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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.215 Lisboa jun. 2015

 

 

 

ENTREVISTA

José Mariano Gago, estudante e dirigente associativo

 

Entrevista com José Mariano Gago por Luísa Tiago de Oliveira*1

*ISCTE-IUL, CIES, Av. das Forças Armadas, s/n — 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: Oliveiraluisa.tiago@iscte.pt

 

Fim-de-semana. De manhã, o ministro da Ciência e do Ensino Superior, José Mariano Gago, acompanhou o presidente da República Popular da China, em visita oficial a ­Portugal, ao Mosteiro dos Jerónimos, onde foi levar uma coroa de flores ao túmulo de Luís de Camões. Depois, dirigiu-se ao Ministério, onde tinha combinado uma entrevista, necessária para um estudo sobre o ativismo estudantil entre 1945 e 1980, no âmbito de um projeto coletivo de investigação. Mariano Gago, político, cientista, professor, militante cultural, fora presidente da Direção da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico (AEIST) enquanto estudante, e era por isso que o queríamos ouvir, tal como o tínhamos feito com muitos ex-presidentes da AEIST, escolhidos em eleições com forte participação num tempo em que grande parte dos alunos do IST eram sócios da Associação.¶A entrevista durou várias horas, seguindo-se-lhe várias sessões de trabalho. Inicialmente, e dada a urgência, Mariano Gago leu e validou alguns excertos que lhe apresentei e que me eram necessários para citar no estudo. Meses depois, Mariano Gago reviu a longa entrevista, tendo em vista a sua publicação no livro digital que constituiu um dos resultados do projeto. Desta revisão resultou um texto extenso. Dias depois, pareceu-lhe desmesurado, pelo que cortou muitas e muitas linhas, enquanto remetia o texto maior, já revisto, mas carecendo, a seus olhos,de contextualização nalguns aspetos, para um trabalho futuro. Seguiram-se algumas trocas de textos. A versão mais curta saiu no livro digital; a que agora se publica contém elementos e reflexões adicionais; a versão maior ficou agendada para retomar num dia que não virá, pela sua morte injusta.¶Contudo, a revisão feita por Mariano Gago não se limitou a cortar a dimensão do texto. Conservou dúvidas ­relativamente a datas, como é próprio de qualquer conversa, e assumiu que o seu modo de entender hoje o tempo e os acontecimentos que narrava poderia não corresponder ao que percebia na época. Tentou retirar o que lhe parecia excessivamente pessoal, mas acabou por moderar essa vontade, dada a minha insistência e o facto de haver uma grelha de entrevista prévia, que apontava mesmo para “questões de facto”, para usar a terminologia clássica, colocadas em termos pessoais. Manteve passagens como as originadas por perguntas muito insistentes, o que é de sublinhar. E, entre as convicções e o “talvez”, as palavras desenharam mapas, percursos e mudanças.¶José Mariano Gago frequentou o IST, como aluno, entre 1965-1966 e 1970-1971, e no último ano letivo assumiu também funções enquanto monitor. Presidiu à sua Associação de Estudantes no ano letivo de 1969-1970.¶Ao entrar no Técnico, e em simultâneo na Faculdade de Letras, onde assistia a várias cadeiras, era um jovem já politizado pelo contexto familiar, pela rede informal do Liceu Camões, que envolvia alguns professores e alunos, e pelos círculos culturais que frequentava, como o do suplemento juvenil do Diário de Lisboa, em que colaborava, e os que se reuniam em alguns cafés. Chegado ao IST e à AEIST, encontrou um ambiente estudantil recessivo. Os estudantes conheciam um tempo de revezes na sequência de uma vaga de prisões ocorrida em 1964-1965, que contrastava com o vivido em alguns jornadas combativas no pós Segunda Guerra Mundial, na luta contra o Decreto n.º 40 900 e na crise académica de 1962.¶Os anos de 1967, 1968 e 1969, porém, marcam a transição para uma nova fase, que se prolonga até ao 25 de Abril. Neste período extremamente vivo do ativismo estudantil, a AEIST, uma organização muito importante no movimento estudantil pelas suas instalações, atividades e poder económico, reforçou o seu peso – algo logo visível aquando das cheias que assolaram a área de Lisboa em 1967. Nos finais dos anos 60, afirmaram-se novas bandeiras de luta, para além das reivindicações de mudanças no ensino, de liberdade e de democracia. Os estudantes queriam conhecer a realidade nacional, afirmando-o explicitamente, e também a realidade internacional. Discutiam com outra abertura a guerra colonial, a condição feminina, e mesmo a questão sexual. Denunciando os privilegiados, o ativismo estudantil considerava ter uma nova forma de olhar as associações, os estudantes e a vida, e queria intervir num mundo em transformação. Defendiam-se mudanças radicais na universidade e na sociedade.¶Lugar de grandes movimentações, greves e repressão no final dos anos 60 e nos anos 70, a AEIST constituiu também a casa-mãe de correntes marxistas-leninistas, designação então usada por grupos maoístas. A luta radicalizou-se, com os estudantes a recorrerem a greves prolongadas a aulas e mesmo a exames, distanciando-se alguns destes processos. Foi um ambiente marcado por tensões, negociações, e pela repressão, que só acabou com o 25 de Abril.¶Entretanto, já Mariano Gago acabara o curso e partira para fazer um doutoramento em Física das Partículas em França. Foram os passos concretos, específicos e diretamente experienciados pelo estudante do IST e presidente da AEIST José Mariano Gago que quisemos conhecer nesta entrevista.

 

LUÍSA TIAGO DE OLIVEIRA - Quais são os momentos mais marcantes do movimento estudantil que viveu, pessoalmente, enquanto estudante do IST?

JOSÉ MARIANO GAGO - Entrei no Técnico em outubro de 1965, com 17 anos, vindo diretamente do Liceu. Terminei o curso quando este estava a passar dos 6 para os 5 anos, no verão de 1971.

Se tivesse de situar um momento de mudança, provavelmente apontaria as cheias de 1967 e a ação do movimento estudantil nessas cheias como os factos mais relevantes. Há uma movimentação nas escolas e, designadamente, no Técnico, nos dias seguintes, para procurar saber o que se passa, para informar (contra a censura) e para ajudar as pessoas atingidas. Nessa altura, é a geração mais velha (ou mais implicada, não sei) que organiza esse movimento, que toma as decisões. Eu entro nessa ação apenas como estudante de base que vai para uma aldeia acima de Vila Franca, com uma pá, desenterrar o que houvesse para desenterrar. Passei alguns dias, ali, com colegas e amigos, não especialmente do Técnico.

Se hoje, de memória, quiser encontrar um momento-chave em que estudantes universitários, independentemente da sua divisão por faculdades, ou por cursos, independentemente das turmas, das áreas ou das escolas que frequentam, se encontram, se mobilizam, agem em conjunto e formam aquilo que se pode chamar um movimento, será este o momento fundador. É pois um movimento de generosidade e de revolta, de intervenção social e de formação de consciência política numa situação concreta em que saímos para fora (dos nossos meios sociais, da normalidade do dia a dia), em que se procura também informar, romper o cerco da censura, e perceber o que se está a passar. A criação e distribuição de um Jornal das Cheias darão uma voz escrita e um símbolo de reconhecimento interno a este movimento – e foi muito importante.

 

LTO - Nas cheias de 1967, viu cadáveres?

JMG - Desenterrava muitos cadáveres de animais. Nunca vi cadáveres de pessoas. Houve amigos que viram. Onde estive havia muita lama, muitos bichos mortos e muita destruição, mas não vi cadáveres de pessoas. Hoje, visto à distância, talvez possa dizer que este episódio coletivo ‒ a resposta às cheias pelo movimento estudantil de Lisboa (corporizado institucionalmente pela organização das Associações de Estudantes e da JUC, em conjunto) – tenha sido um elemento importante (decisivo? não sei), para a vontade de participar no trabalho da Associação de Estudantes. E julgo que não falo apenas de mim, mas de muitos colegas cujo envolvimento coletivo começou nessa altura.

É possível que eu me tivesse já aproximado mais da Associação e que tivesse procurado colaborar nas atividades culturais da Associação antes das cheias. Talvez, acho que sim, mas não sei ao certo. Se foi antes, foi pouco tempo antes. Se foi depois, foi pouco tempo depois. Não sei. Mas foi por essa altura.

 

LTO - Nessa altura, considerava-se politizado?

JMG - Sim. Tinha uma família de esquerda, sem intervenção partidária, o meu pai tinha ajudado no MUD e na campanha de Norton de Matos. Em minha casa falava-se de política e discutiam-se todas as questões. A minha mãe e o meu pai eram completamente antifascistas e de esquerda, educaram-me nesses valores e estimularam-me desde cedo a discutir tudo e, sobretudo, a abrir os olhos!

 

LTO - O que o levou a colaborar na secção cultural?

JMG - Não me lembro. Houve um momento em que decidi intervir na Associação de Estudantes. Acho que fui lá e disse que queria colaborar na secção cultural.

Se bem me lembro, escrevia então crítica de livros, de teatro, cinema – que me propus fazer para o Boletim da Associação. Em geral, correu bem. Recordo uma pega monumental com um “controleiro” do PCP da Associação que não achava graça nenhuma a esta nova geração de novatos, literatos e estetas. Achava-nos muito independentes para o seu gosto. E éramos, é claro!

Antes da crise do Técnico, em que entro verdadeiramente a sério no movimento estudantil, arranjei tempo para frequentar um curso de teatro que o Rogério Paulo fez durante um ano inteiro na Associação do Técnico. O curso de teatro foi muito interessante porque permitia, por exemplo, juntar muita gente, discutir teatro, aprender algumas coisas – básicas, obviamente, se comparadas com aquilo que os meus colegas do Grupo de Teatro da Faculdade de Letras estavam a tentar fazer. Mas foi uma aprendizagem importante. Aliás, nunca me esqueci quando o Rogério Paulo nos punha no ginásio da Associação dos Estudantes a ler uma fala de uma peça qualquer e ele se punha na outra ponta. E dizia:

— Não oiço, fala mais alto.

Eu falava mais alto e ele dizia:

— Mas essa fala não é a gritar, pois não? Essa pessoa está a falar baixo para a pessoa do lado, portanto, eu tenho de ouvir aqui e tu tens de falar baixo para a pessoa do lado.

Era uma aprendizagem de colocar a voz, de ter atenção a fazer-se ouvir. Isso foi muito importante para mim para falar em público. Só reconheci isso mais tarde. Isto é uma reinterpretação, na altura não percebi o que estava a acontecer.

Percebia que gostava de fazer aquilo, gostei muito de fazer uma encenação de Tchekhov, gostei muito também de ler clássicos modernos americanos de teatro e de descobrir na excelente biblioteca da Embaixada Americana, que ficava ali perto, coisas que eu nunca tinha visto e que não conhecia.

 

LTO - Há mais momentos marcantes que tenha vivido no movimento estudantil?

JMG - Durante 67/68, e no princípio de 68/69, começa a sentir-se uma mudança muito significativa nas condições do movimento estudantil, na sua “atmosfera”, na vontade de ação.

O Técnico é fechado em dezembro de 1968, antes do Natal, depois de um movimento reivindicativo quase sem importância que, se bem me recordo, tinha a ver com a gestão das cantinas e com a autonomia, coisas simples. Tudo se passa como se as circunstâncias, essas ou outras, apenas tivessem servido uma vontade coletiva de intervenção dos estudantes à procura de ocasião (e, quem sabe, reciprocamente, uma vontade de ação repressiva, de intervenção clarificadora, por parte de quem representava o regime). A hagiografia tradicional lembrar-se-á de um “congresso de estudos associativos”, em 67 ou 68, que francamente não me dizia muito. Parecia uma representação ritual ultrapassada, de outra época.

