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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.216 Lisboa Sept. 2015

 

RECENSÃO

PIKETTY, Thomas

O Capital no Século XXI,

Lisboa, Temas e Debates, 2014, 912 pp.

ISBN 9789896443047

 

Elísio Estanque* e Ana Alves da Silva**

*Universidade de Coimbra, Faculdade de Economia, CES, Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087 — 3000-995 ­Coimbra, Portugal. E-mail: elisio.estanque@gmail.com

**Universidade de Coimbra, CES, Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087 — 3000-995 ­Coimbra, Portugal. E-mail: ana77silva@gmail.com

 

O Capital no Século XXI de Thomas ­Piketty (2014) convida-nos a uma análise do capital e das suas dinâmicas desde a génese do capitalismo moderno até à atualidade. Na linha de algumas das suas publicações anteriores, o autor retoma a questão da reposição das desigualdades nos estudos económicos, através de uma obra cuja leitura, mais do que nos suscitar questões sobre o futuro, nos deixa uma permanente sensação de irresolução do mesmo na encruzilhada do mundo atual.

Apresentando-a como uma obra de história económica, Piketty oferece-nos um texto disposto em quatro partes e 16 capítulos, que visam responder a um conjunto de questões sobre a produção da riqueza e a sua distribuição ao longo dos últimos 150 a 200 anos nos países mais desenvolvidos da Europa, bem como nos EUA e no Japão (sempre que os dados o possibilitam). A adoção de uma perspetiva de longo prazo tem em vista a realização de uma análise económica historicamente fundamentada em que o autor visa estabelecer pacientemente os factos e padrões e analisar com serenidade os mecanismos económicos, sociais e políticos suscetíveis de os pôr em evidência. Pretendendo interessar também a um público não especialista, Piketty começa por fazer uma apresentação dos conceitos de capital, de rendimento nacional e da sua inter-relação, indispensáveis à compreensão das suas análises ulteriores. É aqui que se prepara o leitor para o que se revelará ser uma análise patrimonialista do capital e das suas flutuações ao longo de mais de um século, da qual se concluirá adiante que, sem políticas que contrariem a concentração de capital, o Novo Mundo está talvez em vias de se transformar na nova Velha Europa do planeta.

De inegável mérito no esforço de compilação e análise de dados estatísticos, a obra possibilita um estudo num muito longo prazo de dados relativos à produção e ao rendimento do capital e do trabalho. Desse esforço de sistematização resulta a apresentação da primeira lei fundamental do capitalismo, que permite compreender que a parte do rendimento do capital no rendimento nacional é dada pelo rácio entre a taxa média de rentabilidade do capital e a proporção de volume de capital no rendimento nacional, o que deixa já adivinhar o papel dos patrimónios acumulados e da rentabilidade do capital na distribuição do conjunto do rendimento nacional. Os dados ­analisados por Piketty apontam para uma taxa média de rentabilidade do capital na ordem dos 5%, permitindo uma acumulação de capital em torno dos 600% do rendimento nacional num país desenvolvido. Significa isto que o país produz, em património acumulado, 6 anos do seu rendimento nacional, sendo este maioritariamente privado. É, todavia, ao observar a relação entre capital e rendimento no longo prazo, introduzindo na análise a variação do crescimento (da produção e da população), que é encontrada uma segunda lei dinâmica do capitalismo, segundo a qual a relação capital/rendimento depende das taxas de poupança e das taxas de crescimento económico.

As principais conclusões da obra podem resumir-se nos resultados da aplicação destas duas leis fundamentais aos dados disponíveis para vários países – a França e o Reino Unido, principalmente, mas também os EUA, a Alemanha, o Japão, entre outros. Partindo dessa análise da dinâmica de acumulação do capital nas diversas sociedades ao longo de um vasto período histórico, Piketty constata, na terceira parte da obra, que a taxa média de rentabilidade do capital tende a ser mais elevada que a taxa de crescimento da produção, do que resulta um processo de acumulação contínuo. A dinâmica do capitalismo, salvo num período compreendido entre o início da Primeira Guerra Mundial e o final dos Trinta Anos Gloriosos (1945-1975), demonstra que o principal mecanismo de perpetuação das desigualdades reside, precisamente, numa relação de longo prazo historicamente verificada, em que a taxa de ­rentabilidade do capital é sistematicamente superior à taxa de crescimento (r>g), ou seja, a acumulação financeira é maior que a economia ­produtiva.

