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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.217 Lisboa dez. 2015

 

ARTIGO

Artes e intervenções urbanas entre esferas materiais e digitais: tensões legal-ilegal

Urban art or vandalism?: the views of the public and the law-makers

 

Glória Diógenes*

*Universidade Federal do Ceará, Departamento de Ciências Sociais, Av. da Universidade, 2995, CEP 60020-181, Benfica, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: gloriadiogenes@gmail.com

 

RESUMO

 

Este texto aborda formas diversas de expressão das artesdoe nourbano, entre as fronteiras do legal e do ilegal, entre os ambientes presencial e “virtual”. O eixo central de reflexão deste artigo apoia-se na tensão entre as usuais classificações do que é considerado arte e vandalismo na esfera das galerias, museus e escolas, assim como nos fluxos das artes de rua. A proposta do texto éidentificar de que forma o poder público e as instâncias de regulação urbana têm encontrado maneiras tanto de incorporar essas artes e intervenções urbanas, quanto de criar instâncias regulatórias para coibir e ordenar esse fenómeno. Através da observação direta da ação dos writersem Lisboa, pode-se perceber que a arte urbana opera como ato de emancipação, seja na feição de umtag, um mural, umgraffiti, seja em num mero escrito urbano. Conclui-se que legal e ilegal atuam como esferas classificatórias e disciplinadoras exteriores às práticas efetuadas pelos próprios artistas urbanos.

PALAVRAS-CHAVE: cidade; arte urbana; vandalismo; ciberespaço; etnografia.

 

ABSTRACT

 

This text tackles diverse forms of art expression when it comes to and about urbanism, between the frontiers of the legal and the illegal, the underground and the mainstream, between the present environment and the “virtual”. The central axis of reflection of this article finds its support in the tension between the usual classification of what is considered art and vandalism in the sphere of galleries, museums, and schools, as well as in the fluxes of the arts from the streets. The text seeks to identify how the public sphere has found ways of incorporating those arts and urban interventions and also of creating regulatory juridical and non-juridical avenues to repress and restrict the phenomenon. Through the direct observation of the writers in Lisbon, through the attentive listening to their narratives, it is possible to regard the urban art works as an emancipation act, be it in the making of a tag, a mural, a graffiti, or a mere act of urban writing. It is possible to conclude that the terms “legal” and “illegal” act more as classification and regulation spheres that do not really address the practices performed by the urban artists themselves.

KEYWORDS: city; urban art; vandalism; cyberspace; ethnography.

 

INTRODUÇÃO

 

Durante quase todo o ano de 2013,1 efetuei um trajeto etnográfico em torno das intervenções de artistas urbanos2writers,3entre espaços da cidade 4 e a ambiência das redes sociais digitais.5 Defini uma zona de pesquisa em Lisboa,6relativa a uma área específica do seu perímetro histórico,7 marcada por frequentes intervenções urbanas, produção de graffiti e inscrição de tags.8

O eixo condutor deste texto tanto diz respeito às tensões entre legal e ilegal como àquilo que, embora num nível institucional, ganhe o rótulo de ilegal é, habitualmente, acatado como legítimo por parte considerável dos artistas urbanos. A paridade material-digital emerge como plano combinado de análise, com a finalidade de melhor decifrar táticas, deslocamentos e estratégias no âmbito das tensões acima referidas. Mesmo tratando-se de um duplo campo de observação, busca-se escapar de princípios comparativos efetuados entre espacialidades (Lisboa e Porto) e das usuais binaridades legal-ilegal, digital--material, local-translocal, entre outras. Interessa, no âmbito destes escritos, identificar uma arte que se realiza por contágios, influências mútuas, misturas,9 compartilhamentos entre material e digital, qual seja, por uma deriva que se move entre sítios. A lógica narrativa, em alguns momentos, pode assim revelar uma natureza não linear, tendo em vista as passagens de terreno in between, por ambientes que se conectam em redes e temporalidades que escapam a uma ordem cronológica linear.

O ato de percorrer cotidianamente as ruas possibilitou-me ir identificando uma curiosa tela pictórica urbana em reiterada mutação. Os desenhos e letras que pareciam fazer-se anunciar eram sucessivamente apagados das paredes10, assumindo planos de continuidade nos ambientes digitais. Entre legal e ilegal, presencial e digital, promovia-se uma espécie de circuito sobrepostos.11 Os interditos que marcavam as ações dos writers nas ruas da cidade ganhavam outros fluxos 12 e regimes de visibilidade na esfera do ciberespaço.13

Desde 2008, com a referida criação da Galeria de Arte Urbana (GAU), a zona envolvente do Bairro Alto torna-se alvo de múltiplas intervenções14 na esfera da arte urbana, assim como outros sítios de Lisboa. A criação da GAU não apenas passa a promover e multiplicar intervenções nas artes de rua em Lisboa como, concomitantemente, intensifica o processo de apagamento15 daquilo que, ao nível de poder público, se considera não arte e, nesse intento, conforme já exposto, estabelece multas e sanções para intervenções ilegais que infrinjam a lei.16

Observa-se, de forma curiosa, que quanto mais os agenciamentos de repressão ao que se considera graffiti ilegal em Lisboa vão operando no âmbito da cidade, mais se nota o afluxo dessas inscrições nos suportes digitais. Essa “contiguidade eletrônica” (Appadurai, 1996, p. 45) permite uma espécie de drible entre os perímetros de classificação do que é considerado legal e ilegal no âmbito das artes de rua e, nesse esteio, faz esbater as fronteiras de distinção17 entre arte e vandalismo. Ao longo da pesquisa, pude perceber que os artistas urbanos, perante as elevadas multas e coerções ao graffiti ilegal em Lisboa, mobilizam linhas de fuga18 moduladas entre os ambientes materiais e digitais.

Dentro da categoria arte urbana, considero todo traçado que, mesmo constituindo-se como assinatura, tag, designada no Brasil de piXação19, desenha um propósito “pensante”, anunciando mais que um objeto, um processo vivo (Samain, 2012), um tipo de participação intempestiva na visualidade da cidade. A participação visual de artistas urbanos pode ser traduzida num tipo de desconexão, resistência e distância em relação à arte agenciada nas galerias e museus. Isso ocorre, possivelmente, próximo daquilo que Rancière (2005, p. 2) denomina de obras não passivas, analogicamente “ativas”, quais sejam, afora as que são exibidas em “[…] lugar onde visitantes solitários vêm encontrar a solidão e a passividade de obras despojadas de suas antigas funções de ícones de fé, de emblemas de poder ou decoração da vida dos Grandes”.

Já a arte realizada no ambiente aberto das ruas, tecida pela lógica da efemeridade, costuma intensificar a sua presença em espaços públicos, tanto no sentido de assegurar um grau máximo de visibilidade como de acionar e intensificar um número mais amplo de espetadores. Nesse fluxo de mobilidade, as artes urbanas “desmaterializam-se” de sua forma concreta e multiplicam-se nos meios digitais. Escapam da solidão e passividade de obras dispostas nos espaços dos museus, tal qual o exemplo de Rancière, assim como dos critérios de valor, certificação e validação dos peritos e curadores concernentes ao campo artístico.20 Na rua, em princípio, qualquer um pode ser autor/artista, pode interferir, apagar, completar, rasurar a sua própria obra, a de outros atores, gerando um princípio plural e contínuo dos processos de criação, fruição e compartilhamento das intervenções efetuadas entre espaços.

