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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.215 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGO

A formação dos geólogos: o papel das universidades na configuração do campo profissional

The training of geologists: the role of universities in the configuration of the professional field

 

João Freire*, Pedro Pacheco**, Luísa Veloso**, Raquel Rego*** e Telmo Clamote**

*Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Av. das Forças Armadas, s/n — 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: joao.freire@mail.telepac.pt

**Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIES, Av. das Forças Armadas, s/n — 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mails: pedro.pacheco@iscte.pt, luisa.veloso@iscte.pt e telmocostaclamote@gmail.com

***Universidade de Lisboa (ISEG-UL), SOCIUS, Rua Miguel Lupi, 20 — 1249-078 Lisboa, Portugal. E-mail: raquel.rego@gmail.com

 

RESUMO

O presente artigo discute o papel desempenhado pelas universidades na estruturação dos domínios de saber que configuram diferentes ocupações do campo profissional da geologia. De entre as várias dimensões que enformam uma profissão, o domínio de um conjunto de saberes e a sua aplicação na prática profissional prevalece como dimensão central. O artigo baseia-se na análise empírica da oferta formativa no campo profissional da geologia em ­Portugal, no qual coexistem as áreas da geologia e das engenharias geológica e/ou de minas. Esta análise sublinha como aquela oferta se articula com transformações nos ­mercados de trabalho e reposicionamentos estratégicos dos grupos profissionais presentes no campo, concorrendo para a sua hibridação.

PALAVRAS-CHAVE: geologia; profissões; campo profissional; ensino superior.

 

ABSTRACT

This article discusses the role played by universities in structuring the knowledge domains that configure different occupations in the professional field of Geology. Among the various dimensions that shape a profession, the appropriation of an expertise and its application in professional practice prevails as a central dimension. The article is based on an empirical analysis of the professional field of geology in Portugal, which includes the areas of Geology and Geological Engineering and Mining Engineering. The analysis shows how the educational offer is related with the transformations in the labour market and the strategic reposition of the professional groups in the field, contributing to its hybridisation.

KEYWORDS: Geology; professions; professional field; higher education.

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa contribuir para a discussão sobre o papel das universidades na configuração de diferentes ocupações de um mesmo campo profissional, com enfoque analítico na oferta educativa. Parte-se do pressuposto da sociologia das profissões, segundo o qual o domínio de uma determinada área de expertise, isto é, de um conjunto de conhecimentos, constitui um requisito fundamental para a configuração de uma profissão (Freidson, 1994, 2001; ­Turner, 1987; Abbott, 1977).

De entre os vários domínios que enformam uma profissão e que configuram o seu monopólio, isto é, o seu exercício exclusivo por um conjunto delimitado de profissionais, importa ressaltar que a aquisição de um conjunto de saberes e a sua aplicação na prática profissional prevalece como uma dimensão central. A formação de nível superior específica configura, com efeito, uma das bases para o reconhecimento de uma profissão, quer ao nível da sua credenciação, quer da exclusividade dos saberes que integra. As universidades constituem, assim, um domínio central de compreensão sociológica acerca de como uma profissão sucede (ou não) em afirmar-se como tal, dentro das dinâmicas de competição que organizam o campo profissional em que se insere.

Para o desenvolvimento deste argumento, o artigo baseia-se na análise empírica da oferta educativa no campo profissional da geologia. Como se procurará demonstrar, nos últimos 20 anos observaram-se alterações na oferta das universidades neste campo, nomeadamente nos cursos de geologia e de engenharias geológica e/ou de minas, que acompanharam dialeticamente transformações nos mercados de trabalho nacional e internacional, concretizando-se em reposicionamentos e novas estratégias de profissionalização das ocupações presentes neste campo profissional, com consequente impacto, de novo, na estratégia da oferta educativa e atividades económicas em Portugal.

O estudo realizado enquadra-se num pedido de uma associação profissional de direito privado, motivado por razões de ordem legal, que se explicitam seguidamente. Em 2008, a lei portuguesa (Lei n.º 6/2008, de 13 de fevereiro, entretanto substituída pela Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro), veio definir as condições a observar para que a agremiação de um determinado grupo ­profissional pudesse ser reconhecida como associação profissional pública, isto é, como Ordem Profissional regida pelo direito administrativo. No âmbito deste quadro normativo nacional, qualquer pretendente a ser reconhecido como Ordem terá de entregar na Assembleia da República, juntamente com outra documentação, um estudo realizado por entidade credível que conclua sobre a “realização do interesse público” na criação dessa ordem profissional e sobre “o seu impacte sobre a regulação social da profissão em causa” (n.º 3 do artigo 2.º).