A situação muda, verdadeiramente, no dia em que, no meio de uma greve que se fez no Técnico, no final de 1968, o diretor decide fechar o Pavilhão Central e impedir-nos de ir para lá, o que fez com que, obviamente, ocupássemos o dito Pavilhão Central. Este foi o detonador (provavelmente poderia ter sido outro) concreto de uma expansão rápida do movimento estudantil, então meio parado e virado para dentro, e da sua conversão num movimento de grandes proporções, fortemente enraizado na mudança que estava a ocorrer na própria cultura juvenil.

De repente, o Técnico mobilizou-se, instalou-se no Pavilhão Central que o diretor tinha fechado, e mudou de natureza. Foi como se tivéssemos tomado o poder. A partir daí, nada ia ser como dantes. Mas, repare, isso não queria dizer que achássemos que o regime fosse acabar depressa, ou a guerra colonial. Éramos “estruturalmente” pessimistas a esse respeito, naturalmente, ao fim de tantos anos de barbaridade e de tanto imobilismo, de tanta gente ter tentado e falhado. Mas, visto agora, alguma coisa muito profunda tinha mudado – em nós mesmos.

 

LTO - E porque fechou o diretor o Pavilhão Central do IST?

JMG - Sei lá! Fechou porque teve medo, ou achou que a escola estava em risco, ou (na sua ideia) nós estávamos em risco. Em vez de deixar a greve decorrer normalmente, como já tinha acontecido algumas vezes, teve uma atitude que foi entendida como uma verdadeira provocação por toda a gente.

Mas pouco importava o pretexto. Eu diria que, do ponto de vista dos estudantes, havia uma vontade de ação coletiva que estava patente, sem se perceber bem o quê, e que tinha muito a ver com uma agenda que não tinha nada a ver com o antigamente.

Era a vontade de assumir uma dinâmica de juventude moderna.

Quando entrei no Técnico, trocavam-se impressões extraordinárias. Ainda hoje me recordo de uma moça que vinha do Liceu Dona Felipa de Lencastre que, pouco antes dos exames do 7.º ano, tinha sido posta fora porque tinha ousado entrar sem “meias de vidro” (como se dizia), o que era considerado uma total indecência… Vejam só, em junho, ir de pernas nuas para o Liceu!

A diferença de perceção entre a juventude e o poder institucional era de tal maneira grande nesse momento que eu julgo que os intérpretes do poder não se apercebiam que alguma coisa tinha mudado profundamente na sociedade e nesta juventude, designadamente em Lisboa. Não encontrei esta diferença tão acentuada, por exemplo, em Coimbra, mas em Lisboa o mundo tinha mudado sem que muitas das pessoas que estavam à frente das instituições e que, de alguma maneira, representavam aquilo que podemos chamar “o poder” se tivessem, de todo, apercebido.

Os anos de 67/68 são (mais ou menos) o período da abertura das lojas Porfírios na Baixa, onde se começam a vender jeans. É o período em que as operárias da Standard Electric de Cascais, as moças do Liceu e, sobretudo, da Universidade, pela primeira vez na história portuguesa, passam a vestir-se quase da mesma maneira, fenómeno que no resto da Europa tinha começado a acontecer 20 anos antes, no pós-guerra. Esta mudança de atitude da juventude, de valores, de exposição e de comportamentos, mas também de não perceber o que está a fazer aqui, neste mundo português fechado e atrasado, de dizer “eu não tenho a ver com este mundo”, esta sensação é o que me parece marcar a enorme viragem mental destes anos. E não foi assim também, à sua maneira, nos Estados Unidos, nesses mesmos anos, ou na Europa do Maio de 68? É como se as mudanças sociais e culturais que ocorriam um pouco por toda a parte também, desta vez, nos tivessem dentro.

Talvez as cheias tenham permitido, de uma forma muito diferente do que era habitual e de que nem sequer o movimento associativo se deve ter apercebido, estar perante um grande movimento público de generosidade e solidariedade com outros, mas que, de facto, era o princípio de uma história diferente, de uma maneira de ser coletiva diferente. Não tinha nada a ver com reivindicações tradicionais mas, pura e simplesmente, com outra forma de estar na vida.

E há uma mudança total. Nessa altura há muitos dirigentes estudantis da geração anterior que demoram algum tempo a perceber que, de facto, o que têm perante eles é um movimento muito diferente do habitual. Não estamos perante lutas a defender a autonomia das eleições nas associações académicas ou a liberdade de associação, ou contra o Decreto n.º 40 900. Não estamos a fazer as tradicionais movimentações para defender a autonomia universitária ou os colegas presos. Não é nada disso, ou melhor, não é apenas isso.

É mais profundo. Tem a ver com querer viver num país diferente. E, mais, talvez a convicção (acho que é a primeira vez que existe no movimento estudantil português) de que isso é possível, o que faz os mais velhos olharem para muitos de nós com horror. Para eles, éramos uns completos patetas que não sabíamos o que estava para vir, que isto era uma desgraça, que íamos fazer com que fossem fechadas todas as associações, que não sabíamos o que era defender as conquistas que tinha havido nos anos anteriores e éramos uns completos irresponsáveis. Há aqui uma diferença de uma geração que, de alguma maneira, prenuncia o 25 de Abril. É uma geração que não só não quer viver num mundo assim, e acha que vai mudar tudo na vida quotidiana, na relação com a autoridade, com o estudo, com a forma de vestir, na relação entre rapazes e raparigas, como também que isso vai mesmo acontecer. Nós queremos ser iguais aos outros países e achamos que isso vai mesmo acontecer cá.

Essa convicção profunda que se instala é um prenúncio de uma mudança social em Portugal que, provavelmente, provoca uma enorme rutura de atitude desta geração com gerações anteriores de responsáveis associativos. Não estão contra, mas não percebem que se possa pensar assim. Nós não pensávamos, de maneira nenhuma, em termos políticos, conspirativos e organizativos, pensávamos em termos de sociedade e de vida.

É muito interessante verificar que, nesse pequeno episódio de dezembro de 68, em que é fechado o Pavilhão Central e nós o vamos abrir – quando eu digo “nós” significa que, de repente, houve um grupo de pessoas que podiam estar quietas, mas que ficaram indignadas –, explode um sentimento de indignação que se vai tornar, a seguir, o grande motor do movimento estudantil.

No meu caso pessoal, é esse sentimento que motiva uma intervenção muito mais ativa. Quando, no final de dezembro, chego ao Instituto Superior Técnico depois das cenas que vou contar e, de repente, encontro o Técnico fechado, com carros de assalto e com polícia por todo o lado, fico verdadeiramente indignado, furioso. Esse mesmo sentimento de indignação impele à ação. O mesmo acontece com grande parte dos meus colegas em todas as outras escolas, e pouco tem a ver com a história do movimento Estudantil anterior e com a atividade político-partidária que nele existira acentuadamente mas que, nessa altura (1968-1969), estava muito reduzida com as prisões e expulsões de 62 e, depois, de 64 e 65.

A partir do momento da ocupação do Técnico pelos estudantes, rapidamente o Pavilhão Central se converte numa espécie de local de assembleia-geral permanente.

 

LTO - Essa ocupação é a resposta ao fecho do Pavilhão Central?

JMG - O Pavilhão Central é reaberto por nós. Somos nós que arranjamos um sítio por onde entrar e abrimos as portas. Há uma desobediência absoluta e, a partir desse momento, passamos a tomar conta da escola e a decidir o que fazer. E é interessante que uma das nossas primeiras decisões, talvez a mais simbólica, tomada nas primeiras horas depois da ocupação, e que curiosamente mais tarde vai ser um pretexto para o fecho do Técnico decidido depois pelo governo, é o fim da “sala das alunas”.

No Pavilhão Central do IST, havia uma sala reservada, que se chamava “sala das alunas” e que, na brincadeira, todos nós, rapazes e raparigas, nesse ano chamávamos “o gineceu”. Essa sala ficava no sítio onde está hoje o princípio da Secretaria (no Pavilhão Central, à esquerda). Uma das primeiras decisões de grupo foi dizer: “vamos acabar com aquilo!”.

Juntaram-se muitas pessoas, rapazes e raparigas, entraram e, simbolicamente, acabaram com o “gineceu” de forma engraçada mas muito difícil de compreender por quem está de fora. Aliás, tem um significado que nenhum dos próprios protagonistas podia, na altura, compreender. Era preciso um ato simbólico na forma de agir, não era apenas entrar lá. Houve quem fosse buscar papel de cenário e, perante o aplauso universal de uma ou duas centenas de pessoas que se meteram naquela sala, escreveu-se uma faixa que se afixou na parede e que dizia “Viva a revolução sexual!”.

Essa faixa acabou por ser fotografada e a fotografia publicada, salvo erro, no Diário da Manhã, órgão de imprensa afeto à União Nacional, junto com o comunicado do Governo, quando uns dias depois o Técnico é fechado, dando como justificação a depravação a que se tinha chegado e que tinha justificado a intervenção das autoridades! Mas era um grito de alma.

 

LTO - Já tinham lido Wilhelm Reich?

JMG - Alguns sim, outros não. Claro que há muitos elementos que contribuem para aquele ato mas, naquele momento, houve um ponto de viragem que tinha a ver com o facto de a sexualidade ter aparecido numa juventude que, no essencial, se queria livre, mas que (na sua maioria) era ainda muito casta e estava a descobrir, pouco a pouco, a sexualidade. Era uma sexualidade tardia, a nossa, por padrões europeus da época. E, ainda mais paradoxal, talvez a maioria dos rapazes e raparigas que estavam naquela sala, nunca tinham tido relações sexuais e vão tê-las provavelmente, pela primeira vez, no ano seguinte, com 18/19 anos.

 

LTO - O que já mostra uma mudança no comportamento dos homens porque, em gerações anteriores, poderiam já ter tido relações sexuais mas de outro foro.

JMG - Exatamente. Poucos seriam os rapazes que estavam ali que alguma vez tinham recorrido à prostituição. Também já me perguntei como é que o Maio de 68 tinha chegado a Portugal.

 

LTO - O cartaz “Viva a revolução sexual!” é escrito em Dezembro de 68, portanto, no pós-Maio de 68…

JMG - O Maio de 68, aparentemente, passa muito longe. Não há informação e poucas pessoas lêem jornais ou revistas estrangeiras. Pouco antes dessa crise (talvez no outono de 1968), há uma noite memorável em que se fala sobre o Maio de 68 na cantina do Técnico. Juntaram-se umas centenas de estudantes simplesmente para tentar perceber o que estava a acontecer. Um ou outro que trazem informações, uma revista, uma canção, um slogan.

Estamos a falar de um país, Portugal, que está a uma distância incomensurável do resto do mundo, bloqueado pela censura, pela repressão.

O que eu acho aqui de realçar, por um lado, é o sentimento de que ainda hoje me recordo, quase de humilhação por estar fora do mundo e por ser mantido à distância do mundo, e, por outro lado, o fortíssimo sentimento de pertença a esse mundo exterior e não a este onde estávamos. Aquela juventude, a minha juventude, pertencia já a outra geração, a sua alma estava noutro sítio. De certa forma, nós, aqui tão tolhidos e reprimidos, afastados de tudo, já éramos como se fossemos os outros, já éramos como os outros, já éramos europeus antes de o ser, modernos antes de nos termos libertado, e até estávamos a tentar descobrir como sermos democráticos sem democracia no país.