A retórica da classificação, se é arte ou não, se é uma tag, risco, graffiti, traço, escrito, stencil, sticker, se é legal ou ilegal, está também interligada ao espectro do observador. Mais do que o registro do que vê, o antropólogo que se movimenta nessas fendas recria um móbile dos ângulos que compõem o olhar dos atores da pesquisa, refletidos no seu próprio olhar. Cidade e ciberespaço, mais que distintas conexões espaciais, combinam-se em planos de mútua reflexividade. Isso significa, como bem notou Hine, numa entrevista concedida à Revista da Compós, que

 

[…] os fenômenos digitais são muito complexos. Existem em múltiplos espaços, são fragmentados e costumam ser temporalmente complexos. Não podemos esperar ter uma vivência de um fenômeno assim apenas “estando presentes ali”, porque não sabemos automaticamente onde é ali, nem como “estar presentes” […] Penso que este aspecto da reflexividade – refletir como sabemos o que sabemos sobre uma situação – provavelmente seja a parte mais significativa da etnografia em ambientes digitais [Braga, 2012].

 

O processo da reflexividade, experimentado pelo pesquisador por meio de linhas descontínuas entre espaços e tempos, também incide nas constantes auto indagações realizadas entre os writers: “nessa atuação estou sendo legal ou ilegal?”.21 Em que medida a cidade que vejo, aquilo que ela comunica, reflete as ruas e imagens projetadas e partilhadas nas redes sociais digitais? Que jogos de espelhos se efetivam entre os planos legais e ilegais da arte urbana entre espaços? O ensaio de instaurar na cidade um tipo de arte mais disciplinada, regulada, normatizada, formando a GAU – inclusive constituindo um acervo do que “já não existe mais” –, provavelmente acaba por transferir para o espaço público a equalização do gosto, promovida pelos críticos, peritos, galeristas, entre outros que aquiescem com a estética da arte “passiva” dos museus.

Dessa forma, instaura-se em Lisboa e em tantas outras espacialidades uma censura prévia, que vai sendo assimilada entre alguns writers e moradores, relativa aos atos da livre expressão desses artistas nas públicas telas urbanas. A cidade também promove uma espécie de reflexividade de imagens dissonantes. A rua, para os writers, atua na estatura do empírico, plano de experimentações, diferentemente da forma ampla e abstrata aplicada pelos planeadores urbanos que designam e projetam uma dimensão mais funcional de cidade.

Quando se trata de estabelecer correlações entre arte e conglomerados urbanos, os writers em geral acenam ao termo rua, ao invés da dimensão de cidade aludida por outros agentes que compõem a cena urbana, incluindo os já mencionados – no caso, os críticos de arte, produtores culturais, peritos, galeristas e os próprios artistas considerados “de gosto”. Como afirma Frehse (2009, p. 151), “[…] a expressão ‘rua’ remete a passagens, becos, largos e mesmo praças fisicamente abertos, isto é, não cercados, nas cidades, e cujo acesso legal é irrestrito em qualquer horário”. Nessa base de reflexão, trata-se de tomar a rua muito mais sob um enfoque interacional do que mesmo aqueles que privilegiam elementos funcionais do espaço, relativos a fatores de organização e processos de estruturação social (2009, p. 159). Grosso modo, é como se houvesse dois léxicos urbanos que se colidem nas visões e usos diferenciados das ruas e esbarram nas definições entre legal e ilegal, entre o que pode ser considerado público e privado.

O discurso acerca do legal nos usos urbanos refere-se de forma mais direta à preocupação com normas, funções, planeamentos e políticas patrimoniais citadinas. Já as narrativas sobre o ilegal das artes urbanas empreendidas por alguns dos artistas de rua de Lisboa, como veremos a seguir, estabelece-se no curso do que Argan (1998, p. 241) denominou de “[…] sentimento da cidade”, cuja finalidade é “[…] dar uma forma em que cada qual possa reconhecer a si mesmo e à sua experiência de vida pessoal”. Interessante notar nos relatos de pesquisa22 que as artes de rua, mais do que um modo de interação, de expressão de “sentimentos de cidade”, constituem-se como maneiras de produzir cidade.

Vale ressaltar que pouco interessa se se trata de um mural, stencil, tag/pixo, colagem ou graffiti. O que está em jogo é um processo não institucional de um tipo peculiar de produção urbana, qual seja, tal como habitualmente se apregoa, a arte urbana ilegal; mais que um efeito de demonstração de inscrições de si e de grupos, de ocupação de lugares da cidade de difícil acesso a equipamentos e serviços urbanos, provoca a criação de alternativas por outras vias, pondo em questão os seus usos23 oficiais e costumeiros.24 Se, como diz Ferrara (1993), para romper a inelegibilidade do urbano se torna necessário improvisar novas locuções e variações da sua linguagem, a arte “concreta” das ruas, de natureza ilegal, produz descontinuidades e desvios nas paisagens e nos usos da cidade.

A cena25do graffiti, além de apontar reinvenções do urbano-Lisboa, promove transposições entre os domínios digitais e materiais. O graffiti ilegal, por ocorrer na incessante tensão entre existir e ser apagado, por se inscrever sob o crivo da efemeridade, migra de forma mais veloz para o ciberespaço. Nesse aspeto, como diz Brighenti (2011, p. 35), “[…] as imagens não são só extensões, mas também intensidades, não são apenas formas, mas também eventos de metamorfose”. As paredes, montras, viadutos, calçadas e placas são, simultaneamente, materiais e imateriais, colocam-se tanto como superfície de inscrição quanto na qualidade de projeção e visibilidade de uma cidade continuamente desenhada e apagada, re-inventada e des-inventada.

Por tal razão, necessitando esquivar-se das armadilhas da fixação e da delimitação de fronteiras em permanente negociação entre legal e ilegal, o ­graffiti ajusta-se, apropria-se e deixa-se afetar pelas inovações tecnológicas por meio das redes digitais da internet (Campos, 2009, p. 108). Como bem assinala La Rocca (2011, p. 65), “[…] os graffiti, ao intervirem no território, ao serem expostos no território, conferem-lhe um caráter dinâmico: proporcionam uma caligrafia, como é o caso da pichação em São Paulo, que provoca uma profunda transformação estética da cidade” – e, acrescentaria, também nos logradouros que povoam o ciberespaço.

 

PINTAR A CIDADE “ILEGAL”: A AUTORIZAÇÃO MORAL DE HAZUL LUZAH

 

No dia 21 de maio de 2013, uma iniciativa da Câmara do Porto de “destruição” de uma pintura é flagrada pelo próprio autor, o artista urbano local denominado Hazul Luzah. O blog “Jardim das Delícias”,26 no dia 25 de maio de 2013, realiza uma publicação com o seguinte título: “Graffiters ameaçam responder à destruição de pintura de Hazul”. Em curto espaço de tempo, a foto da “­destruição” gerou polémica e revolta entre uma rede de writers conectados em diversas partes do mundo. Um trecho da referida publicação no blog sinaliza as tensões e conflitos que dinamizam esse campo de múltiplos enfrentamentos:

 

Graffiti: “uma autêntica praga”? O combate “sem tréguas” que a Câmara do Porto declarou aos “graffiti” visa tornar a cidade mais limpa e acolhedora, alega a autarquia, que considera este tipo de manifestações “uma autêntica praga”, destruidora da paisagem urbana. O projecto das brigadas antigraffiti custou cerca de 150 mil euros e, desde Novembro, já interveio em cerca de 20 ruas. Para Hazul, a Câmara deveria optar por outra solução, bem mais simples e barata: permitir que se pintassem os tijolos que emparedam as casas devolutas ou disponibilizar paredes para o efeito. “Qualquer destas opções não necessita de dinheiro, só de vontade”, remata. O “writer” reivindica ainda o apoio do município para aqueles que querem “embelezar o espaço público”, garantindo que “muitas paredes na cidade ficariam enriquecidas se fossem pintadas por um artista” [Jardim das Delícias, 2013].

