restringe penosamente ao local e, principalmente, aos familiares das vítimas. Um desassossego incapaz de romper com a quietude do desastre, incapaz de romper com a indiferença de um Estado que, mesmo na copresença se revela, afinal, sempre longe de mais. Nas palavras de uma entrevistada:

 

Por muito que nos doa, tudo passa e tudo se esquece. Entre-os-Rios foi muito falado, foi muito badalado mas vai ficar na memó ria apenas de quem perdeu lá algué m… De resto, já acabou… [Isabel Correia, familiar de ví tima, entrevista, 10-5-2012].

 

NOTA FINAL: AS LIÇÕES DA TRAGÉDIA DE ENTRE-OS-RIOS

 

A sociologia com desastres aqui proposta, por um lado, assenta exclusivamente num caso particular e, por outro, é profundamente devedora de uma prática sociológica que visa a combinação entre trabalho de terreno e construção concreta de teoria (Kaufmann, 2008). Mais do que uma instância de verificação de uma problemática preestabelecida, o terreno constitui, portanto, o ponto a partir do qual, em diálogo com outras leituras e maneiras de pensar, se empreende a construção teórica. Tal obriga a que se seja cauteloso nas eventuais extrapolações a retirar, ou seja, nas lições a reter da tragédia de Entre-os-Rios.

É indubitável que a relação entre a natureza do acontecimento, a media­tização do acontecimento e o poder interpelativo do sofrimento e da morte fez vacilar o Governo de António Guterres, obrigando-o a deitar mão ao poder do Estado para responder à crise política induzida pelo desastre. Recorrendo à terminologia de B. de S. Santos (1994, p. 61), no momento da urgência, o Governo viu-se obrigado a tornar-se externamente mais forte para responder à evidência das suas fragilidades internas. Uma força que, apesar de, na urgência, encontrar alguma ressonância no território e nos familiares das vítimas, não redundou, a longo prazo, em força equivalente para o território afetado e, menos ainda, para os familiares das vítimas.

A relação entre acontecimento extraordinário, mediatização do acontecimento, poder interpelativo do acontecimento e gestão política da crise resultou, no tempo da urgência, na emergência de um Governo de exceção que adotou uma prática de governação de expiação para lidar com o desastre. Esta prática de governação traduziu-se numa produção discricionária de exceção: demissões de exceção para o Governo, compromissos materiais de exceção para o território, e direitos de exceção para os familiares das vítimas. No momento da urgência, território e familiares das vítimas, tornaram-se, pelo viés do Governo de exceção, menos estranhos ao Estado, porque, momentaneamente, mais próximos deste e, principalmente, dos seus recursos.

A longo prazo , o fim/incumprimento dos compromissos materiais de exceção para o território e o esgotamento dos direitos de exceção para os familiares das vítimas dão conta do processo gradual de despolitização do sofrimento e da morte, do afastamento gradual do território e dos familiares em relação ao Estado, e da reposição gradual das posições de partida marcadas pela indiferença.

Em última análise, o Estado, através do processo de aprendizagem, revelou-se o grande ganhador na sequência do desastre, na medida em que viu reforçada a ordem político-institucional nos domínios cujas fragilidades a crise política induzida pelo desastre tornou manifestas. A renovada eficácia do Sistema de Gestão de Obras de Arte sendo, talvez, o exemplo mais claro, por um lado das alterações técnicas e políticas desencadeadas pelo desastre inteligível na legislação de reforma, alterações que resistem aos ciclos eleitorais precisamente pelo facto de passarem a estar inscritas na matriz jurídico-institucional e, por outro, do modo como o Estado incorpora algumas lições do desastre que passam a integrar o seu património de recursos (Araújo, 2014).

O que dizer do território e dos familiares das vítimas? De forma lapidar: a produção discricionária de exceção amplia a distância entre Estado e cidadãos, reforçando o poder do primeiro ao mesmo tempo que acentua o desapossamento de poder dos segundos. A interrogação de fundo que se abre como pista para futuras investigações é, pois, a de saber de que modo fixar como objeto de estudo o Estado – instituição que exigiu uma sua progressiva rigidez formal – quando este se revela, episodicamente, plástico e flexível nas suas práticas enquanto Governo? A sociologia com desastres aqui proposta procurou de algum modo responder a esta interrogação tomando como ponto de entrada para o Estado um episódio concreto: a tragédia de Entre-os-Rios. No final, o lugar absolutamente preponderante que acabou por ocupar o Governo de António Guterres para compreender a prática de governação de um território e de uma população afetados por um acontecimento extraordinário e tornar saliente a produção discricionária de exceção parece um claro indicador das acentuadas assimetrias de poder que existem na relação Estado-cidadãos, mesmo quando é questão de um tema tão sensível como é a questão das vítimas de um desastre.