Era a geração dos Beatles, que via filmes do Godard. Tínhamos poucas referências e estávamos a reinventá-las. Não se tratava de copiar. A maioria dos estudantes – estou a falar do Técnico – tinha contacto com cinema e música, mas o contacto com a literatura ou a imprensa era muito reduzido. Havia o turismo estudantil, é certo, mas a sua explosão dá-se também nessa altura. Se perguntar se algum, de entre centenas de estudantes, conseguia, de vez em quando, ler um jornal ou uma revista que viesse de França, ou, ainda menos, de outro país europeu, diria que “talvez um ou dois”. Não era muito significativo. Mas havia um movimento e uma transformação na sociedade portuguesa que nos tocava a todos e que ressoava especialmente entre os estudantes, mesmo sem nos apercebermos, e que resultou no símbolo daquela faixa escrita na antiga “sala das alunas”.

 

LTO - Continuando a falar sobre a ocupação do Pavilhão Central do IST em dezembro de 1968…

JMG - Esse período de poucos dias até o Técnico fechar, creio que num fim-de-semana, é um momento de grande discussão interna, de troca de informações e descoberta do que é estar num coletivo vivo e em movimento. Não me recordo de quase nada desses debates. O que me recordo bem é de, num dia de manhã, ter vindo de minha casa de autocarro – nessa altura já estávamos a viver nos Olivais –, ter chegado ao Técnico e ter descoberto que a escola estava fechada e ocupada, com dois carros de assalto bem à vista, soldados com metralhadoras por todo o lado, um horror! Lembro-me de que nem desci do autocarro, de ter ido à procura dos colegas, e de termos dado corpo à indignação que sentíamos.

 

LTO - Em que ano letivo estava?

Talvez no princípio do 4.º ano letivo – os cursos eram então de 6 anos. Não sei se, nesse dia ou no seguinte, houve um plenário em Económicas. Os estudantes do Técnico, aqueles mais ativos, começaram a juntar-se noutros sítios e o movimento estudantil mobilizou-se noutras associações de estudantes. Eu comecei a ir e a participar em tudo.

 

LTO - Portanto, o fecho do IST foi um momento crucial?

JMG - Para mim, foi um momento crucial de indignação.

 

LTO - A palavra-chave é “indignação”?

JMG - Sim. Visto à distância, diria que era uma indignação depois da repressão de um movimento essencialmente de afirmação juvenil, de tomada de consciência, de vontade de afirmação, também, de querer uma vida diferente e querer estar num mundo diferente. A partir daí, a história acelera-se muitíssimo.

Num dos primeiros plenários associativos que junta representantes de associações e onde estou, está tudo muito indignado e aquela reunião já não é só de direções de associações de estudantes, é de toda a gente que quer aparecer. É por isso que eu lá estou, como muitos outros, sobretudo do Técnico. Salvo erro, isto passa-se em Económicas e lembro-me de, a certa altura, o secretário da RIA, por Letras, dizer:

— A gente não quer que isto seja Nanterre!

Foi recebido com uma gargalhada geral. Até que alguém sussurrou:

— Mas nós queremos!

Há uma mudança. Nessa altura, muitos dirigentes estudantis da geração anterior demoram a perceber que, de facto, o que têm perante eles é um movimento muito diferente. Não estamos perante lutas a defender a autonomia das eleições nas associações académicas ou contra o decreto sobre as liberdades de associação. Não estávamos a fazer as tradicionais movimentações para defender a autonomia universitária ou os colegas presos. Nada disso. É mais profundo. Tem a ver com a vontade irreprimível de querer viver numa sociedade diferente.

E, mais, talvez também tenha a ver com a convicção – provavelmente pela primeira vez, no movimento Estudantil em Portugal – de que isso era mesmo possível! Por isso, muitos dos mais velhos olhavam para nós com horror. Para eles, éramos uns completos patetas que não sabíamos o que estava para vir, que este movimento estudantil era uma desgraça, íamos fazer com que ­fechassem todas as associações, não sabíamos o que era “defender as conquistas” das gerações anteriores e que éramos portanto uns completos irresponsáveis. Simplesmente, nós não estávamos organizados em partidos ou grupos políticos. Há aqui uma geração que, de alguma maneira, parece prenunciaro 25 de Abril. É uma geração que não só não quer viver num mundo assim e quer mudar tudo na vida quotidiana, a relação com a autoridade, com o estudo, a forma de vestir, a relação entre rapazes e raparigas, como verdadeiramente acha que isso vai mesmo acontecer. Nós queremos ser iguais aos outros países e achamos que isso vai mesmo acontecer cá.

Essa convicção profunda que se instala parece anunciar uma mudança social em Portugal que, provavelmente, provoca também uma enorme rutura de atitude desta geração com gerações anteriores de responsáveis estudantis que não estão propriamente contra, mas não percebem que se possa pensar assim. Nós não pensávamos, pelo menos nessa altura (vai ser diferente depois), em termos políticos, conspirativos e organizativos, pensávamos em termos de sociedade e de vida.

 

LTO - Como evolui a situação?

JMG - Creio que o Técnico vai estar fechado durante as férias do Natal e vai reabrir, para as aulas, em janeiro com a Direção da Associação de Estudantes suspensa, com as contas da Associação de Estudantes bloqueadas, e com o Instituto Superior Técnico a pagar diretamente aos funcionários da Associação, da cantina, da tipografia, etc., ou seja, com uma Associação de Estudantes tutelada diretamente.

Anuncia-se a abertura de processos disciplinares aos dirigentes da Associação de Estudantes. Nessa altura, era presidente da Associação o Luís Leitão, que no final desse ano irá com mais dois colegas para a Alemanha. Teme-se que venham a ter processos disciplinares, que venham a perder o ano, e que possam ser presos mal o movimento esmoreça. Há uma oferta que é feita através de Mário Soares, que fala com Willy Brandt, e que nos faz chegar a mensagem de que, se houver estudantes que queiram ir para a Alemanha, a Social-Democracia Alemã tratará deles e dar-lhes-á um estatuto de refugiado se for caso disso, ensina-lhes alemão, põe-nos nas universidades, oferece-lhes uma bolsa de estudos, etc. E há três estudantes, dirigentes da antiga direção da Associação de Estudantes do IST, que decidem aceitar e ir. Ainda os visito, no ano seguinte, em Stuttgart.

 

LTO - A Associação está então fechada?

JMG - Está e não está. Está “formalmente” fechada mas tem de reabrir porque é no seu interior que estão a cantina e os serviços que têm de funcionar. A partir de certa altura, fica aberta, mas sem direção e sem autonomia, e cria-se rapidamente uma espécie de “movimento associativo no exílio”.

 

LTO - O que era esse “movimento associativo no exílio”?

Cria-se uma comissão que decide não só organizar-se numa espécie de direção clandestina da Associação, como também ter um boletim que imprime fora do Técnico e que distribui dentro do Técnico. Cria-se, portanto, um movimento para-associativo que conduziu e manteve um movimento dentro do Técnico, a partir de estruturas de base, eleitas nos cursos e nas turmas, com delegados, e a partir de uma pequena estrutura central que faz um boletim. Este processo durou até ser, finalmente, autorizada a realização de eleições para a Associação dos Estudantes e, de certa forma, vai aliás renovar a própria associação de estudantes e o seu funcionamento.

Quando é autorizada a realização de eleições, há muita discussão entre as pessoas mais ativas e que fazem parte deste movimento que, durante estes meses, aguentou a participação dos estudantes do Técnico no movimento estudantil de Lisboa e mesmo dentro do Técnico. Eu sou uma dessas pessoas e convencem-me a aceitar ser candidato a presidente da Associação de Estudantes, nessas eleições de maio de 1969. Julgo que era preciso perguntar à geração das pessoas mais velhas que estavam prestes a sair da escola, colegas e amigos meus que nessa altura estavam no 6.º ano, porque é que me tinham empurrado para ser eu o presidente da Associação. Eles não podiam ser candidatos porque estavam a acabar o curso. Mas, dentro do movimento estudantil, eu era um recém-chegado. Quer dizer, não tinha uma história de anos, não tinha andado por lá, a não ser marginalmente nas atividades culturais, não tinha estado em direções anteriores. Era, claramente, um outsider. Tinha, verdadeiramente, aparecido no movimento estudantil apenas no fecho do Técnico, na altura da crise, uns meses antes.

 

LTO - Qual era, então, o grupo que o escolhe para ir para a frente?

JMG - Era simplesmente o grupo de estudantes que tinha tentado manter organizado o movimento estudantil no Técnico nos últimos seis meses.

 

LTO - Nessa altura, onde está o anterior presidente da direção da Associação, Luís ­Leitão?

JMG - O Luís Leitão ainda estava connosco, mas já a preparar a saída de Portugal. Creio ter havido da nossa parte, também, a vontade de proteger, tanto quanto possível, quem tinha estado na antiga direção da Associação e de não os expor demais, porque já tinham estado suficientemente expostos.

 

LTO - Não há tensão com a anterior direção?

Não há nenhuma tensão, antes pelo contrário, todos somos grandes amigos. Hoje diria que há um movimento que se gera a partir do movimento ­estudantil e da movimentação de base que existe no Técnico. Nesses meses, decide-se ­reatar a vida associativa, tomando conta da direção da Associação. Com a gente que sai desse movimento. É o único movimento que é reconhecido dentro da escola, porque foram as pessoas que mantiveram o movimento estudantil vivo e organizado durante aqueles meses.

 

LTO - Como forma a sua lista?

JMG - Foi uma lista feita coletivamente, ao que me lembro, e discutida entre o grupo organizador, onde se discutiu quem deveria ou não estar. Certamente que os mais velhos (os que acabam então o curso) devem ter tido um papel preponderante nas escolhas. Era preciso perguntar-lhes.

 

LTO - Como decorreu a campanha? Houve oposição? Os resultados foram bons?

JMG - Não houve oposição, ninguém queria oposição. Houve uma enorme unanimidade e uma taxa de participação gigantesca. Correu muito bem.

 

LTO - Como foi o primeiro dia como presidente da Associação?

JMG - Foi extraordinário porque, a partir daí, havia uma responsabilidade muito mais direta do que organizar reuniões nas turmas, escrever e distribuir papéis. Já não era isso. Era mesmo tomar conta de uma instituição.

Nessa altura, a Associação de Estudantes do Técnico era uma estrutura que tinha a seu cargo cerca de duzentos e tal funcionários, muita gente portanto: contabilidade: secretaria, reprografia (todas as “folhas” eram feitas pela Associação de Estudantes), cantina, turismo, desporto, etc.

Ser presidente da Associação dos Estudantes do Técnico era dirigir uma média empresa. Como descobri muito rapidamente, tinha um orçamento na ordem da grandeza do orçamento do Técnico, não só por ter a seu cargo muitas pessoas, mas por causa da secção do turismo estudantil. O representante de ­Portugal no turismo estudantil internacional era a secção de turismo do IST.

O turismo de estudantes tinha começado um ou dois anos antes a ter uma importância significativa em Portugal. Fretavam-se aviões e muitos estudantes iam para campos de férias noutros países. Os anos 60 foram anos de mobilidade estudantil na Europa, que também chegou a Portugal, que participava nesses consórcios de fretamento de aviões, de vender bilhetes a preços muitíssimo baixos a estudantes, que ficavam em pousadas de juventude ou iam trabalhar durante as férias. Esse movimento estava a atingir grande dimensão. Quando tomámos conta da Associação, em maio, a situação era caótica. O verão estava à porta (era quando voavam os aviões que fretávamos), as contas bancárias estavam bloqueadas há cinco meses, desde o fecho do Técnico, os pagamentos internacionais não eram feitos e havia reservas – estamos a falar de dezenas de aviões fretados – que se arriscavam a ser todas canceladas. ­Portanto, e neste sentido, já não estamos a falar de uma empresa pequena.