 

O binómio destruir versus embelezar agita o debate, de acordo com a perceção do poder público, da “praga” que mobiliza a Câmara no “combate sem tréguas” em relação à prática do graffiti. No diário de campo online,27 publicado poucos dias após o “apagamento” do graffiti de Hazul Luzah,28 já se evidenciam rastos da proclamada guerra, tendo o Porto como cenário.

 

Caminhei por volta de quatro horas na zona geográfica que perfaz a Faculdade de Ciências e Letras, passando por toda zona histórica até a Rua Sá de Noronha, na baixa do Porto. Percorri uma cidade rasurada por escritos, desenhos, murais,graffiti,tags, mensagens espalhadas por toda parte. Tanto havia muros apagados, com vestígios de pinturas etags, como paredes e vitrinas que superpunham inscrições, uma por cima das outras. Parecia acontecer, amiúde, o denominadocross.29 O que de princípio, poderia incomodar tanto o poder público como provocar algumas rivalidades entre os próprioswriters.Durante o percurso, ocorreu-me que ao contrário do que esperava realizar a Câmara na “brigada anti-grafitos” – o “apagamento” arbitrário – sem uma percepção dos significados da arte urbana, ela acabou por mobilizar ainda mais os graffiters a multiplicarem suas marcas na cidade [Diógenes, 2013b].

 

As três imagens tomadas pela autora no momento do conflito, em maio de 2013, destacam o impacto visual de uma guerra cujo front são as paredes.

O ilegal sobrepõe-se ao legal, imprimindo um princípio que, segundo Câmara (2014 p. 160), norteia a old school das artes de rua: se vais crossar30, tens que fazer maior e melhor. As práticas ilegais do graffiti, dentro do seu plano interno de interação, definem e regem ações que são potencialmente consideradas legítimas entre os writers.

 

 

A fronteira mais nítida entre o graffiti legal e ilegal é proporcional à potência de resistência, podendo já não ser considerado graffiti, por alguns pesquisadores31 e writers, quando ele é realizado de forma institucional e no contorno de espaços liberados pelo poder público, ou ainda por proprietários dos edifícios ou equipamentos que dão suporte à intervenção. Um dos traços que inteiram a inscrição dos denominados graffiti na cidade é a própria tinta da ilegalidade.32 Em que medida a ação ilegal dos artistas de rua aspira ao estatuto de legalidade e à classificação de gosto ensejada pelo que se considera arte na arena dos estabelecidos?33

De acordo com Machado Pais (2006, p. 13), “[…] de um ato ilegal (ilegalidade prescrita pela lei) o grafite transforma-se em arte (e toda a arte é legal na opinião dos artistas); por isso os jovens grafiteiros falam da legalização das paredes quando delas se apropriam”. Mesmo sendo o ato de “pintar a cidade” uma ação de natureza ilegal, um empreendimento desviante, um “[…] ataque, um insulto, uma degradação” (Brighenti, 2011, p. 37), para os writers, essa ação reveste-se de um tipo de ocupação da cidade correta moralmente, tal qual relata Hazul Luzah, artista urbano da cidade do Porto:

 

 

 

Uma altura que percebi que minha própria vontade era suficiente pra eu conseguir fazer uma parte daquilo que eu queria. Claro que não consigo fazer tudo, porque estou sujeito a regras que tenho que estar mais ou menos atento para não ter problemas. Mas consegui perceber que era possível aquilo que eu achava certo e, ao mesmo tempo, depois receber a opinião das pessoas que gostavam e que me davam a garantia que ok, aquilo ficava bem ali, ou seja, pronto. E a partir daí eu comecei achar que valia a pena correr eu pessoalmente, poderia correr o risco em prol de fazer uma coisa que eu achava correto e que pelo que tenho visto a maior parte das pessoas também gostavam, ou seja, era quase como se tivessem impedido por parte dos governantes, mas tivesse quase uma autorização moral por parte das pessoas, o que de certa forma pra mim é bastante mais importante ter a opinião positiva das pessoas que vivem a cidade do que dos governantes que estão na Câmara.

 

A autorização moral alcançada por Hazul Luzah, assim como ressalta noutra passagem da sua narrativa, é percebida pelo artista como uma coisa natural, atitude possível para que possa interagir na cidade em que habita:

 

[…] o espaço público é tão meu como é do vizinho, e acho que da mesma forma que eu gostava que houvesse mais espetáculos na rua e gosto muito de ver as pessoas virem cozinhar para a rua, fazerem os assados e as sardinhas e aquelas coisas todas, e eu gosto muito dessa interação.34

 

A ideia de autorização moral, ressaltada por Hazul, como se pode identificar nos seus depoimentos, compete com outros regimes de legitimação das obras de arte, de reconhecimento artístico e de princípios instituídos por meio dos campos social e político. Mesmo com o impedimento por parte dos governantes, Hazul sustenta-se numa espécie de aceção de agência moral (Werneck, 2013). Predomina, nas palavras do artista, um princípio cognitivo, a construção de um juízo próprio relativo ao ato de pintar a cidade, balizando uma “determinada gramática de actância moral” (Werneck, 2013, p. 707). Desse modo, a autorização moral autoconcedida pelo artista e o seu considerável reconhecimento diante dos moradores do Porto surgem, ao contrário de um operador de contenção, “como dispositivo de potencialização da agência” (idem, 2013, p. 713) de intervenção artística na cidade. Assim sendo, mesmo ilegal do ponto de vista das leis e regulamentos prescritos pelos governantes, Hazul cria uma singular “economia de motivos” (Werneck, 2013) que o incitam e o convencem da sua também propriedade do espaço público e de sua potência de agir.

 

 

Para o artista do Porto, a opinião positiva das pessoasaquilo ficava bem ali – era o salvo-conduto de que ele necessitava para empreender a sua brigada a favor do que considera ser correto moralmente. A interação e a ocupação moral dos artistas urbanos nos ambientes citadinos apregoam não apenas ondas de resistência e rebeldia, como também, tal qual mencionou Ferrel (1995), possibilitam a instauração de alternativas urbanas que dilatam os usos da rua. Hazul Luzah, também em 2013, decide realizar uma exposição de arte ilegal num local de quase abandono na zona portuária da cidade. O suporte das telas opera-se nos desvãos de prédios devolutos e nas portas e janelas emparedadas. Todas as madrugadas, de modo solitário, Hazul produzia uma peça.

A convulsão causada pelo “apagamento” do graffiti de Hazul Luzah e o impacto do ocorrido nas redes sociais da internet e em alguns jornais e revistas conferiram ao artista uma notória visibilidade, de tal modo que a exposição “Florescer”, na Rua São Pedro de Miragaia, ganha inegável destaque e adesão de moradores no momento da “abertura” do evento. A revista Time Out do Porto, de agosto de 2013,35 enfatiza a importância da sui generis exposição do artista.

 

 

No diário de campo do dia 22 de agosto, publicado no Antropolo­gizzzando,36 relatei uma visita a São Pedro de Miragaia na companhia do artista, mesmo que ninguém no local minimamente antevisse tratar-se do autor das obras expostas no “Florescer”:

 

Outro senhor, denominado Pereira, disse que há diferenças entre essa arte da Miragaia e o vandalismo.Diz ser contra qualquer tipo de vandalismo nas paredes,os rabiscos que só estragam a cidade e solta,o que diz se tratar de um ditado popular: cada qual na sua arte. E continua, há grafitismo por vezes considerado vandalismo, há outros que até se ganha dinheiro com isso. Aqui tem vindo muito estrangeiro, visitar agora essas pinturas. Tiram muitas fotos. Isso aqui é arte [Diógenes, 2013a].