A produção discricionária de exceção de que foram objeto o território e os familiares das vítimas não pode ser interpretada como um sinal de fraqueza na ação política associada, por um lado, aos efeitos potencialmente nocivos para a democracia da saturação do espaço público pela compaixão (Eliacheff e Larivière, 2006; Erner, 2006) e, por outro, à crescente necessidade dos representantes políticos fazerem prova de humanidade na gestão da coisa pública e na concessão de direitos (Audi, 2008; 2011; Revault D’Allones, 2008). Mas também não pode ser interpretada como um sinal de reforço da posição dos cidadãos face ao Estado ou, mesmo, de empoderamento das vítimas a longo prazo (Pantti e Wahl-Jorgensen, 2007, p. 22). A produção de exceção, tal como indica a sua classificação, decorre apenas mediante a força da interpelação, ou seja, depende de um conjunto de circunstâncias que nem sempre demandam uma demonstração de força e cujo alcance se revela restrito ao Governo de exceção que a produz.

Os efeitos potencialmente nocivos para a democracia não decorrem da maior ou menor presença da compaixão no espaço público e da maior ou menor sua influência na definição da ação política mas, sim, do recurso à exceção para lidar com questões pretensamente universais e aglutinadas à noção do Estado moderno, como, por exemplo, a cidadania, que colocam em causa a sua universalidade prática. O colapso da Hintze Ribeiro afigurou-se, nessa medida, como um exercício de controlo por parte do Estado mais do que como um exercício de cidadania, no qual a relação excecional entre Estado penitente-pessoas sofredoras se substituiu à relação que se queria normal entre Estado de Direito-cidadãos lesados.

A queda parcial da Ponte Hintze Ribeiro tem vindo progressivamente a converter-se num mero acontecimento local e a perder muito do desassossego de que inicialmente se revestiu e a ser agrilhoada, definitivamente, pelo que de inevitável e fatal reside no recurso mediático e popular à palavra “tragédia”. E é isto que provoca desassossego. Um desassossego que deriva de um, talvez, enraizado misto de fatalismo, paternalismo e indiferença de Estado, um misto que se constrói e se reforça, algo paradoxalmente, na base das exceções pontuais prodigalizadas pelo Estado, ou seja, por via da produção discricionária estatal de exceção. A produção discricionária de exceção amplia, em suma, a distância entre Estado e cidadãos, reforçando o poder do primeiro ao mesmo tempo que acentuando o desapossamento de poder dos segundos.

 

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Recebido a 25-09-2014. Aceite para publicação a 07-12-2015.

 

NOTAS

1O município estende-se desde os limites de Arouca até ao Rio Douro, entre os concelhos de Cinfães, Gondomar e Santa Maria da Feira, tem uma superfície de 109 quilómetros quadrados e uma população que ronda os 17 mil habitantes. A Ponte Hintze Ribeiro situava-se a cerca de quinhentos metros a jusante da confluência do rio Tâmega, afluente da margem direita do rio Douro, e unia as margens na aldeia de Entre-os-Rios (a norte, margem direita) e Castelo de Paiva (a sul, margem esquerda).

2A. Boin et al. (2008b, p.300) referem-se aos fatores situacionais (natureza e alcance da crise e respeitabilidade dos representantes políticos e das intuições) e circunstanciais (timing da crise e comunicação social) como podendo interferir no processo de politização da crise. A comunicação social assume, no entanto, uma centralidade – no comportamento eleitoral pós-crise tanto quanto na própria gestão política da crise – cuja sua inclusão num enunciado de fatores pode facilmente ocultar, principalmente ao nível da politização do sofrimento e da morte.

3As crises são, por definição, extraordinárias em natureza e magnitude, testam a resiliência de uma sociedade e expõem as falências dos seus líderes e instituições públicas. Ao desestabilizar a rotina governativa e ao provocar medo e incerteza relativamente à capacidade do Estado para garantir o direito à segurança dos cidadãos, tal como previsto no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, o colapso parcial da Hintze Ribeiro representou, efetivamente, um acontecimento disruptivo para a confiança nos representantes políticos e nas instituições públicas, abrindo espaço a uma crise política.

4Note-se que, a ser verdade que o efeito emocional da comunicação social desempenha um papel fundamental na intensidade de interpelação por parte do sofrimento e da morte, fá-lo através da construção de uma determinada imagem do território e da população afetados pelo acontecimento em questão. No caso dos desastres, esta construção pode, porém, não encontrar uma correspondência consensual com a imagem que território e população afetados possuíam e possuem de si mesmos antes, durante e após o desastre. Este desfasamento pode, por sua vez, ter por efeito marcar a reparação e a compensação do estigma da caridade (Fothergill, 2003), ou fomentar a emergência de comunidades corrosivas ao invés de terapêuticas (Adeola e Picou, 2012, p. 13).

5A cobertura jornalística da tragédia de Entre-os-Rios — em particular, a cobertura televisiva por parte da SIC/SIC Notícias e da TVI, em guerra aberta pelas audiências — suscitou, aliás, duras críticas por parte de diversos comentadores, analistas, jornalistas, atores políticos, etc., tendo mesmo conduzido à emissão de dois comunicados por parte da Alta Autoridade para a Comunicação Social (08-03-2001) e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (12-03-2001), ambos apelando a uma maior contenção por parte de jornalistas e responsáveis editoriais.