A direção anterior tinha procurado profissionalizar, e bem, a secção de turismo estudantil. Havia um jovem sueco que veio trabalhar para Portugal, era um autêntico profissional; havia funcionários competentes de turismo, administração, etc. Era uma pequena agência de turismo dentro do corpo da Associação dos Estudantes; portanto, muito depressa foi preciso tomar decisões nessa matéria.

Lembro-me que percebi muito depressa que tinha de dedicar muito tempo e energia a, por um lado, aprender como se fazia, depois, a resolver os problemas da gestão interna da Associação dos Estudantes, e, em terceiro lugar, resolver o problema do turismo estudantil que, na altura, era absolutamente crítico para a sobrevivência do próprio movimento estudantil português.

A Associação dos Estudantes do Técnico era a mais rica do país por causa do turismo estudantil, facto que só percebi nessa altura.

O facto de ter o turismo estudantil dava-lhe a possibilidade, que nunca tinha sido explorada, de se apoiar em fortes relações internacionais. Quando entrámos na Associação do Técnico, a estratégia foi dizer: “o turismo estudantil é uma bênção dos céus e vai permitir internacionalizar e criar uma relação do movimento estudantil em Portugal com o resto da Europa”.

Voltando à situação financeira da Associação. Para conseguir desbloquear as contas bancárias, a Direção da Associação de Estudantes pediu uma audiência ao então ministro da Educação. Fomos recebidos pelo José Hermano Saraiva, mas não serviu de nada.

A questão resolveu-se através do Banco Português do Atlântico, onde tínhamos as contas da Associação. O José Bernardino, militante do PCP, tinha acabado de ser solto da prisão onde estivera anos e, durante algum tempo, teve emprego na Associação de Estudantes do Técnico como contabilista – mais tarde foi-se embora para o estrangeiro. Na altura, ele ofereceu-se para fazer um contacto com o Vasco Vieira de Almeida, que trabalhava junto à administração do Banco Português do Atlântico, e que ele conhecia. Eu andava à procura de contactos para a direção do Banco Português do Atlântico e o José Bernardino, um dia, em conversa, disse: “Ah, mas eu conheço o Vasco Vieira de Almeida que trabalha lá. Se quiseres, vamos lá”. E fomos sem avisar. Chegámos à porta do Banco Português do Atlântico, na Baixa, e dissemos: “Nós queremos falar com o Dr. Vasco Vieira de Almeida; importa-se de dizer que estão aqui duas pessoas para falar com ele?”. Cinco minutos depois, fomos recebidos pelo Vasco Vieira de Almeida que então conheci pela primeira vez. Fui apresentado, expliquei o que se passava e ele respondeu: “Eu vou falar com o Dr. Cupertino e depois digo”. Veio e disse: “O Dr. Cupertino acha que isto que vos está a acontecer não faz sentido e não pode continuar; e vai tratar dessa matéria com o senhor Presidente do Conselho”.

E, um dia, as contas foram desbloqueadas e pudemos começar a fazer pagamentos. A seguir a isso, tivemos ainda outros episódios dramáticos, ou caricatos, como se quiser.

 

LTO - Como explica o empenho do banqueiro Cupertino de Miranda em ajudar a Associação em última instância?

JMG - Acho que Cupertino de Miranda era um anti-salazarista. Era um homem que nos achava graça, pensava que nós é que tínhamos razão e que o mundo não ia para aquele lado, mas ia muito provavelmente no nosso sentido. Acho que era isso.

Um exemplo: há um cheque nosso, de montante muito elevado, que nunca chega ao destino. Nessa altura, os pagamentos eram feitos em cheques emitidos nos bancos e mandados em correio registado para o destino. Não sei porquê. A PIDE desvia-nos a correspondência e liquida-nos assim um pagamento. E, mais uma vez, o Banco Português do Atlântico resolve o problema. Emite um segundo cheque e assume o risco que isso representa. Estamos a falar de muito dinheiro, dinheiro para fretar uns dez aviões ou coisa assim do género. Falei com o Banco e foi o próprio Cupertino de Miranda que tomou a decisão: “Emitam um segundo cheque”.

 

LTO - Em que ano vos dá essa cobertura?

JMG - Em 1970. É já depois do congresso do turismo, quando as operações estão a correr, quando já está tudo a começar a funcionar e nós pagamos.

 

LTO - É uma clara aposta.

JMG - Sim, é uma clara aposta. Não tenho a mais pequena dúvida disso!

 

LTO - José Bernardino era a única pessoa perseguida pelo regime que tinha conseguido um emprego “solidário” na AEIST?

JMG - Não, claro. Por exemplo, o Zeca Afonso, de quem fui muito amigo, era professor mas, quando deixou de ser autorizado a dar aulas nas escolas públicas e também nas privadas, já quando morava em Setúbal, foi contratado como professor de Judo na Associação de Estudantes do Técnico – salvo erro, ele era cinturão negro!

 

LTO - É impressionante o orçamento da Associação de Estudantes ser igual ao do próprio IST!

JMG - É. Mas não esqueça que pesa aí, sobretudo, a componente do turismo e do fretamento de aviões que era muito elevada. Havia também um número muito grande de funcionários na Associação; não me lembro quanto era a massa salarial, mas era certamente muito grande. E o Técnico de então quase não tinha investigação; o orçamento do Técnico é que era pequeno!

Hoje, a sensação que tenho é que tive de aprender tudo. Aprendi com os funcionários responsáveis das diferentes secções. Foi a primeira vez na minha vida em que tive de fazer, de facto, como normalmente se faz numa empresa: ver qual a estrutura que existe, falar regularmente com os responsáveis das secções, ir aos sítios… Nessa altura, talvez, o que eu tenha aprendido mais e que fiz espontaneamente, porque não sabia, e acabei por ir fazendo ao longo de toda a minha vida, foi não ficar quieto à espera que alguém viesse ter comigo, ir a todas as secções e falar com os responsáveis, falar com todos os funcionários e tentar fazer disto uma rotina regular para compreender o que é que estava a acontecer em cada um dos sítios.

Aprendi na Associação o que hoje se diria ser um instrumento moderno de gestão: gestão participada, procurar trabalhar com as pessoas responsáveis pelos setores, procurar reuni-los, procurar saber um a um e fazer disto uma rotina.

 

LTO - Esse modo de agir como presidente esteve relacionado com as cheias?

JMG - Não sei se tem a ver com as cheias, se com a época, se com a procura do que é ser de esquerda.

 

LTO - Será a valorização da prática?

JMG - Talvez, de práticas sociais de proximidade, de procura dos outros, de criação de comunidade, não sei.

 

LTO - Nesse contexto, o peso do turismo estudantil nas atividades da AEIST era mesmo grande.

JMG - Tinha um peso absolutamente decisivo, e não apenas financeiro, o seu papel era central para a estratégia “política” que procurei desenvolver.

Há um episódio muito interessante, quase um acaso, muito curioso. No seu início, não tem a ver comigo diretamente. Quando o Técnico estava fechado, ou pouco tempo depois (portanto no final de 68 ou no princípio de 69), vem a Lisboa um casal sueco, dirigentes nacionais, na Suécia, da União de Estudantes Escandinavos, e querem saber o que se passa no movimento estudantil português. Este primeiro contacto deve ter sido apenas a base para uma notícia num boletim da união escandinava dos estudantes sobre o que se estava a passar em Portugal, no movimento estudantil português, sobre o fascismo português, a guerra colonial etc…

Mais tarde, a memória deste contacto vai fornecer o primeiro ponto de ancoragem em que nos vamos apoiar para tentar resolver o problema (internacional) do turismo estudantil português e, a partir daí, construir uma estratégia de abertura internacional.

A ideia foi esta: nós precisamos de aliados, temos isto muito atrapalhado e é absolutamente crítico não largar o turismo estudantil. Havia fortíssimas pressões de organizações estatais para tomar conta do turismo estudantil. O governo português tinha tentado, junto das instâncias internacionais, que o monopólio deste turismo deixasse de ser da Associação de Estudantes do Técnico e passasse a ser entregue a uma organização estatal. Mas o movimento estudantil internacional, que controlava o turismo estudantil internacional, tinha recusado sempre, ou seja, tinha sempre defendido as associações de estudantes portuguesas contra o governo. Mas era preciso retomar, revitalizar o turismo. Estávamos numa situação fragilíssima e os nossos amigos suecos, havendo na altura muito fluxo turístico de Portugal para a Suécia (também havia para Inglaterra), podiam talvez ajudar-nos.

Organizo então uma ida à Suécia para tratar do turismo estudantil e esse casal dá-me realmente uma lição de vida.

 

LTO - Porque considera que a ida à Suécia foi uma lição de vida?

Pela primeira vez, vejo o que é a vida quotidiana numa sociedade civilizada e moderna. Vou às compras, ando com as pessoas e participo nas conversas que têm. Todas as vezes que eu ia para a Suécia, e fui muitas vezes, toda aquela gente falava entre si inglês por boa educação, para eu os entender. Hoje percebo a sua enorme delicadeza de propósitos. Aprendi a conhecer (e a admirar) uma sociedade que ignorava existir. Nessa altura, que viagens tinha feito? Conhecia Espanha desde pequenino, tinha ido a Santiago de Compostela, a Córdova, a Sevilha, etc. Em criança, Espanha dava-me a ideia de um país bombardeado, ainda não reconstruído, pobre. Tinha ido a França e a Londres e viajado com os meus pais e com os meus tios sistematicamente por Portugal. Não conhecia as ilhas. Este era, mais ou menos, o meu conhecimento da Europa.

 

LTO - Para a idade, e para a época, esse conhecimento da Europa era excelente.

JMG - Mas é a entrada no movimento estudantil e a responsabilidade no turismo estudantil que me obriga a viajar sistematicamente. Precisávamos de alianças e dos votos das direções nacionais das associações de estudantes de outros países, para não sermos substituídos como organização representante de ­Portugal, o que seria fatal. Portanto, precisava de ir falar, pelo menos, com os mais importantes e de saber quem eram. Quem me podia explicar as regras, e apresentar-me aos outros, eram os nórdicos, que nos conheciam e formavam uma União. Precisava de conhecer os outros que, mal sabia eu, estavam perdidos nas convulsões do pós-Maio de 68.

Vou viajar pela Europa, a partir da Suécia e dos contactos que lá me são dados. Primeiro, vou falar com os responsáveis dos países nórdicos que me encaminham para Copenhaga, para quem dirige. Aí compreendo que se trata de um setor que mexe com muito dinheiro. Conheço então o responsável comercial do negócio escandinavo do turismo estudantil e a quem a direção nórdica das associações de estudantes me recomenda: “Você faça o que puder por este português que vai ter consigo e que lhe vai explicar o assunto. Explique-lhe como é que ele deve fazer para resolver o problema dele”.