 

Percebo que, apesar da natureza impressionista e intuitiva das considerações dos moradores, a maior parte delas parece identificar, na exposição de Hazul, um perfil diferenciado, se utilizando de termos relativos às artes plásticas, quando mencionam a exposição: são quadros, são pinturas [Diógenes, 2013a].

 

Considera-se que os “juízos de gosto” (Agamben, 2012), as esferas de “distinção” (Bourdieu, 2013) entre o que é arte e vandalismo, qual seja, o que é legal e ilegal, extrapolam as instâncias jurídico-institucionais e entremeiam-se aos discursos e às práticas cotidianas dos moradores e dos visitantes locais. Entre o primeiro contacto efetuado com Hazul, tendo como foco a exposição “Florescer”, no curto espaço de tempo de menos de seis meses, verificaram-se significativos deslocamentos tanto na visão do artista sobre sua obra como nos olhares dos moradores e dos demais agentes sociais: Câmara do Porto, media e redes sociais digitais, tal qual relatado no referido diário.

 

O artista que revelou na primeira entrevista pintar sem se dar conta do olhar do público sobre suas obras, vivenciar uma experiência de autoconhecimento e simbiose das figuras do formador-artista-espectador-curador passa a “brincar” com esses papéis. Luzah insiste no uso do termo brincar, como se isso redundasse numa inversão e mistura dos usuais papéis que compõem os roteiros da produção artística. Provavelmente, também, ao confundir enunciados, funções e as dinâmicas contemporâneas da produção artística (produtor-curador-crítico) o artista, como diz Rancière (2010) também “emancipa o espectador”. Hazul acaba criando uma eficácia paradoxal do fazer artístico: “é a eficácia da própria separação, da descontinuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis através das quais essa mesma produção é apropriada pelos espectadores, leitores, ouvintes” (2010, p. 85). O “brincante” Hazul, no seu Facebook, apresenta o curador de sua exposição, o gato. Paradoxalmente, silencioso, tem olhar observador mas produz uma visão “por dentro”, qual seja, é parte da “natureza” local [Diógenes, 2013a].

 

A repercussão da exposição “Florescer” provoca uma implicação peculiar: as demais obras, que estão há mais de três anos espalhadas na zona histórica do Porto, auferem um estatuto de visibilidade e curiosidade dos moradores locais e de segmentos de visitantes. Até então anónimo, a indagação sobre quem é Hazul Luzah confere ao artista uma significativa autorização moral (Werneck, 2013) e um salvo-conduto do que denomino de um tipo de legalidade ilegal. A transposição das fronteiras entre legal-ilegal no seu percurso artístico37 é conduzida por uma opinião positiva dos espetadores urbanos, o que, para Rancière (2010, p. 27), denota uma forma específica de interatividade, desmantelando fronteiras entre os que agem e os que veem, entre indivíduos e membros de um corpo coletivo.

O rito de passagem da arte urbana de natureza ilegal para o âmbito do que é permitido moralmente pelo conjunto dos espetadores, no caso de Hazul Luzah, aconteceu de forma veloz e bastante singular. Em maio de 2014, na página do Facebook de Hazul Luzah,38 puderam-se identificar diversas fotos e mensagens sobre uma exposição pública em que uma obra do referido artista é projetada no prédio da Câmara do Porto, sendo proclamado da seguinte forma: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Hoje, na ­inauguração do STREET ART AXA PORTO, uma obra de Hazul Luzah, com vista para a Câmara do Porto”.

 

 

 

 

O ilegal sobrepõe-se à superfície incorpórea do aparato legal do poder autárquico do Porto: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Pouco antes desse feito, Hazul Luzah, numa publicação de 26 de abril de 2014, na sua página do Facebook, noticia:

 

Saímos à Rua. Street Art Axa Porto inaugura dia 30, 4.a feira (véspera de feriado), 22h. Street Art: os “writers” saíram à rua de madrugada para homenagear a arte urbana: http://p3.publico.pt/node/11856. Seis cabinas telefónicas da Avenida dos Aliados, no Porto, foram transformadas com a ajuda de graffiti, instalações e stencil [informação verbal].39

 

A arte urbana, tal qual se observa nos trajetos de Hazul Luzah na cidade do Porto, mais do que contrapor-se ao binómio legal/ilegal, equilibra-se no próprio estatuto do duplo. Classificada como ilegal, ainda o artista “não dando a cara”, a obra de Hazul é realçada num notório empreendimento legal: a pintura de uma cabina pública de uma das principais avenidas da cidade do Porto. Onde acaba o legal e começa o ilegal é um discurso que mais concerne às autoridades públicas, aos críticos de arte, aos galeristas e curadores do que mesmo aos writers que atuam nas confluências e fronteiras entre as artes e o urbano.

É nas ruas, no fluxo da apropriação realizada pelos espetadores, que se decidem os domínios de atuação do consentido e do reprimido e as suas ­repercussões na arena institucional e no mainstream. Qualquer que seja a natureza, ilegal é um valor intrínseco ao fazer intervenção nas ruas, que acaba por determinar o que se considera ou não arte urbana. Na medida em que é dada ao artista a palavra possível de avizinhar legal e ilegal, ele opera no circuito contínuo entre o permitido e o proibido. Slap, um dos mais emblemáticos artistas urbanos de Lisboa,40 define o que para ele representa a sobreposição legal-ilegal, após uma descoberta efetuada no fluxo da conversa entre pesquisador e narrador.

 

Quando não se limpa a determinados tempos acontece isto, né, que pra muitos é bonito e pra outros é horrível. E depois isto é o que vai sempre colocar a arte urbana naquela tangente, onde é que acaba o legal e começa o ilegal, o quê que é arte, o quê que é vandalismo – ou poderá o vandalismo ser considerado arte? Por exemplo, isto pode tá muito horrível, este vidro pode se partir e tirar fora, mandar pra lixo, mas se tivesse alguém que descolasse o vidro, levasse e pusesse no Centro Cultural de Belém, era uma peça da arte. Então é esta a diferença, é a abordagem que nós damos às coisas, não é as coisas, as coisas em si são o que elas são, nós não precisamos estar nós a decidir se isso vai ser ou não vai ser, né? Mas se houver alguém que valorize isso e diga: “Eu quero esse vidro pra mim, eu dou 2 mil euros por este vidro, eu quero este vidro pra mim”, compreender alguém que, com muito cuidado pra não partir, colam por cima e descolam não sei quê, e isto vai ser preservado, vai ser guardado, e se calhar daqui a 10, 20 ou 30 anos ainda tão pessoas a olhar pra este vidro assim meio espelhado, que dá pra nós nos vermos lá também, nós conseguimos por lá também. Mas é, estás a compreender, acho que é mais é mais por aí, não há uma definição, não há uma coisa concreta em relação ao quê que é, ao quê que não é, legal ou ilegal.41

 

No momento de entrevista, Slap apresenta uma intervenção efetuada num túnel em Alcântara,42 que, sob sua supervisão, é pintado por vários artistas urbanos de Portugal, como se pode observar na fotografia abaixo.43

 

 

Inusitadamente, observo a sua tag estampada bem no meio de uma montra, que segundo ele será removida, e indago-o sobre a autoria. Slap, sorrindo como quem fora descoberto, informa que ela está ali há mais de 15 anos. Os liames entre o que significa valor-arte e lixo, legal e ilegal, as variações estéticas entre belo e feio surgem na fala de Slap. Assim, como destaca Hazul Luzah (2013), esse “[…] valor vem a depender da abordagem que damos às coisas” ou da autorização moral autoconcedida pelo próprio writer e pela plateia de espetadores que, de modo virtual, também passam a assinar e liberar a obra.