6Os nomes referidos nos excertos de entrevistas são todos fictícios.

7Na análise sociológica da tragédia de Entre-os-Rios recorri a três técnicas de investigação principais: 1) observatório de imprensa: Público (05-03-2001 a 06-03-2011) e Diário de Notícias (05-03-2001 a 06-03-2002); 2) análise documental: consulta dos relatórios oficiais diretamente relacionados com o desastre (comissões de inquérito ministerial e parlamentar) e documentos conexos (comunicados e notas de imprensa da Marinha Portuguesa, Procuradoria-Geral da República, Ordem dos Engenheiros, Alta Autoridade para a Comunicação Social e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas; informação recolhida em páginas oficiais da Câmara Municipal de Castelo de Paiva, Estradas de Portugal, Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos e Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os-Rios; publicações em diferentes Séries do Diário da Assembleia da República; e consulta do Inquérito n.º 44/2001 no Arquivo do Tribunal de Castelo de Paiva); e 3) Entrevistas em profundidade: foram realizadas 25 entrevistas em duas deslocações prolongadas a Castelo de Paiva.

8O processo de aprendizagem começa a tomar forma no tempo da urgência, estabilizando-se alguns dos seus elementos a longo prazo. O ponto de ancoragem empírico para aferir das medidas corretivas decorrentes do processo de aprendizagem reside na longevidade da legislação de reforma introduzida na ordem jurídico-institucional.

9 O Governo de António Guterres foi aquele que efetivamente se confrontou com a crise política, mas grande parte do trabalho de enquadramento político do desastre foi no sentido de estabelecer os seus precedentes a meados dos anos 1980 para, desta forma, não apenas distender no tempo a génese do desastre mas, fundamentalmente, para distender no tempo a responsabilidade política e técnica pelo desastre. A grande figura do processo de responsabilização é, sem dúvida, Jorge Coelho, então ministro do Equipamento Social, que se demite na própria madrugada do acontecimento. A demissão de Jorge Coelho, que retira muita da pressão política e da possibilidade de exploração política da crise a que o colapso parcial da Hintze Ribeiro poderia ter dado lugar, representa, acima de tudo, o sinal avant-coureur da tónica de expiação que virá a caracterizar a prática de governação liderada por António Guterres.

10Para o território, considere-se a seguinte legislação de exceção: i) as recomendações ao Governo contidas na Resolução da Assembleia da República n.º 28/2001, aprovada a 5 de março de 2001, que visam criar um programa especial de apoio aos municípios de Castelo de Paiva e Penafiel destinado a fazer face às despesas, encargos e prejuízos decorrentes da queda da Ponte Hintze Ribeiro; ii) a Lei n.º 4-A/2001, de 12 de março, que simplifica os mecanismos de adjudicação e de fiscalização prévia dos atos e contratos relativos às obras de reparação, construção e reconstrução da rede viária, pontes, viadutos e aquedutos nacionais e municipais dos concelhos de Castelo de Paiva e de Penafiel; iii) os Despachos Ministeriais números 7636/2001 e 7898/2001, de 13 de março, que atribuem aos familiares das vítimas e aos habitantes de Castelo de Paiva subsídios de natureza temporária e excecional financiados através do Fundo de Socorro Social. Este Fundo foi objeto de uma alteração legislativa pelo Decreto-Lei n.º 102/2012, de 11 de maio, permanecendo, porém, nas suas finalidades a prestação de auxílio em situações de alerta, contingência ou calamidade conforme tipificadas na Lei de Bases da Proteção Civil (Lei n.º 27/2006); e iv) o Decreto-Lei n.º 172-A, de 28 de maio de 2001, que cria um regime excecional para a execução, em regime de empreitada, das seguintes obras: construção da nova ponte sobre o rio Douro em Entre-os-Rios, a reconstrução da Ponte de Hintze Ribeiro e a beneficiação da EN 222.

11Um exemplo: nos dias subsequentes à tragédia, para além das visitas do Presidente da República, Jorge Sampaio, e do Primeiro-Ministro, António Guterres, o concelho de Castelo de Paiva será “visitado por seis ministros, outros tantos secretários de Estado e incontáveis assessores ministeriais, todos anunciando medidas de emergência” (Baptista, 2001a). Entre-os-Rios a tornar-se num inusitadamente animado ponto de interseção entre o nacional e o local, o ponto de encontro de dois níveis de administração, de interesses e de agendas, que, embora sintonizados pelo mesmo acontecimento, visarão objetivos distintos, o que, a longo prazo, redundará em resultados igualmente distintos para ambos.

12Recorde-se que acórdão do Tribunal Coletivo de Castelo de Paiva (juiz-presidente Teresa Silva) absolve todos os arguidos do processo e nega provimento ao pedido de indemnização conjunto (Estado, Segurança Social e familiares das vítimas) (TJCCP, 2006).

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