A principal conclusão – de que o capitalismo atual está a tomar novamente a forma de um capitalismo patrimonialista altamente desigual, apenas verificado na Velha Europa do século XIX – advém da compreensão das implicações da dinâmica r>g e do reconhecimento de que esta tem uma relação direta com a herança. Explica Piketty que é inevitável que, com fluxos sucessórios na ordem dos 20%-25%, o património herdado na França, ao longo do período de 1820-2010, prevaleça copiosamente sobre o património poupado. Esta prevalência deriva essencialmente do efeito cumulativo do próprio património, determinado pela desigualdade na rentabilidade do capital que é, por sua vez, determinada pela própria dimensão do património. Significa isto que as condições objetivas de gestão do património possuído variam consoante a dimensão do mesmo, numa relação que confere maiores ganhos ao capital de maior dimensão através da obtenção de taxas de rentabilidade superiores – na ordem dos 7% – à taxa média de rentabilidade do capital (de 4% a 5%, enquanto os pequenos patrimónios conseguem taxas de rentabilidade de apenas 2%-3%). O processo de acumulação é, portanto, favorecido por um efeito de escala, em que os patrimónios de maior dimensão tendem, mantendo-se outras variáveis constantes, a capitalizar-se ainda mais intensamente que os de média e pequena dimensão.

Ora, caracterizando-se o capitalismo atual por taxas de crescimento fracas (inferiores a 1%), com uma taxa de poupança na ordem dos 10% (onde cabem as poupanças sobre capital herdado), e ainda uma taxa de rentabilidade média de capital na ordem dos 4% a 5% – gozando esta ainda de efeitos de escala patrimonial que a fazem ascender ou ultrapassar os 7% – torna-se portanto incontestável, conclui Piketty, que “a concentração patrimonial tenda para níveis tais que os rendimentos mais altos do capital herdado dominem largamente sobre os rendimentos do trabalho”. Daqui resulta o paradoxo meritocrático – só após várias gerações a acumulação de rendimentos do trabalho atingirá uma dimensão tal que a sua taxa de rentabilidade iguale os níveis médios de recapitalização dos patrimónios herdados.

É a partir da constatação de que a desigualdade r>g, somada ao efeito de escala dos patrimónios, pode suscitar uma trajetória explosiva da desigualdade, que o autor propõe um imposto mundial sobre o capital. Segundo Piketty, “a maneira mais simples e objetiva de proceder seria fazer evoluir as taxas de tributação em função das rentabilidades médias efetivamente verificadas no seio de cada classe de património durante os anos precedentes”. Não descurando uma reflexão sobre as dificuldades e exigências político-burocráticas suscitadas pela operacionalização da sua proposta, Piketty considera que a indexação da progressividade do imposto à rentabilidade média do capital possuído permitiria: (i) evitar o emprego de um imposto pesado sobre o capital possuído, que levaria decerto várias empresas à falência e à extinção de capital tributável ao cabo de poucos anos; (ii) gerar uma receita fiscal anual considerável, já que os patrimónios privados detêm uma proporção muito significativa do rendimento nacional dos diversos países e são, precisamente, os percentis superiores na detenção de riqueza os mais afetados pela lógica da progressividade do imposto; e, ainda (iii), regular o processo de agravamento da desigualdade e tendencialmente patrimonialista de acumulação de riqueza do capitalismo atual, determinado pela dinâmica r>g.

Pode constatar-se desde logo que, embora lhe faça algumas referências, Piketty não tem intenção de dialogar diretamente com a obra de Karl Marx. Não há tal intenção expressa e, em boa verdade, o autor declara-se vacinado contra qualquer discurso anticapitalista, considerando que o mecanismo de geração das desigualdades no capitalismo atual necessita de ser combatido recorrendo aos ideais sociais-democratas que estiveram na base da fundação do modelo social europeu. Afirma, portanto, que o esquema de tributação que propõe constitui a “resposta mais adequada para a desigualdade r>g e para a desigualdade da rentabilidade em função do capital inicial” dentro daqueles que são os limites de uma economia de mercado, pelo que o imposto mundial sobre o capital aparece como “a forma liberal de fiscalização do capital”.