 

 

O que parece definir a arte urbana é aquilo que, para alguns, como afirma Slap, pode parecer horrível e, para outros, um modo não somente de se ver, de ter um lugar na cidade, mas, fundamentalmente, de participar e construir a cidade. Como diz Agamben (2012, p. 151) a propósito do exercício de “pintar a cidade”:44 a arte atua como autorregeneração da vontade de potência. O que importa para os writers que preferem arriscar, mesmo impedidos pelos governantes — como enfatiza Hazul Luzah —, transcende o ato restrito da vontade de rebeldia, ou, como propõe Becker (2008), de um empreendimento desviante.

O debate sobre os “usos das ruas”, seja legal ou ilegalmente, conforme Frehse (2009, p. 165), tem o corpo e suas atuações como elemento central, mesmo que muitos autores não se deem conta disso. “É ele que se move, que interage, que atua na rua, cumprindo ou não funções, produto e produtor de contexto” (idem, 2009, p. 166). A intervenção da arte urbana na cidade é um modo de participação corporal na esfera material da cidade. Diferentemente das “obras passivas” dos museus, referidas por Rancière, no contexto e “usos da rua” as intervenções conectam-se aos corpos dos writers, numa espécie de fusão material, orgânica e, por vezes, digital. A obra atua, mesmo ­revertendo-se numa argamassa palpável, na condição de corpos misturados45 e também ganha certa volatilidade. A diferença é que, muito embora o writer ocupe um espaço, utilize um tipo de suporte – paredes, muros, vitrinas, viadutos, placas, dentre outros –, ele opera na lógica dos cursos e deslocamentos. Como releva a artista urbana de Lisboa, Tamara Alves, na rua tudo pode acontecer:

 

O primeiro contexto da rua em si é tudo. Acho que o facto, o abandono da peça na rua é doloroso, mas faz parte. É preciso haver uma espécie de afastamento, […] a partir do momento em que tá feito deixa de ser meu e acaba por ser dos outros, e vive com o tempo e desgasta-se com a passagem, e num (sic) escolhe, é eclético, não escolhe público. O local influencia, como é óbvio, mas o desgaste é a intervenção dos outros artistas em cima, isso faz tudo parte. Isso eu acho, a obra não tá finalizada, não tá enquadrada pra já, não é tela, nem um retângulo acadêmico, é exterior.46

 

É o abandono da peça e o seu previsível desgaste que estabelece o elemento diferencial entre a arte dos “juízos de gosto” e aquela que é eclética e não ­escolhe público – uma arte que escapa do crivo estético como capacidade exclusiva do artista, ao passo que ao não artista resta apenas spectare (Agamben, 2012, p. 40). Uma obra não finalizada, não esquadrinhada em limites fixos, age como um convite à participação, mesmo que ocorra apenas ao nível do olhar47 do transeunte que vive e usa a cidade. A cena da street art não só se esquiva da perceção de passividade48que tem marcada a condição do espetador de museus e galerias como, por se revestir de um caráter de efemeridade e “abandono” das obras nos espaços urbanos, pode ser facilmente reapropriada e transposta das ruas para os corredores e vias do ciberespaço.

Um muro com “pixo”, uma cadeira improvisada em regiões de fluxo, um assento de praça utilizado como dormitório, faixas e riscos sobre monumentos públicos conferem à cidade diferenciadas indumentárias e compõem geografias não oficiais, não legais. As artes urbanas aparentam operar nessa fratura entre o material, o concreto e aquilo que se encontra em permanente ­mutação; entre a instância da figuração e o imaterial efémero da invenção. Trata-se, como alude Canevacci (2013, p. 45), de um tipo de comunicação que, ao ser liberta das molduras, é “[…] negociada entre diversos sujeitos que participam do evento: o autor, o texto, o contexto, o espectador”.

As culturas digitais, enfim, aceleram tal processo através da web-comunicação. O espetador deixa de ser apenas espetador e muito menos deseja sê-lo. É como se os writers, albergados na condição criativa da impotência, do não poder deixar marcas na cidade, comumente impedidos por parte dos governantes, arriscassem a capacidade do agir e resistir não apenas em relação a si próprios, mas um atuar também na construção da cidade. A perceção estética do urbano como espaço visual, obra de arte ou conjunto de obras de arte está bem mais relacionada com o valor atribuído por uma comunidade, por segmentos e usos diferenciados do que por um valor em si (Argan, 1998, p. 228). Não apenas os usos da cidade, e os seus escopos de atribuição de valores ganham novos matizes, como a perceção e o uso do tempo revestem-se de uma tensão que dimana entre afastamento e vizinhança (Agamben, 2010, p. 26), entre presencial e virtual,49 entre cidade, arte urbana e ciberespaço. O ilegal da arte desliza e transpõe os lugares estriados50da cidade, atuando de forma tática no jogo da marcação, apagamento e promoção de um caráter de permanência dos graffiti51nas páginas do Facebook, assim como em outras tantas esferas das redes sociais digitais.

 

O LEGAL E O ILEGAL: ENTRE OS CIRCUITOS UNDERGROUNDS E O MAINSTREAM (NOTAS CONCLUSIVAS)

 

A “cena moderna”, como enfatiza Eugênio (2006, p. 161), faz-se zona fronteiriça, envolve o uso de tecnologias (câmeras fotográficas digitais, internet e telemóvel). A foto de Hazul Luzah, capturada no momento em que os agentes da Câmara do Porto efetuavam a “destruição” do seu graffiti, ultrapassa as paredes e perímetros da cidade e ganha dobras e paisagens das redes sociais digitais. A itinerância e a velocidade (Eugênio, 2006, p. 173) da imagem inúmeras vezes partilhada faz dela um múltiplo do uno. Transforma-se a imagem, por ser a mesma, continuamente deslocada do seu suporte original, e assim se recompõe a noção de rua e de espaço, tal como as molduras cronológicas do tempo. É outra cena de um mesmo enredo. Por tais razões, o próprio conceito de cena, também discutido por Bennett (2004), avoca novos trajes, designados pelo referido autor de virtual scenes.52

Na medida em que as cenas de interação virtual agenciam e facilitam outro nível de trocas, de uma espécie de copresença entre atores distantes geograficamente, a natureza ilegal das ações de arte urbana, ao se propagarem, alcançam outro tipo de aceitação e de legitimação pública. Os golpes que tentam contornar os espaços estriados das multas, decretos e das ações do estado de branqueamento da cidade, ao multiplicarem nas redes a mesma intervenção, em infinitas paredes virtuais, populariza e cria uma espécie de aceitação pública do ilegal. O artista urbano Miguel Januário, cujo nome artístico é ± MAISMENOS ±, acentua os impasses que atravessam a arte urbana num contexto social lisboeta que ele denomina de pseudoconfortável:

 

[…] a street art também ela se tornou um produto porque o mercado é aglutinador, portanto acaba por aglutinar até aquilo que o partido é contra ele mesmo. Depois existem as questões da domesticação, ou seja, da tentativa de controlar um bocadinho as mensagens […].53

 

Assim como os contextos legal e ilegal da street art são organicamente conectados, os circuitos mainstream e underground também se interpõem em zonas de compatibilidade e de dissenção. Simões (2012, p. 190), numa instigante discussão acerca do amadorismo e da profissionalização no hip-hop, atenta para o valor “facto de os mesmos artistas poderem conciliar ambas as opções na sua trajectória, mesmo sabendo que representam realidades diversas, com uma importância simbólica diferenciada”. Em conjunções similares, observa-se a emergência daquilo que Campos (2009, p. 97) denominará de redes dobradas, comentadas por Lopes da Silveira (2011, p. 134), sinalizando que “[…] os novos grafites são outros grafites” quando atuam nesse duplo lugar – a rede física e a malha virtual. De outro modo, reitero que são vários desdobramentos que operam em simultaneidade na paisagem das artes de rua – legal e ilegal, mainstream e underground, físico e virtual –, como se um apenas alcançasse funcionalidade e força se atuasse em conjunção com o outro.