Foi neste contexto, que os autores deste artigo realizaram, ao longo do ano de 2011, uma investigação, após contrato estabelecido entre a Associação Portuguesa de Geólogos e o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL).

Em resultado dessa investigação, este artigo foca-se na análise da oferta educativa do campo profissional da geologia em Portugal, onde atuam diversos profissionais em colaboração e também em concorrência.

 

ENQUADRAMENTO TEÓRICO: ENSINO SUPERIOR, PROFISSÕES E CAMPO PROFISSIONAL

 

PROFISSÕES, SABERES E CAMPO PROFISSIONAL

 

A abordagem sociológica dominante das profissões, de origem anglo-saxónica, enfatiza geralmente o papel de três tipos de instituições no “fechamento social” de uma ocupação durante o seu processo de profissionalização: do Estado, como garante de uma jurisdição própria; das universidades, como origem da certificação; e das associações profissionais, dotadas de poder de regulação.

No âmbito deste artigo, realçaremos pois as profissões entendidas como especialistas atestados por uma credenciação. A credenciação torna-se assim uma das fontes de poder das profissões, e é neste quadro que se tornou conhecida a função de gatekeeping da credenciação (Freidson, 1994).

Por sua vez, a escolha do campo profissional como enfoque para analisar as ofertas formativas parte do postulado segundo o qual as profissões existem no conjunto de um sistema ocupacional, e não apenas como entidades isoladas (Abbott, 1977).

Assim, uma análise centrada na oferta educativa, enquanto objeto de estudo, não se direciona para uma profissão ou grupo profissional, mas para o campo profissional em que diferentes grupos profissionais coexistem e podem disputar a mesma área de jurisdição. Nas palavras de Freidson: “[…] o que distingue as ocupações umas das outras é o saber especializado e as competências necessárias para desempenhar diferentes funções numa divisão do trabalho” (Freidson, 1994, p. 7). Como também refere Saks (2003), o campo é estruturado por relações sociais sem as quais a posição de certos grupos profissionais não seria o que é.

Neste sentido, e com a preocupação em respeitar a diversidade profissional e de formação identificadas – geólogos, engenheiros geólogos, engenheiros de minas e engenheiros geólogos e de minas – recorremos a uma formulação que opera uma bi-partição semântica e conceptual, por força da dinâmica empírica do campo profissional, ao nível da oferta formativa, entre “geólogos”, por um lado, e “engenheiros geólogos e/ou de minas”, por outro.

Esta opção deriva das abordagens teóricas interacionistas e relacionais do poder, quanto ao estabelecimento de fronteiras, competências e monopólios relativamente aos atos profissionais de uns e de outros, mas também da problematização do conceito de campo (social) desenvolvida por Bourdieu (1992), e que o autor desenvolveu em diferentes domínios, tais como o económico (1997), o literário (1991) ou o da ciência (1976). Constitui uma referência a reter quando o autor define o conceito para abordar o campo literário, por exemplo, como um campo de forças que age sobre todos os que nele entram de forma diferenciada em função da posição nele ocupada e, ao mesmo tempo, constitui um campo de concorrência que tende a conservar ou a transformar esse campo de forças (Bourdieu, 1991). Os campos das profissões, se assim se quiser denominá-los, constituem, precisamente, campos de forças e de concorrência hierarquizados, em que a oferta educativa e o consequente monopólio de saberes no exercício profissional corporizam aspetos centrais, associados, igualmente, à construção social dos títulos escolares, que acompanha de perto o desenvolvimento do aparelho económico (Bourdieu e Boltanski, 1975). Sendo um dos objetivos do estudo a compreensão das fronteiras profissionais, uma das suas componentes fundamentais consistiu na análise da formação de nível superior, uma das dimensões fulcrais de configuração do campo profissional.

