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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÃO

CATROGA, Fernando

A Geografia dos Afectos Pátrios. As Reformas Político-Administrativas (séculos XIX-XX),

Coimbra, Edições Almedina, 2014, 406 pp.

ISBN 9789724050768

 

Paulo Jorge Fernandes*

*Universidade Nova de Lisboa, FCSH, Departamento de História, Av. de Berna 26-C — 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: paulojorgefernandes@sapo.pt

 

Apresentar e comentar o trabalho do historiador Fernando Catroga não resulta num exercício simples. O autor pode ser considerado como um dos mais brilhantes e estimulantes pensadores nacionais das últimas décadas. Se a sua intervenção cívica foi

constantemente subscrita pelos valores da liberdade, da democracia e do humanismo, o trajeto académico encontra-se repartido por quatro décadas passadas em várias instituições e ilustrado por centenas de comunicações e publicações entre livros, capítulos de livros e artigos em revistas ­especializadas publicados em Portugal e no ­estrangeiro. Como herança deixa um legado fortemente personalizado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde muito recentemente encerrou a sua carreira na qualidade de Professor Catedrático ligado ao Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes, na atual designação. A sua aula de jubilação, ocorrida a 25 de maio de 2015, onde reuniu colegas, amigos, estudantes e antigos alunos, não parece representar, todavia, o derradeiro ato de um itinerário intelectual que o conduziu, a ele e aos seus leitores, pelos caminhos da História das Ideias e da Cultura dos séculos XIX e XX. Os seus estudos sobre temas tão diversos como a história da história, o cientismo, o positivismo, o laicismo, o republicanismo e a história das ciências, entre outros, transformaram-no num verdadeiro mestre de quem se aguarda sempre um comentário esclarecido, uma opinião inteligente ou um trabalho de maior fôlego empírico. Este é o caso da obra de Fernando Catroga, que agora se apresenta, na esperança de que a mesma não se transforme num epílogo, pois a historiografia nacional ainda não se pode dar ao luxo de prescindir da capacidade de intervenção e do pensamento de um dos seus maiores.

No livro A Geografia dos AfectosPátrios, o autor aproveita para regressar a um dos seus temas preferidos, o da estruturação do Estado-nação em Portugal, sem esquecer a sua dimensão pluricontinental até 1974-1975, percorrendo as alternativas e as resistências que este processo foi desencadeando “com temporalidades e ritmos distintos, e cujas causas não podem ser exclusivamente reduzidas às mutações que ocorreram ao nível dos regimes políticos”, elevando a fasquia explicativa para além das restrições interpretativas mais comuns. Embora o trabalho não apresente, como é da praxe académica, uma lista final da bibliografia utilizada – sempre citada convenientemente em nota de rodapé – Fernando Catroga parte de estudos anteriores por si publicados de forma autónoma, onde revisitou o tema desde 2004 (p. 393).

Os argumentos do autor são desenhados em torno de uma dialética integração/tensão que percorreu a sociedade portuguesa, recuando pelo menos aos últimos dois séculos, e que ficou expressa na oposição entre um modelo de organização estatal – central, periférica e colonial – centralista e um outro, descentralista. Esta pode ser uma boa proposta de reflexão sobre os caminhos definidores da contemporaneidade em Portugal e sobre o modelo de Estado que melhor se adaptou às cambiantes da realidade nacional. Outras problemáticas foram já adiantadas por alguns campos das ciências sociais nas últimas décadas, como a questão do atraso económico nacional em perspetiva histórica comparada, por exemplo.

As raízes da dicotomia tratada neste livro são de natureza histórica. Os pressupostos racionalistas do iluminismo e do liberalismo, de que a fação triunfante no conflito que martirizou o país até 1834 era portadora, entravam em colisão com os múltiplos desequilíbrios do regime administrativo herdado da monarquia absoluta. A restauração do absolutismo em 1828 tinha implicado, naturalmente, entre outras coisas, a recuperação formal do velho e complexo quadro institucional de autonomia e atribuições descentralizadas dos concelhos, que em bom rigor estes nunca tinham verdadeiramente perdido durante o vintismo (1820-1823) e o primeiro cartismo (1826-1828). Terminada a guerra civil, chegou o tempo dos particularismos do Antigo Regime cederem o lugar às regras gerais e universais consagradas pelos princípios liberais. A lei iria torna-se no principal instrumento de regulação da ­organização social, cabendo ao Estado zelar pela sua aplicação.

O novo poder, legitimado pela vitória militar, tentou desenhar, pela primeira vez, ainda em pleno conflito, um sistema económico e social moderno, que fez acompanhar de uma moldura institucional de enquadramento no âmbito da legalidade liberal. Esta preocupação era tanto mais legítima quanto os políticos sabiam, pela experiência da agitada década anterior, que seria inútil pôr em funcionamento as instituições previstas pela Carta Constitucional de 1826 sem que uma máquina administrativa reformada garantisse o exercício do poder em todo o território, assegurando desta forma o predomínio dos vencedores da guerra civil.