É alguém que se porta sempre de uma forma impecável e me ensina o que devo fazer. Ensinou-me como é que se fretam aviões, em que altura, como se compete com outras agências pelas linhas mais rentáveis. Ensina-me as bases elementares do negócio, porque estamos a falar de um negócio à escala europeia que passava por feiras comerciais (da primeira vez fui a Munique), onde estão gestores de grandes agências nacionais que mexem com, o que hoje se diria, muitos milhões de euros, e fazem negócios: “Eu fico com esta linha. Eu faço sharing daquela”. E está ali um jovem recém-chegado de uma agência apetecível, porque é do sul da Europa e, portanto, interessante para os nórdicos, mas que está em rutura de pagamentos e que tem o Governo contra si. Não era fácil. Mas acabámos por conseguir ficar com o turismo estudantil. Depois, eu viajo pela Europa para falar com as direções das associações de estudantes para, além de tratar do turismo, explicar o que é que se está a passar em Portugal e para, no fundo, estabelecer contactos e procurar apoios.

Tenho noção de que poder viajar desta maneira (estando a ser constantemente vigiado pela PIDE aqui – até quando andava de autocarro em ­Lisboa tinha sempre um ou dois carros atrás de mim) era uma oportunidade extraordinária que, possivelmente, teria sido impossibilitada pela PIDE em anos anteriores.

 

LTO - Mas porque atribuía o então estudante José Mariano Gago tanta importância à questão do internacionalismo estudantil?

JMG - Repare que isso faz parte do universo daquela geração. Imagino que o mesmo se estivesse a passar em muitos outros setores da sociedade portuguesa. Nós queremos quebrar o isolamento, estar dentro do mundo! Acho que a sua pergunta faz todo o sentido.

Há ali uma rutura, uma maneira nova de olhar, de sentir, que começa a pensar em Portugal integrado no mundo, em nós mesmos como fazendo parte do mundo a que aspirávamos, uma recusa a deixarmo-nos isolar pelo isolamento que nos é imposto. Para mim, era evidente que a única maneira de ir para a frente, e de fazer aquilo que queríamos, passava por estar, falar com os outros, ver o que estava a acontecer no resto do mundo, ligarmo-nos aos outros… E faz-se, falando, estando, aproveitando todas as oportunidades. Vou a ­Londres falar com a associação de estudantes inglesa. Vou falar uma ou duas vezes com a UNEF em França. Estabeleço contacto com os nórdicos, com os belgas e com os alemães. E, com eles, acontece uma história muito interessante.

 

LTO - A história do turismo estudantil é interessante.

JMG - A história alemã é outro momento de amizade. Um amigo que tinha vindo da Alemanha põe-nos em contacto com o movimento estudantil alemão e com a Sozialistischer Deutscher Studentenbund (SDS) – a organização dos estudantes sociais-democratas que, nessa altura, estão ainda no Partido Social-Democrata Alemão, que irão abandonar. Pouco depois, é o princípio da desgraça da esquerda alemã e o princípio do terrorismo dos anos 70. A SDS Alemã é um movimento radical, muito inteligente, muito interessante e fortemente internacionalizado, havendo nas universidades alemãs – em Stuttgart que conheci melhor – um movimento estudantil quase único então na Europa (como na Suécia, mas talvez ainda mais intensamente) em que a Universidade se quer virada para fora, para os problemas e para a compreensão da miséria do mundo. Está virada para todo o lado: o Vietname, a América Latina…

Na Alemanha, tal como na Suécia, encontro um olhar, uma atenção e uma generosidade especiais. Das várias vezes que estive de visita à Suécia, estavam a discutir a atribuição do estatuto de refugiado político aos desertores americanos da Guerra do Vietname. Se bem me recordo, julgo ter sido o único país europeu a fazê-lo porque, em geral, não se dá o estatuto de refugiado a um desertor, apenas por objeção de consciência.

A Universidade na Alemanha, quer estivesse a funcionar normalmente, quer estivesse ocupada, fervilhava de cultura, de vida e de criatividade. A organização da SDS alemã – que era, no fundo, a organização política mais enraizada nas associações de estudantes na Alemanha – era impressionante.

Numa altura em que lá estive, tinham feito publicar e pago um anúncio nos jornais da Alemanha que foi um golpe de marketing extraordinário. Anunciavam que iam queimar um cão vivo depois de o regarem de petróleo numa praça de Berlim “no dia tantos e às tantas horas”. Isto criou uma agitação na Alemanha inacreditável: dizia-se que os estudantes tinham enlouquecido e só faziam coisas aberrantes. Os estudantes deixaram andar assim o debate durante uns dias e, depois, publicaram outro anúncio explicando que todos os dias eram mortos com napalm, no Vietname, pessoas inocentes e que os cidadãos alemães não pareciam muito incomodados com isso. E que, obviamente, os estudantes não pensavam em queimar cão algum, mas apenas despertar a população, chamar--lhe a atenção para o que se passava no Vietnam. Para mim, este episódio foi marcante. Não sabia, nunca tinha imaginado que se pudesse pensar assim e agir politicamente desta forma.

Entrava-se, ao fim da tarde, numa faculdade em Stuttgart, tinham acabado as aulas e estava numa sala um estudante da Colômbia a explicar o que lá se passava e também alguém, muito mais velho, de Espanha, que ainda tinha estado na Guerra Civil… O mundo parecia passar por ali.

Os dirigentes estudantis ingleses pareciam então mais preocupados consigo mesmos (e não pareciam saber do que se passava na América!) e os franceses pareciam dilacerados entre quem é que tinha tido razão em fazer o quê um ano antes. Não conheci então a Itália, infelizmente. O que recordo é que o que se passava então na Alemanha e nos países nórdicos era outro mundo, sendo que a Alemanha parecia então à beira de um precipício.

 

LTO - E porque estava a Alemanha à beira do abismo?

JMG - Nessa altura, conheci Stuttgart, mas não conheci, de todo, Berlim. Para esses meus amigos alemães, a Alemanha parecia-lhes completamente bloqueada. Achavam que nada podia mudar, nunca.

A reação conservadora do poder económico, do poder político, e a dificuldade de se fazerem ouvir pela social-democracia instalada eram vistas por eles como uma tampa de chumbo inamovível, insuportável: assim nada vai mudar. E julgo que ninguém percebia que essa juventude estava completamente “pelos cabelos”. Alguma coisa tinha de acontecer. Os jovens mais ativos e criativos não se sentiam dentro do sistema, nem representados. Desses que conheci na altura, aqueles que mantiveram mais a sanidade foram os que entraram no movimento sindical, normalmente pela via profissional, como economistas, e os que estavam mais ligados às artes, esses, produziram arte, tinham essa arma, faziam explodir simbolicamente os modelos estabelecidos através da arte. Os outros, deixei de os ver, e presumo que alguns foram para o terrorismo.

 

LTO - Percebia-se essa deriva para o terrorismo?

JMG - Claro. Era óbvio que alguma coisa má estava a acontecer na Europa.

 

LTO - Com as suas relações, como é que o movimento português não o considera a si, José Mariano Gago, um social-democrata?

JMG - O que era ser social-democrata em Portugal, nessa altura? Nós sentíamo-nos revolucionários! Ser-se tratado como “social-democrata” em Portugal, neste nosso meio, nessa época, era pouco menos que insultuoso… Ser “social-democrata” aqui era então visto por nós como não querer a independência das colónias mas apenas uma equívoca “autodeterminação”, acreditar numa transição democrática através de eleições… Julgo ser essa, então, a convicção dominante entre grande parte dos jovens mais ativos da minha geração no movimento estudantil de Lisboa.

Contudo, um dia, na Suécia, os meus amigos de lá mostram-me um pequeno apontamento que tinham escrito sobre mim, que têm em casa: “Fulano tal, dirigente estudantil português, socialista não comunista”. Definição rápida de um sueco social-democrata, que me conhece há menos de um ano, e que não pode perceber a dificuldade “conceptual” de tentar ser jovem radical, e de esquerda, num regime fascista…

Nem na Suécia nem na Alemanha (nem noutro lado) tenho quaisquer relações partidárias com o Partido Social-Democrata ou com dirigentes do Partido Social-Democrata. As minhas relações são sempre com dirigentes estudantis. É em Uppsala que entro em contacto com estudantes que são militantes do PAIGC e que se encontram em exílio político na Suécia. Estou também com portugueses que fugiram de Portugal. Nessa altura, estão lá colegas que saíram um ano antes do Técnico, alunos da Academia Militar (e do IST) que desertaram para a Suécia. O objetivo é simplesmente romper o bloqueio informativo e obter, para a Associação do Técnico, informação do outro lado para distribuir dentro do movimento estudantil em Portugal. “O que é que, de facto, se está a passar em África?” Esse era o objetivo. Concretizamo-lo mais uma vez através do turismo estudantil. À Associação do Técnico chegavam pelo correio montanhas de sacos com papéis e prospetos de turismo. Partimos do princípio que, se forem incluídos sistematicamente, folhetos com informações dentro de alguns dos sacos e entre esses prospetos turísticos, nem todos são apanhados e alguns hão-de passar. Que me lembre, foi tudo recuperado.

 

LTO - O que eram esses folhetos clandestinos?

JMG - A maioria eram publicações do PAIGC. Que fazíamos com essa informação? Circulava pelos amigos, é claro, e, normalmente, depois de lhes cortarmos os cabeçalhos, afixávamos tudo numa espécie de grande jornal de parede que tínhamos criado à entrada da Associação e onde cada qual podia afixar o que quisesse. Formalmente, a Associação não tinha nada a ver com aquilo, cada um punha lá o que considerasse informação relevante. Não me recordo de ter sequer contado nada disto dentro da direção da Associação. Os papéis eram lá postos, apareciam lá. Passou a haver um corrupio de gente que passava por lá para ler um jornal de parede com informações não censuradas, de toda a espécie. Dei o exemplo dos textos do PAIGC mas, no essencial, as informações afixadas diziam respeito ao próprio movimento estudantil em todo o país, e também ao que a censura não tinha deixado publicar nos jornais e que milagrosamente nos aparecia ali afixado… Claro que havia pides à entrada.

A importância deste meio de informação, o jornal de parede, acentuou-se na primeira greve da Carris e, depois, com as greves na cintura de Lisboa, em 1969-1970.

Nessa altura, este passou a ser o sítio público com mais e melhor informação que existia em Lisboa, possivelmente em Portugal, porque muita gente ia lá deixar informação. Púnhamos lá toda a informação que tínhamos. Encorajávamos quem quisesse a deixar informações que se afixavam. A difusão de muita informação sobre África foi feita aí. O movimento estudantil estava a assumir novas funções, portanto, e a promover diretamente o exercício de liberdades que eram reprimidas. Podemos perguntar: e houve mais do que isso?

 

LTO - “Isso” representa uma grande abertura à sociedade.

JMG - Estou aqui a falar na primeira pessoa, mas a mudança social e política dessa época de transição é feita de muitas histórias e inúmeros percursos que, em conjunto, traçam um caminho novo para a sociedade portuguesa – e, de certa maneira, porventura vão prefigurar o que ela vai ser depois.

Como presidente da Associação de Estudantes do Técnico, procurei e tive contacto com comités de greve da área de Lisboa com o objetivo de dar informação sobre o que estava a acontecer na Universidade e assegurar que nós dávamos informação para dentro do movimento estudantil e, através dele, para o resto do país.

No verão de 70, organizámos uma operação maciça, montada a partir da tipografia do Técnico, de distribuição, nas férias, de informação pelo país todo, a partir das associações de estudantes. Fizemos, salvo erro, 30 mil cópias de um folheto de informação que continha desde informação sobre o movimento estudantil até informação sobre a guerra em África e sobre as lutas operárias, que deixámos em molhos nas associações de estudantes para quem quisesse levar e distribuir nas férias. Esta operação de informação, que pretendia ter alcance nacional, foi pensada estrategicamente.

 

LTO - Esta luta atende a duas dimensões: a social e a colonial. É assim?

JMG - Exatamente.