Pese embora o mérito que se reconheça à obra, a sua leitura não deixa de suscitar algumas interpelações. Uma das mais prementes é, sem dúvida, relativa a uma manifesta contradição encontrada no pensamento do autor relativamente à historicidade dos fenómenos económicos. Se, por um lado, o autor a pretende restituir, parece por outro não escapar a um determinismo económico que, controversamente, retira história à própria historicidade dos fenómenos analisados. Uma segunda, na mesma linha, prende-se com o modo como a questão das desigualdades é reposta no seio da análise económica. Ora, sendo a obra uma tentativa assumida de contextualizar historicamente os factos económicos, cria-nos certa confusão, por exemplo, o facto de as flutuações económicas vividas no período dos Trinta Anos Gloriosos e da revolução conservadora dos anos 1970-1980 serem descritos como fenómenos determinantemente económicos, que aconteceriam independentemente dos contornos políticos que, em grande medida, condicionaram o rumo da história social e económica desses períodos (veja-se, por exemplo, as declarações feitas pelo autor logo no início da obra, pp. 151-154). Esta ideia retira motivação ao autor para fazer uma contextualização pormenorizada dos factos históricos que determinaram os contornos político-económicos e socioculturais que definiriam o rumo das políticas expansionistas do pós-guerra e da tendência conservadora no período tachteriano, após as crises dos anos 70. Motivação que é especialmente necessária para a exposição paciente dos factos que estão na base dos fenómenos (entenda-se estatísticas) económicos, bem como para a informação do leitor não especialista, a quem Piketty pretende, também, elucidar.

Por outro lado, a reposição das desigualdades no seio da análise económica – assunto que é de nosso especial interesse – é realizada com recurso a uma análise estatística extensiva que, embora tenha o inegável mérito de permitir compreender as ordens de grandeza envolvidas na desigual repartição de rendimentos do trabalho e capital – e entre um e outro fator –, peca em larga medida por enveredar, uma vez mais, por uma análise económica determinista. Tendência que, aliás, justifica a adoção de uma terminologia negligente de todo o património da ciência social (em especial sociológica) na análise das desigualdades sociais. Se a adoção de uma terminologia produzida no seio de outras ciências sociais poderia denunciar um dado pendor paradigmático, o certo é que a análise dos modos de produção dessas desigualdades não pode ser, grosso modo, reduzida a mecanismos como a dinâmica r>g ou à arbitrariedade na determinação dos supersalários, negligenciando todo um conjunto de “razões sociais” que estão na génese dos contornos assumidos pelos dados apurados pelo autor. A adoção de uma terminologia puramente estatística na abordagem das desigualdades (i.e., de percentis de população com dada proporção da remuneração nacional) visa “precisamente poder fazer corresponder desigualdades e épocas impossíveis de comparar de outro modo, e fornecer uma linguagem comum que em princípio será de aceitação ampla”. Ora, o problema está, com efeito, no facto de uma terminologia com base em decis e centis não carecer apenas de poesia – como ironiza o autor – mas também de todo um entendimento sociológico sobre a complexidade de fatores e dimensões que estruturam a dinâmica social de (re)produção das desigualdades e que negligencia, evidentemente, o facto de estas não se reduzirem a desigualdades remuneratórias (como bem demonstrou, entre muitos outros sociólogos, Pierre ­Bourdieu). Se retomar as desigualdades como objeto da economia é um propósito que louvamos, não podemos, porém, aceitar tal reducionismo, que estará assente no problema de fundo da negligência de um diálogo com outros domínios da ciência social.

Por último, resta ainda dizer que esta opção terminológica não se dissocia da contrariedade encontrada no pensamento do autor, que é relevada também no conceito de capital. Se o intento da obra é o de estabelecer os factos e padrões que restituem a historicidade aos fenómenos económicos, a ambição de adotar uma linguagem que permita comparar épocas incomparáveis anula, controversamente, a própria génese histórica dos conceitos. Comparar a flutuação do capital desde a antiguidade até ao início do século XXI é, de facto, um exercício que transforma o conceito de capital num conceito trans-histórico, que está para lá da própria determinação socioestrutural da realidade. Não é possível comparar sociedades que renumeram o trabalho com sociedades que não o fazem, da mesma maneira que não é possível analisar o capital numa sociedade não capitalista. Não só o modo de estruturação do social é profundamente diferente entre épocas historicamente determinadas, como só da incompreensão dessa fundamental distinção entre modos de organização social se pode assumir a utilidade de conceitos “trans-históricos”.

Em suma, esta obra de Thomas Piketty, para além do rigor e credibilidade da análise económica sistemática que nos apresenta, teve sobretudo o enorme mérito de conferir maior centralidade à temática das desigualdades no debate público atual, pondo em evidência uma serie de contradições estruturais do sistema capitalista global enquanto força indutora de assimetrias estruturais na distribuição da riqueza, sobretudo quando o princípio do mercado prevalece – como tem sido o caso nas últimas quatro décadas – sobre a capacidade reguladora e redistributiva do Estado.

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