A abordagem deste campo profissional, em particular, convoca ainda para a análise a relação entre cientistas e profissionais. Ainda que esta relação seja abordada, designadamente por Freidson (1994), que considera os cientistas um grupo particular de profissionais, muito qualificados, não podemos deixar de observar que a reflexão existente tende a considerar os cientistas e os profissionais dentro de uma mesma formação, ou seja, assumindo que os cientistas derivaram para uma carreira de investigação. Com efeito, várias publicações, inclusive no domínio dos estudos sobre a ciência, das quais se destaca o artigo de O’Connor e Meadows (1976) por abordar justamente o campo da geologia no Reino Unido, têm referido a emergência de cientistas no curso de um processo de profissionalização, adotando assim frequentemente uma perspetiva longitudinal do fenómeno. Segundo O’Connor e Meadows (1976), no Reino Unido a geologia surgiu no século XIX, inclusive com associações especializadas, mas era uma atividade amadora. Só no início do século XX é que os geólogos se começaram a diferenciar, pela sua formação em algumas matérias de geologia e mineralogia, dos amadores. Além disso, o número de geólogos e o número de oportunidades de trabalho diretamente relacionadas com uma formação superior só cresceram de forma significativa mais tarde, no pós-Segunda Guerra Mundial. O processo de profissionalização foi longo e lento. Raros parecem ser, deste modo, os trabalhos que colocam lado a lado cientistas e profissionais com trajetórias independentes que se questionam perante sobreposições da oferta universitária ou trabalhos que destaquem o papel das universidades na decisão sobre a oferta educativa, num movimento de ajustamento ao mercado.

 

O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR NA CONFIGURAÇÃO DAS PROFISSÕES

 

Como foi já referido, é fundamental abordar o papel da formação de nível superior e das respetivas instituições que a facultam e certificam. Importa, pois, enquadrar a análise nos processos de transformação do ensino superior e perceber a sua crescente centralidade nas agendas de investigação em educação (Leite e Magalhães, 2009).

As instituições de ensino superior constituem, indiscutivelmente, atores fundamentais na configuração da profissão por via da construção e legitimação dos domínios de saber. A democratização e consequente massificação do ensino superior são entendidas como uma “realidade incontornável da modernidade tardia” (Cabral, 2001, p. 1214) no nosso país, tendo tido um enorme impacto nas instituições universitárias um pouco por todo o mundo (Amaral, 2007; Morgado, 2006). Surgem, assim, novos públicos oriundos de contextos socioeconómicos e culturais diversos (Esteves, 2008; Ferreira, 2006), a par de novas articulações no relacionamento entre universidade, ciência e sociedade (Cabral, 2001; Morgado, 2006).

Com a globalização e a emergência da apelidada “sociedade da informação e do conhecimento”, a introdução de novas políticas na educação em ­Portugal foi fundamentalmente visível no ensino superior (Seixas, 2001), com uma mudança do “modelo de controlo estatal para o modelo de supervisão estatal” (Morgado, 2006, p. 211), conferindo maior autonomia às instituições de ensino superior com base em novos modelos de financiamento e um novo sistema de acreditação (Amaral, 2007; Seixas, 2001). Assumindo-se o mercado como “mecanismo de regulação do ensino superior” (Amaral, 2007, p. 32), existe uma clara tendência em transformar a universidade numa entidade competitiva à escala internacional (Morgado, 2006), sob o paradigma da “adaptabilidade”, segundo o qual a sua “sobrevivência organizacional depende da reformulação da sua missão” (Magalhães, 2006, p. 14).

São vários os desafios colocados às instituições de ensino superior, entre os quais se destaca a necessidade de reajustamento das ofertas formativas para responder às exigências do mercado atual globalizado (Morgado, 2006; Pacheco, 2003) e à qual a Lei de Bases da Educação portuguesa, de 2005, procurou dar resposta (Ehrensperger, 2009).

Por sua vez, a mudança de paradigma educacional que está na base do processo de Bolonha, iniciado no final dos anos 1990, visando a criação do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES), tem na reorganização curricular o impacto mais significativo no funcionamento do ensino superior, garantindo maior flexibilidade, inovação e integração (Mesquita, Flores e Lima, 2011). Apesar da existência de alguma uniformização na estrutura dos cursos, “cada instituição e cada curso, na sua estrutura curricular, dá maior ou menor ênfase a uma determinada área, de acordo com os seus objetivos” (id., ibid., p. 517), desde que seja assegurada a leitura e comparabilidade com os restantes no enquadramento europeu (Ehrensperger, 2009). Aqui reside um dos principais desafios e riscos apontados a este processo, a saber a “formatação uniformizadora das formações determinada pela métrica e um mercado globalizador” (Ferreira, 2006, p. 238).