 

LTO - Foi assumida pelo Técnico ou pela RIA [Reunião Inter Associações]?

JMG - Foi a RIA que assumiu. Muita gente colaborou. A impressão fez-se no Técnico. A distribuição foi assumida por todas as Associações.

 

LTO - O que publicava a tipografia da Associação de Estudantes do Técnico?

JMG - Durante o dia, publicava o que era normal: as “folhas”, isto é, os textos didáticos para as diferentes cadeiras, livros, formulários, tudo.

 

LTO - E à noite?

JMG - Alguns de nós sabiam operar as máquinas que tínhamos na altura: stencil, stencil eletrónico, offset, etc., e a deixar a oficina impecável. Claro que com a cumplicidade implícita de funcionários que se apercebiam perfeitamente de que tínhamos lá andado a trabalhar. É impossível, mesmo que se seja muito bom, entrar numa tipografia à noite e, no dia seguinte, um especialista não perceber que alguém lá esteve a mexer.

 

LTO - Já me contou que encontraram uma assoalhada falsa…

JMG - Procurei um espaço sobretudo para guardar documentação, coisas recebidas que não queríamos levar para casa e que não deviam estar à vista. Além disso, sabíamos que, dentro do Técnico, havia contínuos que eram pides e sabíamos, ou julgávamos saber, que havia funcionários, até dentro da própria Associação, que eram informadores. Vivia-se num mundo muito difícil.

Quando estávamos a tentar construir uma espécie de cachapuz que permitisse guardar coisas que não fossem detetadas facilmente (claro que numa busca sistemática encontrar-se-iam), descobrimos por acaso que essa arrecadação já estava feita mas tinha sido entaipada.

Medindo bem, verificou-se haver ali uma divisão de que nunca nos tínhamos apercebido. Entre duas divisões, havia outra entaipada pelos dois lados. Sempre tínhamos julgado que aquela porta bloqueada que havia numa sala, de um lado, era a mesma porta do outro, até um dia termos pensado que aquilo era um bom sítio, começarmos a medir e descobrirmos que havia talvez 1 metro entre as duas portas. Portanto, havia uma divisão ali no meio. Afinal, não era a mesma porta, eram duas portas. Um truque quase infantil. Forçámos uma das portas, abrimo-la, fechámo-la e pusemos tudo igual.

Dentro dessa pequena divisão abandonada, encontrámos uma cama de campanha onde se podia dormir e, portanto, onde se podia esconder uma pessoa, e um velho copiógrafo inutilizado porque um dos rolos estava estragado – e nunca o consegui recuperar. E encontrámos, também, os restos de um stencil antiquíssimo. Era, imagine-se, um comunicado de apoio dos estudantes que iam conduzir os elétricos da Carris (em greve) em 1919!

Não sei de onde aquilo podia ter vindo. Nessa altura, já existia o IST mas não estava sequer naquelas instalações da Alameda, que só iriam ser construídas décadas depois, portanto, não faço ideia como é que aquele copiógrafo e aquele stencil puderam aterrar ali. Teriam sequer alguma coisa a ver um com o outro? Não sei.

 

LTO - Como é que interpreta a existência desse comunicado? Porque é que lá estava escondido?

JMG - Não sei. Não faço ideia.

 

LTO - Nunca mais o viu?

JMG - Não. Fizemos então uma compilação sistemática de toda a documentação antiga que se conseguiu encontrar na Associação e de toda a documentação produzida por nós, desde o jornal das cheias até tudo o resto. Tudo se guardou nos arquivos da Associação que foram organizados.

Anos mais tarde, quando voltei a Portugal e ao Técnico, ainda contactei os dirigentes da altura e a maioria do arquivo tinha desaparecido. Estará parte nos arquivos da PIDE? Teria sido simplesmente vandalizado, nalguma altura, antes ou depois do 25 de Abril? Haverá partes que foram guardadas em casa de alguém? Não sei.

 

LTO - Discutiram esse comunicado? Falaram sobre ele?

JMG - Falámos entre nós, mas não sabíamos o que era, ninguém sabia.

 

LTO - Foi uma novidade?

JMG - Nenhum de nós sabia o que tinha sido Portugal em 1919, por volta da época do Sidónio Pais. Não havia ali ninguém por perto que nos pudesse esclarecer. Ainda falei com mais duas ou três pessoas mas ninguém sabia.

Histórias antigas eram assim: na altura das cheias, corria no movimento estudantil que não era a primeira vez que isto tinha acontecido, que tinha havido um movimento de solidariedade feito por estudantes na Cova do Vapor, na altura da sua destruição pelo mar nos anos 40, mas também não se sabia bem quando. Não se sabia de onde é que vinha esta informação, nunca a consegui sustentar, mas havia alguém que dizia que tinha ouvido de alguém. Era tudo o que se sabia. Mas tão vagas referências chegavam para que, nalguns de nós, se formasse a convicção de fazermos parte de uma linhagem, de uma história antiga, de outras tentativas e de movimentos análogos, mesmo que tal fosse impossível de provar, e até pudesse ser falso (há algum romantismo nisso, bem sei, como se alguns átomos do espírito da geração romântica ainda estivessem presentes no ar que respirávamos…).Talvez nós andássemos à procura de uma História, de um passado onde nos filiarmos, de uma genealogia simbólica, à procura afinal de nos sentirmos menos sós, isto é, de conseguirmos perceber--nos como parte de uma História que vem de trás.

 

LTO - “Talvez nós andássemos à procura de uma História e (…) de nos sentirmos menos sós”, disse. Sentiam-se sozinhos?

JMG - Achávamos que era tudo muito difícil! Não havia informação, não havia História, éramos independentes de partidos e tínhamos que tentar saber o que se passava no resto do mundo, o que se passava em África… Estava tudo escondido, não havia nada! O que nos vinha das gerações anteriores era uma mistura muito complicada de factos e de mitos… As causas em nome das quais aquelas lutas tinham sido travadas diziam-nos pouco. Obviamente que exprimíamos e sentíamos uma solidariedade total com os que estavam presos, assinávamos as coisas todas, fazíamos o que era preciso, protegíamos quem precisasse de ser protegido. Mas era outro mundo.

 

LTO - O vosso movimento constituía uma afirmação de uma cultura muito juvenil?

JMG - Também, certamente, mas isso já teria acontecido antes, com todas as outras gerações jovens.

Acho contudo que estava em jogo a emergência de uma cultura política moderna, que era diferente da que nos era transmitida pelas gerações anteriores. Era uma cultura política que não podia admitir que houvesse princípios em nome dos quais o movimento estudantil não pudesse discutir publicamente a guerra de África e não pudesse defender a independência das colónias e a deserção quando se era chamado para a guerra colonial.

Passou então a ser comum nas associações de estudantes discutir-se a deserção. Quando toda a gente consciente achava que era abominável ir para África matar a gente de lá que queria a independência das suas terras, parecia óbvio que tinha de se introduzir no movimento estudantil o debate sobre o que se devia fazer: se era ir para a tropa (e tentar lá dentro não sei o quê, nunca percebi) ou se era, honestamente, desertar. Mas levantar essa questão fundamental nunca tinha acontecido no movimento estudantil até então e aconteceu pela primeira vez, publicamente, em 1970, em Lisboa.

 

LTO - Tudo aquilo acontece no ano de 69/70, ano em que é presidente?

JMG - Tudo parece acelerar, nesse ano. Não sei como é que consegui fazer todas essas coisas durante esse ano que, visto à distância, parece imenso, cheio… Isto numa altura que não era fácil para o movimento estudantil em lado nenhum, e com a crise de 69 em Coimbra.

Ia regularmente a Coimbra e dormia em qualquer república. As repúblicas de Coimbra tinham decidido coletivamente (o que me comove ainda hoje) que eu podia aparecer a qualquer hora em qualquer república e seria sempre acolhido. Confesso que me sentia então muito mais próximo do Conselho das Repúblicas de Coimbra (mais radical, mais plural, mais próximo dos movimentos de independência africanos) do que da Associação Académica.

Nessa altura, tinha também descoberto os arquitetos de Belas-Artes no Porto, através de amigos, quando andava à procura do movimento estudantil na cidade. No Porto, e com a geração dos arquitetos “modernos”, em torno da qual se estendiam redes de solidariedade e de debate únicas, parecia que se estava num mundo civilizado, tive como que a sensação de chegar pela segunda vez à Suécia…

 

LTO - Se eu tivesse que caracterizar o ano de 69/70, diria que é um ano de grande empenhamento no turismo estudantil, na relação com Coimbra e com o Porto, nas relações com o exterior em geral.

JMG - Não sei. No caso de Lisboa, o ano de 1969/70 caracteriza-se pela organização do movimento estudantil como movimento de intervenção política não partidária.

 

LTO - Com grande ligação à questão colonial e à questão das lutas sociais. É isto?

JMG - Ligação, empenhamento, atenção às lutas sociais, atenção a África e, no caso concreto do Técnico, há que acrescentar ainda a própria reforma curricular em que participámos muito ativamente.

Isto é curioso. O movimento estudantil do Técnico, esse mesmo movimento que afronta o tabu da deserção, da guerra colonial, que se mobiliza para informar o país e para modernizar o movimento estudantil no seu conjunto, entra muito ativamente na reforma do ensino de engenharia – como se essa também fosse uma dimensão obrigatória do seu movimento de ida para fora e de se aproximar do mundo lá fora.

 

LTO - Em que consiste o vosso empenhamento na reforma do sistema de ensino?

JMG - O Conselho Escolar do Técnico era muito interessante porque, quando é reformulado por Fraústo da Silva, tem representantes eleitos dos professores, dos assistentes e dos estudantes. O debate sobre a reforma curricular do Técnico torna-se uma discussão não apenas para a sua modernização científica e técnica, mas também sobre a própria “decência” do ensino.

 

LTO - Em que outras grandes mudanças participaram?

JMG - No IST, o movimento estudantil, durante esse ano, talvez tenha sido mais ativo ao nível do funcionamento dos cursos do que o que era costume, porque o próprio funcionamento da Associação tinha mudado. As Comissões de Curso eleitas funcionavam e tinham propostas: substituir cadeiras antiquadas por cadeiras modernas que não estavam nos nossos currículos, promover uma relação com a investigação muito mais forte.

 

LTO - Em que consistiam as disciplinas de oficinas no IST?

JMG - Exceto, talvez, nas máquinas, as oficinas já eram uma pálida amostra do que devem ter sido. Eu ainda fiz “Máquinas Elétricas”, onde aprendíamos a ­testar motores e alternadores elétricos correntes na indústria e nos transportes. Havia eletrónica num pequeno centro de investigação eletrónica recente, mas não oficinas ou laboratórios de eletrónica para os alunos. Na altura, as oficinas estavam decadentes. Julgo que havia oficinas mecânicas para o curso de Mecânica e de Civil. No meu setor não tínhamos oficinas mecânicas. Frequentei oficinas de máquinas elétricas, mas nunca oficinas normais de eletricidade, nem de mecânica.

Só quando estava talvez no 4.º ou 5.º ano do Técnico fiz o meu primeiro programa de computadores, num curso livre organizado pela IBM no Técnico. Na altura, no Técnico não existia tal coisa! A máquina (o computador da IBM) estava num edifício em frente da livraria Bucholz onde a IBM portuguesa tinha instalações. Aprendíamos, programávamos, íamos lá levar o que tínhamos feito e, depois, íamos receber os resultados.

Em 71, saí do Técnico e fui para a Polytechnique. Só aprendi o que era uma verdadeira oficina mecânica aí, na Escola Politécnica em Paris, e depois no CERN, quando cheguei a Genebra.

