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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÃO

CARVALHO, Xénia Venusta de

Identidade e Memória na Comunidade Israelita de Lisboa. Contributo para um Estudo da Construção Identitária e da Transmissão da Memória na Comunidade Judaica Portuguesa Contemporânea,

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2014, 191 pp.

ISBN 9789726713371

 

Helena Pereira de Melo*

*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Direito, Campus de Campolide — 1099-032 ­Lisboa, Portugal. E-mail: helena.melo@fd.unl.pt

 

O livro Identidade e Memória na Comunidade Israelita de Lisboa, de Xénia Venusta de Carvalho, corresponde à dissertação de mestrado em Ciências Sociais que realizou, em 2004, no Instituto de Ciências Sociais. A publicação da investigação então realizada ocorre dez anos depois, em 2014, o que a torna, de certo modo, num trabalho de natureza histórica, sobre a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL), sua composição, estrutura, interesses e motivações à data em que foi estudada.

É um trabalho extraordinariamente interessante, não apenas pelo tema abordado, mas, sobretudo, pela forma como o é. A CIL (constituída, à data, por cerca de 300 pessoas) emerge enquanto comunidade étnica e religiosa minoritária na sociedade em que se insere, nos seus traços caracterizadores essenciais. O passado histórico comum, a Diáspora, a ideia de que se “nasce” judeu (apenas por se ter uma mãe judia), a identidade cultural comum que une os judeus que a integram a judeus de outros países, o culto religioso, a reação contra o anti-semitismo, a sobrevivência ao holocausto… são traços que ­permitem entrever, como salienta a autora, uma comunidade cujos membros partilham “uma identidade específica, múltipla e imaginada, partilham a sua visão do mundo numa era global e transnacional, em que o ser se expressa na sua plenitude e se questiona cada vez mais a tendência para uma uniformização da cultura” (p. 15).

Para captar a etnicidade específica da CIL a autora recorreu não apenas ao estudo documental como também à realização de entrevistas. Entrevistou 39 membros (18 do sexo feminino e 21 do sexo masculino) distribuídos por três faixas etárias (entre os 70 e 90 anos; os 40 e os 69 e os 20 e 39). Esta distribuição foi feita atendendo a três marcos fundamentais, pela influência que tiveram na composição da CIL: a Segunda Guerra Mundial (que fez com que inúmeros judeus afluíssem a Portugal), a Guerra Colonial (que levou a que muitos saíssem do país para nela não participarem) e o 25 de Abril de 1974 (pelas alterações culturais e jurídicas introduzidas na sociedade portuguesa, que se ­refletiram numa forma diferente de autodefinição do judaísmo pelos judeus de “3.ª ­geração”).

Os resultados da investigação efetuada revelam-nos informação importante quanto à origem familiar (sefardita, asquenazita ou marrana), às habilitações literárias, nacionalidade e conhecimentos da Torah dos entrevistados. Ficamos a saber que “não há judeus analfabetos” constituindo a educação uma das preocupações essenciais da CIL, que os membros da comunidade procuram celebrar casamento dentro da mesma, e que o judeu “é extremamente cioso do seu bem-estar, gosta de viver bem. E gosta de dar o bem-estar aos seus” (p. 101). A ideia do exílio, de que “o judeu vive sempre na diáspora e que um dia vai retornar à sua terra prometida” é outra constante dos depoimentos dados. A presença de Deus faz-se sentir nas três gerações entrevistas, sendo, no entanto, digno de nota que a autora tenha encontrado “afastamento de Deus quando os entrevistados estão directamente ligados, através da sua história familiar, a perdas de familiares directos no holocausto” (p. 120).

Através de diferentes “peças” recolhidas a autora constrói um puzzle que nos permite claramente entrever a CIL à data da elaboração do trabalho efetuado. Permite-nos também reconstituir o passado dos judeus na Península Ibérica e, em particular, em Portugal: de como foram sempre considerados como “o outro” pela maioria católica que os confinou a bairros próprios (as judiarias), os expulsou em 1947, os sujeitou a conversões forçadas… Como ­desempenharam o papel de bode-expiatório ao longo dos séculos, sendo responsabilizados pela peste negra no século XIV (“a ideia de que a morte provinha de uma infeção do ar e da água fez imputar aos judeus a corrupção dos poços, das águas e do ar”), pelo terramoto de 1531…

Tudo contribuiu para a criação de uma forte identidade afirmada quer pela existência de traços comuns (culturais, religiosos) que unem os seus membros e que são distintos dos dos restantes grupos que compõem a sociedade portuguesa, quer pela existência de partilharem um mesmo passado que, por vezes, foi de grave hostilidade e de rejeição por parte da maioria católica. O livro permite-nos, deste modo, olhar de forma diferente para a CIL, que é parte da atual sociedade portuguesa. Permite--nos compreender melhor o que representa e quais os seus ideais, hábitos, tradições. No mundo pluricultural em que vivemos, esta diferença é constitutiva do caleidoscópio que nos rodeia: abandonada a ideia de um Estado-nação com uma religião, uma étnica dominante, um modelo de “vida boa” a seguir por cada cidadão, só na multiplicidade dos grupos e respetivos códigos culturais poderemos intuir os traços essenciais da atual sociedade portuguesa.

Quanto ao estilo o livro está escrito de uma forma despretensiosa e simples, que torna a sua leitura fácil e agradável. O discurso é rigoroso do ponto de vista formal: a bibliografia é adequada e foi devidamente utilizada e citada. É, de igual modo, assinalável o rigor quanto ao conteúdo: os conceitos utilizados (de etnia, identidade, memória...) são cuidadosamente explicitados ao longo do texto.

Por tudo o referido estamos perante uma obra de grande qualidade que deve ser lida por todos aqueles que queiram aprofundar os seus conhecimentos sobre o importante papel desempenhado pela CIL em Portugal e por todos os que apreciem um trabalho de investigação bem realizado, independentemente do tema.

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