Indago, nestas linhas finais, até que ponto a imagem viral do mural de Hazul Luzah, apagada pela Câmara do Porto e registada em foto digital nas redes sociais, estabeleceu outro nível de importância e de visibilidade às obras do agora proeminente writer da referida cidade. Qual seria o destino das imagens das artes de rua, tal qual questiona Rancière (2011, p. 28), nas operações entre o ordenamento urbano e as classificações do gosto estético? Parece que quanto mais se tenta estabelecer fronteiras, divisas e binarismos, mais a arte opera nessa confluência aparentemente contraditória da convivência vantajosa entre duplos. “É esse entrelaçamento discursivo da arte e da não-arte, da arte e da mercadoria, que o discurso medialógico contemporâneo tenta apagar […]”. E quanto mais se tenta neutralizar esses entrelaçamentos, domesticá-los, como ressalta ± MAISMENOS±, mais a arte urbana opera no regime do que Rancière denomina de dissemelhança, na feição de um contramovimento, lugar de apreciações, formas plurais de assimilação de intervenções, como diz Tamara, naquilo que “[…] deixa de ser meu e acaba por ser dos outros” (informação verbal).54

A vizinhança legal-ilegal não estaria produzindo outros modos de fruição e de apropriação urbana realizados com o corpo, tal qual sinaliza Frehse (2009), nas suas práticas de marcação, afora normas e prescrições de uso da cidade? Apontando assim já para outro eixo narrativo e reflexivo para próximos escritos, não seriam esses os “[…] estimulantes diagramas da criatividade contemporânea” (Almeida e Pais, 2013, p. 17)? Um tipo de intervenção, “[…] um jogo de astúcias e audácias que coloca em estado de sítio a normatização” (idem, 2013, p. 17)? Essas “diferentes modulações” do fazer, esses “lugares intercambiáveis”, o “[…] estar em contato facilitado pelas novas tecnologias da informação e comunicação” (Almeida e Pais, 2013, p. 17) não estariam, também, deslocando os limites facilmente discerníveis entre arte e vandalismo, entre o underground e o mainstream?

Por fim, do mesmo modo que se estabelece, nos usos das ruas, o risco do ilegal, não estaria qualquer forma de apropriação da arte urbana pelo mercado fadada a ser percebida, principalmente por meio do olhar de quem se situa fora desse campo, como atuação de natureza económica, capturada pela lógica do mercado?55

Através da observação direta da ação dos writers em Lisboa, na escuta atenta de suas narrativas, pude perceber que a arte urbana opera como ato de emancipação, seja na feição de um tag, um mural, um graffiti, seja como um mero escrito urbano. O que parece estar em xeque é a emancipação do espetador, “o desmantelar as fronteiras entre os que agem e os que veem, entre os indivíduos e membros de um corpo coletivo” (Rancière, 2010, p. 31). E o que faz com que se rompa a passividade do espetador é aquilo que ± MAISMENOS ± vai sinalizar como sendo a essência da street art: o desassossego. A tinta do desassossego derrama-se afora o rótulo da massificação ou da apropriação pelo mercado. Atravessa o legal e o ilegal, infiltra-se nas ruas, no underground e no mainstream, instaurando espaços de usos inventados. Age entre tudo aquilo que o mercado se apropria e o tanto que irrompe da criação artista, desfazendo usuais binarismos entre a arte e a vida.

 

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Recebido a 24-11-2014. Aceite para publicação a 10-09-2015.

 

NOTAS

1 Bolsa da Capes para pós-doutorado em antropologia, no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, sob supervisão do professor José Machado Pais.

2 Aqui me refiro à arte urbana como expressão que engloba tipos diversos de linguagem e intervenção artística, tendo o urbano como cenário e/ou como suporte. Ricardo Campos (2010, p. 280), notório investigador português nesse campo temático, considera o graffiti como sendo um dos elementos emblemáticos da cultura visual contemporânea. O grafitti é um código expressivo das artes de rua (street art), tendo recorrentemente como móbil a transgressão e a irreverência. Waclaweck (2008, p. 121) também associa o graffiti a uma forma de inserção transgressiva nos contextos socioculturais das cidades – assim, a natureza ilegal e o vetor da rebeldia acompanham, de forma mais destacada, a genealogia do graffiti. No âmbito da arte urbana, além do graffiti, as pinturas de muros, também designadas de muralismo, o stencil, técnica de pintura por meio de elementos vasados, a colagem ou lambe, os stickers, entre outros, inserem-se dentro do mesmo campo semântico. Apresento esse conjunto de considerações para que se possa identificar o terreno diverso e ambíguo de qualquer esforço generalizante de conceptualização dessas experiências de intervenção urbana.

3 No corpo deste texto identificarei sempre os atores que atuam nesse múltiplo terreno sob a denominação de writers.

4 Sendo que, especificamente no caso de Hazul Luzah, um dos artistas pesquisados, o impacto do “apagamento” de uma das suas obras nas redes sociais da internet me impeliu a deslocar-me até à cidade do Porto com a intenção de acompanhar de perto o referido episódio.

5 Lúcia Santaella (2010, p. 14) entende por redes sociais digitais laços de variadas métricas, utilizando-se meios técnicos disponíveis para a mediação de interações.

6 A decisão de empreender uma pesquisa entre os domínios presencial e digital, tendo como lócus de investigação a cidade de Lisboa, não se deu por mera escolha da pesquisadora. A criação da Galeria de Arte Urbana em Lisboa, em 2008, sob a tutela do Departamento de Património Cultural do Município, não apenas tem atraído visitantes de diversos pontos do planeta, como também tem propagado o cenário do graffiti em variados sítios digitais. Para uma melhor perceção do processo de criação da GAU e de difusão do cenário das artes urbanas em Lisboa, ver também o texto de Sílvia Câmara (2014) intitulado “Arte urbana como performance: entre o corpo sublimado e a crítica política”, em que ela relata o processo de remoção das inscrições deixadas em palimpsesto por artistas nacionais e internacionais no Bairro Alto em 2008. Recentemente, o jornal Huffington Post identificou a capital portuguesa como uma das paisagens com a melhor arte urbana ao nível global. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/2014/04/17/best-street-art-cities_n_5155653.html, [consultado em 20-07-2015].

7 A área de percurso quase diário da pesquisadora iniciava-se no Largo do Rato, passando pela Rua da Escola Politécnica, chegando ao Chiado, atingindo o Rossio, descendo até ao Cais do Sodré e por toda a extensão da Avenida da Liberdade.