Ainda que sem condições políticas e militares favoráveis à divulgação e aplicação no continente das medidas propostas, os liberais não esqueceram as suas intenções de dotar o país de um regime administrativo mais consentâneo com o seu ideário. A inevitável transformação, pensada desde os finais do século XVIII, começaria, então, pelo menos ao nível das intenções, em 1830, com a publicação, injustamente esquecida, de dois tímidos decretos, em 26 e 27 de novembro, que anunciavam os propósitos de criação de juntas de paróquia e recuperavam o regime eletivo para as câmaras municipais, a quem era atribuído o governo económico e municipal das vilas e cidades, conservando as vereações todas as antigas prerrogativas em matéria de elaboração de posturas, aplicação de rendas, leis e regulamentos existentes, ficando abolidos igualmente os lugares de ­procuradores dos mesteres. Estas medidas, que a situação política tornava provisórias e extensíveis, nesse momento, apenas aos Açores, onde tinham sido produzidas, eram um primeiro sinal de que a Regência pretendia avançar com a reforma administrativa do país. Apenas ano e meio mais tarde, Mouzinho da Silveira, ainda na ilha Terceira, dava os primeiros passos nesse mesmo sentido. Este condicionalismo de partida “conduziu à vitória da organização centralista”, como reconhece Fernando Catroga, embora a mesma não tivesse anulado a necessidade de negociação entre o centro e as periferias.

A nova divisão do território, legislada a 16 de maio de 1832, colocou as populações sob a dependência direta de agentes de nomeação governamental com um conjunto de atribuições muito vasto sobre a vida local, que passavam a controlar. Pela primeira vez, procurava-se também alterar a forma de recrutamento dos governos municipais, feita agora através de uma eleição indireta, ao mesmo tempo que era retirada capacidade executiva às câmaras municipais, que detinham poderes para deliberar sobre praticamente todos os assuntos que diziam respeito à vida concelhia, mas podiam chegar ao absurdo de não verem aplicadas nenhuma das resoluções por si tomadas.

Se o clima político ainda não era favorável à sua aplicação no terreno, as medidas avançadas por Mouzinho da Silveira levantaram um enorme ruído um pouco por todo o país, passada a tormenta da guerra civil. Esta legislação, que Oliveira Martins uns anos mais tarde consideraria o “nosso 1789”, transformou-se rapidamente num dos principais pomos de discórdia das fações liberais que se confrontavam na Câmara dos Deputados após 1834. A autonomia da vida local era desde logo posta em causa por um sistema altamente centralizado, que deixava antever previsíveis conflitos entre as vereações agora eleitas e os novos magistrados, representantes da autoridade liberal, acusados de excessiva ingerência na vida administrativa dos povos. Mas a reação das câmaras era também motivada pela luta política contra o executivo, como foi o caso verificado em Lisboa e no Porto

Os vários governos, que se sucederam na altura, perceberam rapidamente que a legislação de Mouzinho da Silveira levantava mais problemas do que aqueles que pretendia solucionar, tornando-se urgente a sua substituição imediata. Não espanta, pois, que a primeira reforma administrativa, da autoria do ministro de D. Pedro, fosse substituída em 1834-1836 por um novo conjunto de medidas, agora de tendências descentralizadoras, que se aproximava mais das soluções democratizantes adotadas em França pela ­Assembleia Constituinte de 1789 e retomadas em parte após a Revolução de julho de 1830, que teria devolvido a liberdade de aplicação das decisões camarárias.

Este é o mote de abertura do livro de Fernando Catroga, o descortinar dos laços entre as correntes centralistas e descentralistas que se foram enfrentando na sociedade portuguesa desde os ­alvores do regime liberal. Para alcançar este objetivo central a todo o livro, Fernando Catroga serve-se da noção de “governamentalidade”, pensada a partir da proposição de Michel Foucault, e discutida logo no primeiro capítulo, através da qual ao “Estado administrativo”, nascido no início da era moderna e estruturado em função de uma territorialidade de tipo fronteiriço, criada por uma sociedade “de regulamento e de disciplina”, se foi acoplando um “Estado de governo”, caracterizado pela tal noção de territorialidade, mas também pela massa de população que o povoava.

O livro apresenta-se dividido formalmente em quinze capítulos, distribuídos por quatro partes, propondo-se em cada uma delas um percurso pelos vários regimes da contemporaneidade política nacional (Monarquia Constitucional, República e Estado Novo) de acordo com um enfoque temático específico. Na primeira analisa-se a governabilidade do território e da população, fazendo recuar o debate político-administrativo aos alvores do regime liberal e às várias propostas discutidas a partir das Cortes Constituintes de 1821 até à discussão sobre as vantagens e inconvenientes da importação do “modelo francês” de que o atrás citado Mouzinho da Silveira seria o principal seguidor. Há ainda espaço para discorrer sobre a “distritalização” do reino/país, sobre o sempre conflituoso processo de extinção de concelhos, e sobre o papel concedido aos ­governadores civis no novo organigrama administrativo do país e às novas autoridades burocráticas. A segunda parte da obra passa em revista a questão do “provincialismo”, em claro diálogo e aproximação ao tema do regionalismo, abordando-se ainda de que forma a “província” seria encarada nos três momentos políticos em análise, enquanto na terceira parte se evoca o poder local como “polícia” através do conceito de “paroquialismo” e dos agentes encarregues de assegurar a ordem pública. A quarta e derradeira parte encerra o livro com uma reflexão sobre o patriotismo do que o autor designa pelas “pequenas pátrias”, evocando-se o caminho percorrido desde o sentimento patriótico expresso pelas Cortes Constituintes vintistas até ao conceito de “Deus, Pátria e Família” definidor do salazarismo.

Ainda que se sinta a ausência de uma conclusão formal, este livro de ­Fernando Catroga, que seguramente irá ­perdurar como uma das suas obras mais bem ­conseguidas, revisita e sistematiza o pensamento do autor em torno de temas, problemas, perspetivas e conceitos que lhe são caros (nação, nacionalismo, pátria, patriotismo e cidadania) e que aqui são analisados e debatidos em profundidade, conferindo-lhes o autor a dimensão e a densidade que, porventura, as incursões anteriores por estas problemáticas, porque tratadas isoladamente, não atingiram.

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