Percebi que tínhamos, no IST, um excelente curso à escala europeia, no que diz respeito à maioria da formação de base. Talvez tivesse aprendido mais estatística e mais matemática do que a esmagadora maioria dos meus colegas jovens investigadores. E tanta física clássica como eles, mas, na maioria, de forma escolar, sem enraizamento na atividade científica moderna, que nos faltava. E não tinha, de todo, uma prática experimental decente e uma familiaridade com oficinas e práticas técnicas. Se nos comparássemos então com alemães ou ingleses, tínhamos muito menos experiência empírica do que todos eles. E, além disso, em todos esses países mais avançados, as boas universidades eram universidades de investigação, os professores ensinavam não só o que tinham lido nos livros (como aqui) mas a sua própria vivência de investigação científica ou de desenvolvimento na indústria.

Muitos dos assistentes, jovens e menos jovens, eram ótimos e foram eles que começaram a fazer o Técnico moderno. A reforma acabou por lhes dar poder e por estimular o desenvolvimento de setores de investigação na escola, então incipientes ainda, mas já significativos na química, por exemplo. Começava a haver gente formada lá fora que voltara, investigadores que publicavam, produziam.

Acho fundamental o papel de alguns bons professores, mais velhos, que não faziam investigação, mas que sabiam o que era investigação e ciência e desejavam-na para o país – como o Prof. Abreu Faro, que foi presidente do Instituto de Alta Cultura, meu professor (e um educador extraordinário), pessoa de quem fui muito amigo e que empurrou tantos de nós para fazer investigação no estrangeiro. Ainda o ouço quando repetia, com humildade e determinação raras: “Nunca fiz investigação, não sou um cientista, mas quero que a geração dos meus alunos faça ciência e que faça disto uma universidade a sério (“isto” era o Técnico, era a universidade portuguesa toda).

 

LTO - E o movimento estudantil tinha essa bandeira de luta?

JMG - No Técnico, tínhamos a bandeira da “modernização” dos conteúdos e das práticas de ensino, da qual constava a aspiração a atividades experimentais normais, laboratórios modernos e à incorporação da investigação no ensino. No fundo, contra o caráter arcaico do ensino, e pela modernidade tal como a imaginávamos. E, por outro lado, os textos teóricos que escrevemos e alimentam o debate no movimento estudantil (essencialmente com base em Económicas e no Técnico, nessa altura) são orientados contra o caráter “de classe” da educação universitária de então – restrita a uma minoria social e reprodutora de valores conservadores.

Fazíamos o que podíamos para ajudar a melhorar o ensino na Escola, mas também sabíamos que não eram reformas locais que iam conseguir democratizar o ensino em Portugal – e por isso o movimento estudantil se opôs frontalmente à ilusão das reformas marcelistas.

 

LTO - Quando deixou de ser presidente da Associação?

JMG - No final do ano letivo 1969/70, portanto talvez em junho de 1970, deixei de ser presidente da Direção.

 

LTO - Quis deixar de ser presidente?

JMG - Fazia parte da ética republicana: era-se presidente um ano, ponto final. Nem passava pela cabeça de ninguém. A seguir a mim, veio o João Vieira Lopes, que tinha estado na minha direção. Fiquei ainda no grupo que partilhava algumas decisões. Já não me lembro se era da mesa da Assembleia-Geral ou Conselho Fiscal. Nesse último ano, ainda continuei a ajudar no turismo estudantil.

 

LTO - Em 70/71, já era monitor?

JMG - Exatamente. Fui monitor no ano a seguir a ter estado na direção da Associação. Em 71, concorro a uma bolsa de doutoramento do Instituto de Alta Cultura, tenho uma bolsa para ir para França e vou fazer um doutoramento em Física de Partículas.

 

LTO - A viragem para os anos 70 é marcada por uma nova relação com a sociedade, não é? Que dimensões práticas tem?

JMG - Diria assim: o movimento estudantil sente a responsabilidade de informar a universidade sobre o que é Portugal e, para isso, sente a necessidade de saber, de perceber Portugal, a sociedade, a economia, o mundo… Daí o tentar estudar e tentar aprender tudo, procurar interpretar o que se passa, com as poucas informações, as fontes limitadas, o acesso escasso a quem nos pudesse explicar, tudo isso ainda com um sentido de urgência, e de forma, sei lá, inocente, quase pueril.

Exemplos pessoais. Tentei perceber o que era a indústria portuguesa, que papel tinha, ou teria, no futuro de Portugal. Eu sabia que ia sair de Portugal por muito tempo, talvez para sempre, e tentava aproveitar os períodos disponíveis para aprender, tentar perceber. Escolhi um estágio nos estaleiros navais de Viana do Castelo e também no departamento de investigação da CUF. Fui falar com o Armando de Castro ao Porto. Contactei o Francisco Pereira de Moura e estudei os livros dele (fui aliás às suas provas públicas), contactei o João ­Martins Pereira. Todos me ajudam, ensinam a ler as estatísticas, me dão relatórios e livros, falam, explicam, transmitem a sua visão. E vou a Trás-os-Montes, a Rio de Onor, recomendado por amigos do Porto, que ainda tinham ajudado a investigação de Jorge Dias.

 

LTO - Portanto, o então finalista José Mariano Gago andou entre o IST, os estaleiros de Viana do Castelo, Belas-Artes do Porto e a caminho de Rio de Onor. É isto?

JMG - Parece pueril, não é? Trata-se de uma procura de conhecimento, certamente muito amadora, de jovens que, nessa idade, achavam ter a obrigação de saber muito mais e de perceber muito mais – mas tudo isto num país em que nada funcionava, em que não se era informado e em que tudo o que era importante parecia fechado a sete chaves. Esses jovens procuravam ler tudo o que encontravam nas livrarias e procuravam desesperadamente orientação intelectual que lhes permitisse estudar, entender Portugal, perceber um bocadinho o mundo. Estou a contar o meu caso, mas há muitos outros, certamente muito mais interessantes.

 

LTO - Quanto ao Prof. Francisco Pereira de Moura: o que aconteceu?

JMG - O movimento estudantil mobilizou-se em peso para estar presente nas provas para professor extraordinário de Francisco Pereira de Moura do ISEG, que foram nesse ano e tiveram lugar num anfiteatro do Técnico. Se bem me lembro, não foram só estudantes de Económicas e do Técnico; acho que nós passámos a palavra aos presidentes das associações de estudantes de Lisboa e houve uma mobilização de dirigentes académicos que lá esteve presente em silêncio.

 

LTO - Era uma pessoa querida?

JMG - Claro, muitíssimo. Ele sabia de Portugal e da economia portuguesa.

 

LTO - E há mais professores que tenham conseguido esse apoio?

JMG - Não sei dizer. Lembro-me muito da ternura que tínhamos pelo Prof. Lindley Cintra, uma pessoa queridíssima, que considerávamos corajoso.

 

LTO - Lindley Cintra faz recolhas sobre a língua portuguesa; Pereira de Moura escreve LTO -Para Onde vai a Economia Portuguesa. Segundo li, o movimento estudantil de Económicas, com afinidades com o do IST, começa a editar uma revista, que depois vai dar a LTO -Arma/Crítica, com o levantamento da realidade portuguesa.

JMG - Era exatamente esse o modelo que nós tínhamos, também.

 

LTO - Portanto, há uma vontade de conhecer Portugal, o mundo e as colónias?

JMG - Há uma vontade profunda de conhecer Portugal em todas as suas dimensões, desde as recolhas etnográficas até à história colonial. Cada qual terá a sua própria história. É por todo o lado uma busca incessante, mesmo que possa parecer, repito, quase infantil.

 

LTO - Porque é que é infantil?

JMG - Por estarmos então num país desgraçado! Com 21 ou 22 anos, se estivéssemos num país normal, culto e livre, e numa boa universidade, estávamos ainda nisto? Não teríamos saltado já todas essas etapas, aprendido com as gerações anteriores, sido orientados para estudar o que não se sabia? Não estávamos era com certeza condenados a descobrir a pólvora aos 21 anos! Bem sei que estou a caricaturar. Mas tudo isto era pequenino, fechado, desorganizado, tristinho e “tarde e a más horas”. Nós sabíamos que a cultura era outra coisa. Sabíamos que a universidade tinha de ser outra coisa! Por amor de Deus! O Einstein escreveu os primeiros artigos da relatividade aos vinte e poucos anos. A Universidade europeia não era nada isto que se vivia em Portugal já há muitas décadas e nós, de repente, tivemos a noção clara desta desgraça.

 

LTO - Os que vos tinham antecedido também tinham alguma preocupação com o enquadramento internacional?

JMG - Não sei. Mas provavelmente esta experiência de que sou testemunha é possível simplesmente porque ocorre num período de relativa acalmia de repressão, apesar de tudo, quando comparado com outras épocas.

 

LTO - É uma conjuntura especial.

JMG - É. Nesse ano, a viragem do movimento estudantil de Lisboa talvez possa ser descrita, numa perspetiva histórica e política, como uma verdadeira mutação: no final de 1969 as direções eleitas das associações de estudantes de Lisboa deixam, na sua quase totalidade, de ser controladas pelo PCP (ou por qualquer outra força política organizada). Durante a maior parte do ano letivo 1969/70, os dirigentes máximos das associações académicas de Lisboa não são filiados em quaisquer partidos ou organizações políticas. Essa viragem “liberta” o movimento estudantil em Lisboa para um tipo de intervenção nova, designadamente de oposição frontal à guerra colonial.

Se tiver de escolher uma ação política que fiz que considero verdadeiramente relevante no movimento estudantil foi, na primavera de 1970, ter promovido em Lisboa uma reunião pública com os presidentes de todas as associações de estudantes, e que ocupou o átrio da Faculdade de Letras de Lisboa, contra a guerra colonial, considerado um tabu do movimento estudantil.

O PCP estava completamente contra que o movimento estudantil se metesse nisso. Mas para nós era essencial que o movimento estudantil tocasse naquilo que era um elemento absolutamente central: os rapazes saiam dali e iam para a guerra. Estava na nossa consciência: o que é que nós estávamos a fazer no movimento estudantil se não tocássemos nesse problema? Foi uma reunião que eu dirigi e, por solidariedade, todos os presidentes de associações de estudantes estiveram presentes. O átrio da Faculdade de Letras estava completamente cheio de gente e com um professor, o Lindley Cintra, e um investigador da Universidade, o Afonso de Barros, presentes. Lembro-me onde é que o ­Lindley estava, naquele átrio. Diria que isso marca, também, uma mudança na relação do movimento estudantil com a política e com a sociedade. Durante essa reunião, a Cidade Universitária é cercada e estávamos convencidos que seriamos presos nessa noite, o que não aconteceu; as pessoas só começaram a ser presas muito tempo depois. Mas este tempo foi deveras extraordinário, em muitas dimensões.

 

LTO - Pode dar exemplos desse “tempo (…) deveras extraordinário”?

JMG - A manifestação de protesto organizada pelo movimento estudantil de Lisboa e de Coimbra, juntos, na Final da Taça, no Estádio Nacional, em Lisboa, é um exemplo marcante. Hoje quase parece inconcebível que isto tenha acontecido. Coimbra está ocupada e “a ferro e fogo”.. A Académica é apurada para a final da Taça de Portugal no Estádio Nacional e decidimos fazer, com Coimbra, uma grande operação de divulgação de informação no Estádio Nacional. Foi das organizações mais difíceis que fizemos em Lisboa.

 

LTO - Pode concretizar?