8 A assinatura comummente utilizada para designar os graffiti ilegais.

9 Alusão ao livro Os Cinco Sentidos: Filosofia dos Corpos Misturados, de Michel Serres (2001).

10 Remeto para uma discussão acerca da efemeridade das artes urbanas para uma publicação anterior da autora: “Assim sendo, pode-se considerar a arte urbana, tanto nas cidades presenciais como no ciberespaço, uma marca diferencial urdida e nomeada por quem dela se utiliza. Sendo assim, ela é essencialmente não oficial e é quase sempre objeto de polêmica entre graffiters e poder público, provavelmente por fazer parte da esfera das escrituras urbanas inventadas para serem des-inventadas e raspadas continuamente da paisagem oficial das cidades. A arte urbana, a street art, se constitui no esteio efêmero das inscrições que se mesclam aos suportes materiais da cidade e, ao serem rascunhadas, por terem existência efêmera, evocam o próprio caráter transitório da vida urbana. Essa é uma arte, como bem exemplifica Hazul Luzah, que existe para ser apagada. Cada lugar, cada público tem formas próprias de nomear e de diferenciar a street art; assim como nos ritos das artes clássicas, de museus e galerias, a qualificação da arte e da não arte tanto vai depender da intencionalidade do artista, como também do espetador” (Diógenes, 2013d, p. 57).

11 Instigante a discussão de Fabrício Lopes da Silveira (2011) acerca das topografias e daquilo que denomina medialidades do graffiti.

12 Lídia Borges (2013, p. 13), considera que “[…] com a popularização da internet e das redes sociais, muitos artistas começaram a disponibilizar um grande acervo fotográfico – que até então era pessoal – dos seus graffitis nesse universo virtual. A partir desses compartilhamentos de imagens, o graffiti ganha uma nova dimensão. A sua visibilidade não precisa agora necessariamente que seja in loco, basta ‘um clique’ nas páginas pessoais desses artistas ou um passeio virtual pela internet”.

13 Com o intuito de trafegar de forma mais veloz e eficaz entre os âmbitos da cidade e as redes sociais digitais, criei um blog “diário de campo” denominado Antropologizzzando, que pode ser acedido no seguinte endereço virtual: http://antropologizzzando.blogspot.com.br/. Ele percorreu todo o ano de pesquisa em Lisboa, ao longo de 2013. Algumas passagens deste texto farão alusão a escritos registados no referido blog.

14 Iniciando na Calçada da Glória, com a instalação de um conjunto de painéis.

15 No documentário “Rastos da arte urbana em Lisboa” (https://vimeo.com/116549650), realizado pela autora, a coordenadora da GAU, Sílvia Câmara, ressalta a importância do apoio das entidades oficiais no processo de projeção da cidade como Galeria de Arte Urbana e explica a dinâmica de apagamento das obras: “A Câmara decide simultaneamente agilizar o programa da reabilitação do Bairro Alto, limpando, entre outras medidas, algumas das principais ruas, onde aparecia uma densidade muito forte de inscrições nas paredes. De algum modo significava estar a dignificar também aquele espaço, mas por outro lado estar simultaneamente a apagar boa parte da memória da arte urbana em Lisboa […] para além desse programa de limpeza, a Câmara decidiu criar um espaço, decidiu criar a Galeria de Arte Urbana, que, de algum modo, promovia um diálogo com os diferentes elementos que pertenciam a essa comunidade artística. A Câmara começou a pensar que era importante não só limpar, mas também restaurar, salvaguardar, mas também, simultaneamente, começar a conhecer essas pessoas, começar a perceber como é que trabalham, e começar a dar-lhes oportunidade para se expressarem, e a se manifestarem de forma autorizada e legal”.

16 No dia 23 de agosto de 2013, foi promulgada em Lisboa, no Diário da República, a Lei n.º 61/2013, 1.ª Série, n.º 162, p. 5090, que “[…] estabelece o regime aplicável aos grafitos, afixações, picotagem e outras formas de alteração, ainda que temporária, das caraterísticas originais de superfícies exteriores de edifícios, pavimentos, passeios, muros e outras infraestruturas, bem como de superfícies interiores e ou exteriores de material circulante de passageiros ou de mercadorias”, prevendo coimas para os infratores que podem chegar a 25 mil euros. Disponível em http://dre.tretas.org/dre/311214/, [consultado em 20-07-2015].

17 Pierre Bourdieu, ao reportar-se à “crítica social do julgamento do gosto”, observa que a arte não é um prazer direto dos sentidos – assinala então que a relação de distinção é um componente acessório e auxiliar da disposição estética. O gosto é uma expressão dos sentimentos comuns que os homens comuns experimentam em sua existência comum (2013, p. 34). Mais que isso, os sistemas de classificação, os sensos de distinção, de julgamento e certificação ativados no campo artístico constituem também diferenças sociais, “[…] pretexto para desencadear lutas entre os grupos que, através de sua oposição, são definidos em suas características por esses sistemas […]” (2013, p. 442). Parte das distinções de gosto, o que define um “nós” em relação a “eles”, aos “outros”, como enfatiza Bourdieu, são lutas por classificação que contribuem para produzir as classes apesar de, paradoxalmente, serem, também, o produto das lutas entre elas. Para além do campo artístico propriamente dito, o gosto é uma disposição adquirida, mas também funciona como uma espécie de sistema classificatório que acaba por hierarquizar e distinguir os atores que compõem tanto a paisagem das artes como as demais esferas do mundo social.

18 Refiro-me à ideia de rizoma, desenvolvida por Deleuze e Guattari, como plano de produção de multiplicidades, sendo as linhas de fuga movimentos de desterritorialização pelas quais essas superfícies múltiplas fogem sem parar (1995, p. 18).

19 Conforme grafia nativa.

20 Com isso, de modo algum estou afirmando que a conexão entre as esferas presencial e digital é uma prerrogativa exclusiva às artes urbanas. Creio que, no caso das artes de rua, a esfera digital atua como uma espécie de outro espelho da cidade, fazendo reverberar o que potencialmente pode “sumir” rapidamente dos suportes materiais da cidade.

21 Machado Pais, refletindo sobre “Cotidiano e reflexividade” e as tensões do que se denominou de modernidade reflexiva, sinaliza o dilema em que se vê envolvido o sujeito na medida em que a modernidade remete para um mundo que é produção de sujeitos e, ao mesmo tempo, estes vão-se construindo a si mesmo como autores, num jogo de espelhos (2007, p. 37). Disponível em http://www.scielo.br/pdf/es/v28n98/a03v2898.pdf, [consultado em 11-08-2014].

22 Acompanhei, durante o ano de 2013, de forma mais sistemática, quatro artistas urbanos (Tinta Crua, Dalaiama Street Art, Tamara Alves, de Lisboa, e Hazul Luzah, do Porto), além de ter entrevistado mais quatro (MaisMenos, Slap, Nómen, Pantónio e Fidel Évora). Neste texto específico, tomarei como caso exemplar o percurso de Hazul Luzah na cidade do Porto e citarei passagens de conversas e entrevistas realizadas com Tamara Alves, Slap e MaisMenos.

23 É significativa a perceção de Lucrécia Ferrara sobre os usos urbanos. Ressalta a autora no livro O Olhar Periférico que o hábito é a sedimentação de um uso urbano. “Este uso habitual torna ilegível o lugar urbano e inibe a locução verbal; ao contrário, para ler o ambiente é necessário romper aquele hábito e surpreender-se ante o local do dia a dia” (1993, p. 21).

24 Jeff Ferrel, no texto Urban Graffiti: Crime, Control and Resistence, considera: “As they piece and tag, then, graffiti writers not only alter the look of the city and resist its structures of authotity, but at the same time create elaborate urban alternatives” (1995, p. 39).

25 Bennett, reportando-se aos seus estudos sobre práticas musicais, assinala a importância de se pensar o conceito de cena para além dos limites estritamente locais, de referenciais teóricos anteriormente utilizados, nomeadamente os que identificam tais práticas no âmbito da subcultura. Aponta o citado autor para possibilidades plurais de configuração desse conceito, ultrapassando-se as cenas locais e configurando cenas trans-locais e virtuais. Disponível em https://www.sfu.ca/cmns/courses/2011/488/1-Readings/Bennett%20Consolidating%20Music%20Schenes.pdf [consultado em 20-07-2014]. O referencial cena é também apreendido por Fernanda Eugênio no texto “Corpos voláteis: estética, amor e amizade no universo gay”, fazendo emergir a ideia de que ela “[…] é fluida o bastante para ‘aportar’ randomicamente nos mais diversos espaços” (2006, p. 159).

26 Disponível em http://jardimdasdelicias.blogs.sapo.pt/197954.html, [consultado em 07-08-2014].

27 Disponível em http://antropologizzzando.blogspot.com.br/2013/06/entre-paredes-materiais-e-digitais.html, [consultado em 10-08-2014].

28 No ano de 2013, o presidente da autarquia do Porto, Rui Rio, empreendeu aquilo que denominou de Brigada Antigrafito. Criou um grupo de voluntários para colaborar com o processo de “apagamento” dos graffiti e estabeleceu pesadas multas para quem infringisse a lei. Inclusive criou uma política de delação e de sanção para quem tivesse um muro grafitado e não denunciasse o autor. A foto tomada pelo próprio writer acendeu a polémica nas redes sociais. Disponível em http://www.porto24.pt/cidade/camara-do-porto-apaga-pinturas-na-rua-de-forma-indiscriminada/#.Ua5JuCs4oSh. Tudo isso está narrado de forma mais detalhada na publicação do blog Antropologizzzando do dia 22 de agosto de 2013: “Florescer da arte: o legal pode ser ilegal?”. Disponível em http://antropologizzzando.blogspot.com.br/2013/08/o-florescer-da-arte-o-ilegal-pode-ser.html, [consultado em 10-08-2014].

29 Pintar por cima, atropelar a obra de outro writer.

30 Produzir umgraffiti, ou uma tagpor cima da obra de outrowriter.

31 Para Ricardo Campos, o que sinaliza a diferença na prática do graffiti é o componente da transgressão. “Agir no território do proibido é, invariavelmente, algo que distingue o graffiti de outras formas de comunicação no espaço público” (2010, p. 81).

32 Tricia Rose (1997, p. 208) assinala a correlação entre a emergência do hip-hop e do graffiti como projetos de resistência e afirmação social: “[…] eles criam, sustentam, acumulam, estratificam, embelezam e transformam as narrativas. Mas também estão preparados para a ruptura e até encontram prazer nela, pois de fato planejam uma ruptura social”.

33 Utilizo aqui categorias utilizadas por Elias e Scotson (2000) na obra Estabelecidos e Outsiders.

34 Entrevista realizada com Hazul Luzah, na cidade do Porto, a 1 de novembro de 2013.

35 A abertura ocorreu no dia 20 de julho.

36Disponível em http://antropologizzzando.blogspot.com.br/2013/08/o-florescer-da-arte-o-ilegal-pode-ser.html, [consultado em 09-08-2014].

37 Vale ressaltar que ele, quando mais jovem, já fez bombing, que significa deixar tags estampadas nos comboios e metropolitano do Porto.

38 Disponível em https://www.facebook.com/eusouhazul?fref=ts, [consultado em 04-08-2014].

39 Hazul Luzah, numa publicação de 26 de abril de 2014, no seu perfil pessoal da rede social Facebook.

40 Slap, assim como outros writers, destacam-se em Lisboa como os “primeiros” a intervirem no Muro das Amoreiras (considerado um Hall of Fame, qual seja graffiti efetuado na maior parte das vezes em paredes legais, de grandes dimensões e com maior variação pictórica). É responsável, juntamente com Nomen e Kurtz, pela produção de um mural que marcou a vinda da chanceler alemã Ângela Merkel a Lisboa. Ela manipula as marionetes dos ministros portugueses Paulo Portas e Pedro Passos Coelho. Essa imagem foi reproduzida nos principais jornais impressos de Portugal. Disponível em http://www.opj.ics.ul.pt/index.php/maio-2013, [consultado em 10-8-2014].

41 Entrevista realizada com Slap em Lisboa, no final de novembro de 2013.

42 Slap é um dos dirigentes da Associação Portuguesa de Arte Urbana (Apaurb), responsável pela ação no túnel. Disponível em https://www.facebook.com/pages/APAURB/118261905010840, [consultado em 10-08-2014].

43 Foto publicada na página da Apaurb no Facebook no dia 19 de dezembro de 2013. Disponível em https://www.facebook.com/118261905010840/photos/a.120724714764559.1073741828.118261905010840/129320547238309/?type=1&theater, [consultado em 10-08-2014].

44 Alusão ao livro de Ricardo Campos, já citado: Por que Pintamos a Cidade?.

45 Refiro-me, novamente, à obra de Michel Serres (2001), Os Cinco Sentidos: Filosofia dos Corpos Misturados.

46 Entrevista realizada com a artista Tamara Alves, em novembro de 2013, na cidade de ­Lisboa.

47 Didi-Huberman, na obra O que Vemos, o que nos Olha, lembra que “[…] sem dúvida, a experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos a impressão de ganhar alguma coisa” (1998, p. 34). Isso significa que em quase nenhuma circunstância o olhar é uma ação passiva.

48 Acerca dessa condição de passividade do espetador, volto a insistir na ideia de que, muito embora Agamben e também Rancière sinalizem a importância das obras ativas, e algumas vezes façam alusão às tecnologias expositivas de natureza mais tradicional, no que tange aos recetores, a ação de ver não é uma simples mobilização da “máquina de perceber” – como enfatiza Didi-Huberman “dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito” (1998, p. 77).

49 O writer Tinta Crua enfatiza: “Se não fosse a internet, não se tinha conhecimento das minhas coisas, elas não têm vida muito longa na rua” (informação verbal).

50 São categorias usadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995): enquanto o espaço estriado organiza, segmenta e classifica, o espaço liso condensa uma potência de desterritorialização, da velocidade, do fluxo de forças.

51 Ver texto de Glória Diógenes na revista Cadernos de Campo, n.º 22, 2013, cujo título é: “Signos urbanos juvenis: rotas de piXação no ciberespaço”. “O jogo cria o inabitual dentro da cadência turva do cotidiano. Por tal razão, no ciberespaço, bem mais que no fluxo da multidão, os piXadores marcam reuniões ampliadas, ‘expõem’ seus arquivos de memória e exaltam o valor das assinaturas nas ‘folhinhas das agendas’” (p. 55).

52 “[…] while interaction in physical local scenes is at that face-to-face level, thus allowing for the exchange of both verbal communication, interaction in virtual scenes is based entirely around the exchange of written words, and occasionally images to support particular points made” (Bennett, 2004, p. 232).

53 Entrevista realizada com o artista Miguel Januário, na cidade de Lisboa, em 2013.

54 Entrevista realizada com Slap em Lisboa, no final de novembro de 2013.

55 Vítor Sérgio Ferreira, ao discutir a “arte de tatuar”, sinaliza que “[…] as mudanças recentes dentro do mundo da body art têm levado seus praticantes a tentar incorporar também estratégias de natureza mais formal” (2013, p. 73).

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