JMG - Era difícil meter dezenas de milhares de comunicados dentro do Estádio Nacional, quando as pessoas e todos os acessos eram revistados, com a PIDE mobilizada em todas as bancadas. Mas não houve uma única pessoa que fosse presa. Conseguir desencadear no Estádio Nacional uma operação com ­palavras de ordem e informação em todas as bancadas, sem que a PIDE conseguisse chegar a alguém, foi talvez a operação mais difícil em que estivemos envolvidos. Não me recordo quem foi o verdadeiro comandante operacional do nosso lado, mas o seu talento poupou vidas e permitiu atingir os resultados pretendidos.

Quem levou a maioria dos papéis lá para dento foram raparigas, sempre na roupa interior, e eram precisas muitas porque foram distribuídos dezenas de milhares de papéis. Havia o problema de metodicamente organizar o espaço. A polícia estava cá em baixo e tentava subir e a população foi extraordinária porque impediu a passagem da polícia em todo o sítio. Era a Final da Taça e o Estádio Nacional estava “à cunha”.

A certa altura as palavras de ordem começaram a ser gritadas e houve faixas, enroladas por dentro da roupa, que se levantavam. Quando a polícia tentava subir, a faixa já tinha desaparecido. Era preciso passar a primeira, a segunda, a terceira, a quarta fila e, depois, já estava tudo aos gritos por causa do jogo que decorria no relvado. Foi uma tensão horrível. Eu estive lá dentro e ainda hoje não consigo entrar no Estádio Nacional sem me lembrar e sem olhar para as bancadas como terreno de uma operação muito arriscada.

 

LTO - Mas como dividiram e organizaram as tarefas no Estádio Nacional?

JMG - Houve uma organização por equipas que ocuparam setores do Estádio. Uns tinham os papéis, outros distribuíam-nos, outros tinham as faixas, outros gritavam, outros, pura e simplesmente, protegiam aqueles, outros protegiam os que protegiam aqueles… Era muita gente! Foi uma operação que, de pessoal ativo, deve ter envolvido mais de 500 pessoas.

 

LTO - E qual o papel da Associação Académica de Coimbra?

JMG - Coimbra esteve presente em força. Era natural, vinham ver o jogo, apoiar a sua equipa. Os ativistas estavam enquadrados por nós para a distribuição dos papéis e para serem protegidos dentro do Estádio e à saída.

 

LTO - Digamos que, nessa organização, haveria um topo, os que distribuíam os comunicados e os da proteção.

JMG - Tínhamos proteção em todo o lado, disfarçada, à entrada do Estádio, junto de cada cavalo da Guarda Nacional Republicana e junto de todos os pides que tínhamos localizado.

 

LTO - Como é que montaram a operação?

JMG - Quando se é novo, faz-se tudo!

 

LTO - Não pode ser! De onde é que vem essa sabedoria? Dos engenheiros, dos militares?

JMG - Não sei, mas havia quem soubesse.

 

LTO - Do Partido Comunista Português?

JMG - Não, nem pensar! Mas havia gente que achava que sabia ou descobriu como é que se fazia. E também se aprende fazendo, não é verdade?

 

LTO - Mas é difícil manter o sigilo com 500 pessoas.

JMG - Obviamente que havia pides naquele debate tremendo que teve lugar na reunião preparatória da RIA de Lisboa com a Associação de Coimbra. A PIDE sabia que aquilo ia acontecer. Simplesmente, nós seguíamos escrupulosamente uma regra: mesmo em RIA fechada (e as RIA fechadas passavam-se a seguir às RIA abertas e nelas só participavam os presidentes das associações de estudantes), não se tratam assuntos operacionais. Trata-se da ideia geral mas nunca de assuntos operacionais nem se refere quem é a pessoa ou pessoas que estão encarregadas das operações. Foi a regra que nós adotamos durante todo esse ano. E nunca eram autorizadas fotografias, mesmo em plenários.

 

LTO - Onde é que aprendeu tal?

JMG - Não sei. Aprendíamos uns com os outros. Alguma coisa deve ter vindo de trás, dos mais velhos. O resto, das nossas cabeças.

 

LTO - Outra questão importante é a relação com o Instituto Industrial. Como a caracteriza?

JMG - A certa altura, desenvolveu-se um movimento estudantil organizado, sob a forma de pró-associação, no Comercial e no Industrial que se aproximou do Técnico, que era o centro das operações em Lisboa. Procurou vir às RIA e naturalmente abrimos-lhes todas as portas.

Das primeiras vezes que houve ações conjuntas com o Industrial e o Comercial, nós sentimos que havia uma repressão brutal e desmedida sobre eles. A eles, a polícia ia lá dar-lhes pancada. Não era costume, não acontecia em período de paz a polícia ir para a porta do Técnico à noite para nos dar pancada quando saíamos da Associação de Estudantes, depois de uma reunião. Mas fazia isso no Comercial e no Industrial. Percebia-se que havia uma perseguição efetiva contra a emergência de organização estudantil no Industrial e no Comercial e contra a sua aliança com o movimento universitário. Na altura, interpretámos isto como uma separação “de classe”. E é verdade que, através do Industrial e do Comercial, passámos a ter acesso a outros grupos sociais que não contactávamos diretamente. Foi através deles que tivemos acesso direto a muita gente do meio operário.

 

LTO - Gente que procuravam – como, por exemplo, na altura em que queriam informações sobre a greve da Carris?

JMG - Sim, por exemplo. E foi através de muitas pessoas do Industrial e Comercial que, mais facilmente, organizámos algumas redes de deserção.

 

LTO - Porquê?

JMG - Porque vinham do povo, ora essa! Era outro meio social.

 

LTO - Essa diferença era muito nítida?

JMG - Então não era??!!

 

LTO - Que relações tinham como movimento estudantil dos liceus?

JMG - Tivemos contacto, sim, mas não muito, com o movimento dos liceus que estava a crescer mas ainda não tinha atingido a dimensão que teria depois.

 

LTO - E com o das escolas técnicas?

JMG - Não sei. A experiência significativa que eu, pessoalmente, posso transmitir não está no MAEESL (Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa). Está no Comercial e Industrial como tendo dado ao movimento estudantil, por uma via lateral, uma relação com outros meios sociais de que, provavelmente, poucas pessoas se aperceberam. Eu próprio procurei estabelecer uma relação muito direta com o Comercial e o Industrial que, depois, foi muito importante para a abertura ao que se passava noutros meios sociais.

 

LTO - Porque teve essa preocupação com o Comercial e o Industrial? Como surgiu?

JMG - Acho que era uma vontade de ir ter com o país, de não ficar fechado nas fronteiras da classe social.

 

LTO - Vê-se que procurou perceber e transmitir a história do movimento estudantil. Sentia que os estudantes entravam e saíam da universidade, que tinham uma presença efémera e que a memória não era passada?

JMG - Procurámos tentar saber o que tinha havido para trás.

 

LTO - Não tinham um pai/partido a quem perguntar?

JMG - Queríamos saber. Naturalmente, tentámos falar com quem tinha estado implicado diretamente nas crises anteriores, 62, ou 64, mas sabíamos pouco.

 

LTO - E sabiam das manifestações dos tempos da Segunda Guerra Mundial?

JMG - Sabia pelos meus pais e outros saberiam pela família, mas não tínhamos recebido essa informação por via interna do movimento estudantil, não.

 

LTO - Sabiam da luta contra o Decreto n.º 40 900?

JMG - Ah, sim. No passado, o 40 900 era “o pão nosso de cada dia”! Mas como é que era possível um movimento estudantil moderno mobilizar-se em torno de um abaixo-assinado contra um decreto?! Não cabia na cabeça de ninguém. Nós éramos já de outra geração.

 

LTO - E onde aprendeu?

JMG - Estive no congresso do movimento associativo e ouvi tudo muito atentamente. Não sei se antes, se no ano das cheias. No Técnico, havia quem soubesse. Mas falar-se com os verdadeiros protagonistas do passado era muito difícil, muita gente tinha sido presa e outros tinham simplesmente acabado os cursos, ou desistido, e não era fácil, nesses tempos, encontrá-los. Procurei o Jorge Dias de Deus, o António Redol, o José Bernardino, o Jorge Sampaio, o Vítor ­Wengoriovius e muitos outros antigos dirigentes.

 

LTO - Tinha como objetivo perceber o que se tinha passado anteriormente?

JMG - Acho que é mais simples do que isso. É aquela mania de tentar perceber ­Portugal, tentar perceber tudo, onde é que nós estamos, de onde vimos, para onde vamos, o que somos. E não era só o Técnico que queria perceber.

 

LTO - E também perceber a prisão, a tortura e as pessoas?

JMG - Na altura, mesmo não estando integrados num partido político ou numa organização política, estávamos à espera de ser presos a qualquer momento. E, depois, quando alguns de nós começaram a fazer trabalho clandestino – porque o primeiro trabalho clandestino, a sério, fora do movimento estudantil, que alguns de nós começaram a fazer foi, além de trazer ou dar informação, ajudar pessoas a fugir –, sabíamos que havia muita coisa para nos meter na cadeia. Rapazes que queriam desertar e passar a fronteira era trivial… Havia muito boas razões para nos prenderem.

 

LTO - Não digo que querer perceber o que acontecia na prisão e na tortura fosse para se preparar para essa eventualidade; mas poderia ser para querer perceber o que acontecia às pessoas que passaram por tal.

JMG - Claro, mas isso sabia-se. Nós líamos, falávamos com toda a gente… Procurávamos saber o que se passava dentro da cadeia e no interrogatório, fazia parte da nossa cultura.

 

LTO - Queria perceber o drama íntimo de cada um, especialmente dos que tinham falado na cadeia?

JMG - Essa atitude humana não sei se era partilhada por muita gente. Nunca tive uma atitude de condenação sumária. Mas vi muita gente à minha volta que achava que era preciso ostracizar todos os que tinham fraquejado na tortura. Conheci mesmo um fanático que defendia a sua eliminação! Se há pecado que não cometi foi esse de estar contra as pessoas que falaram na cadeia, especialmente aqueles que, dois anos mais tarde, me denunciaram. Difícil foi fazer acreditar aos próprios que eu não tinha nada mas absolutamente nada contra eles. Foi muito difícil e não sei se consegui ou sequer se fiz tudo o que era preciso.

 

LTO - Disse-me, também, que falou sobre a história do movimento estudantil, por exemplo, com a Valentina Garcia…

JMG - A Valentina é uma amiga! Foi a primeira mulher a ser presidente da AEIST. Numa certa época, aconteceu alguns dos dirigentes da Associação terem sido meus alunos no 1.º ano e tornarem-se amigos. Houve também muitos membros de sucessivas direções do Técnico que vieram ter comigo para eu lhes contar a história que conhecia. Nos anos 80, houve muita gente que veio ter comigo para saber: “Conta lá como foi no teu tempo”. E eu senti muita vontade de contar e de perceber. Era como se houvesse ali uma continuidade, uma História a fazer-se.

 

NOTAS

1Este texto é uma versão mais alargada de uma entrevista a José Mariano Gago, datada de 07-11-2010, e elaborada no quadro do Projecto IST: Um século de existência. Cultura, Técnica e Sociedade — IST The first hundred years (PTDC/ANT/65979/2006), financiado pela FCT e pelo IST, coordenado por Jorge Freitas Branco. Sobre a versão anterior, ver: BRANCO, Jorge Freitas, ed. - Visões do Técnico, no Centenário 1911-2011 [Em linha]. Lisboa, ISCTE-IUL, 2013. Disponível em WWW: http://hdl.handle.net/10071/4497

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