De acordo com Ehrensperger (2009, p. 231), as políticas educativas em Portugal são centralistas, uma vez que são “definidas pelo governo central que estabelece normativas a serem seguidas por todas as instituições de ensino superior”, numa lógica de reprodução normativa. Embora exista autonomia universitária e os planos curriculares sejam da responsabilidade das instituições de ensino superior, “o Governo pode estabelecer diretrizes quanto à denominação dos cursos e às áreas científicas obrigatórias e facultativas dos planos de estudo” (id., ibid., pp. 210-211).

Apesar do forte crescimento da oferta e da procura no ensino superior português nas últimas décadas do século XX, hoje a oferta de vagas é superior à procura (Ehrensperger, 2009; Ferreira, 2006). Se tivermos ainda presente que a taxa média anual de crescimento da população é praticamente nula (­Amaral, 2007), compreendemos que estamos perante problemas estruturais neste sistema de ensino, que hoje se equacionam também com respostas ao nível supranacional.

É neste contexto que a União Europeia se vem afirmando como uma instância supranacional com um papel ativo na “definição de políticas educa­cionais de caráter transnacional” (Lima, Azevedo e Catani, 2008, p. 9). A progressiva europeização do currículo (Morgado, 2009) e a definição de um perfil de competências globais para a educação e formação do cidadão europeu (Pacheco, 2003), enquadrado num espaço europeu de aprendizagem ao longo da vida, têm como finalidade o fortalecimento da posição competitiva da Europa perante o mundo, em particular os Estados Unidos (Ehrensperger, 2009; Pacheco, 2003).

Alguns estudos e projetos europeus de referência no âmbito da empregabilidade e da cooperação entre a universidade e as empresas “enfatizam a importância do ajustamento dos curricula às necessidades do mercado de trabalho e da sociedade em geral” (Cardoso et al., 2012, p. 11). No entanto, este ajustamento não parece obedecer a procedimentos objetivos, pelo que a oferta se molda em função da procura. Neste sentido, as universidades apresentam propostas de cursos com base nos seus recursos e perceções do mercado, condicionando a abertura dos cursos apenas a um mínimo de alunos que viabilize economicamente a oferta e a suprima perante a inexistência de procura ao fim de um determinado período.

 

METODOLOGIA

 

O presente texto resulta de um estudo que mobilizou uma panóplia de instrumentos técnicos de pesquisa, desde a análise e recolha documental e de informação estatística, passando por um conjunto de entrevistas e a realização de um inquérito por questionário.

Para este artigo, é sobretudo utilizada a informação documental recolhida sobre a organização dos cursos superiores relativos ao campo profissional da geologia. Esta análise documental teve as seguintes fontes: estudos existentes sobre a matéria em questão; os dados disponibilizados pelo ex-Observatório da Ciência e Ensino Superior (OCES)1, o Guia Nacional de Candidatura ao Ensino Superior 2010-2011 e os Guia do Estudante editados pelo jornal Expresso em 2010, além da informação recolhida junto de instituições de ensino superior, diretamente, ou nos seus sites eletrónicos. As referidas fontes-base são, em parte, fontes secundárias materializadas editorialmente pela imprensa, mas têm a sua origem nos registos do ministério que tutela o ensino superior e têm a vantagem de obedecer a critérios uniformes. A opção pelas edições saídas em 2010 face às correspondentes que foram publicadas em 2011 deveu-se ao facto de terem sido as primeiras que organizaram a procura dos candidatos à frequência dos cursos no ano letivo de 2010-2011. A exploração exaustiva destas fontes secundárias apresenta-se, pois, como essencial para o conhecimento e análise da oferta educativa existente.

São aqui analisados, em particular, os cursos em geologia e em engenharia geológica e/ou de minas. Para concretizar os objetivos do presente texto, procedeu-se à análise das composições curriculares dos cursos, da evolução recente da oferta e procura de ensino e da produção de diplomados, e das áreas de especialização dos cursos, isto é, as várias áreas em que os domínios de formação de base se desdobram e que comunicam já mais diretamente com o mercado de trabalho e o exercício da profissão. O período sob análise envolveu diferentes abordagens: as composições curriculares foram analisadas por escolha intencional associada à identificação de três pontos de viragem – década de 60, década de 80 e período entre 2007 e 2012 – como momentos de mudança e inovação, com criação de novos cursos ou grande alteração curricular; a análise da oferta e procura de ensino e produção de diplomados teve por base dados disponíveis de 1995 a 2011.

 

O CAMPO DA GEOLOGIA NO ENSINO SUPERIOR PORTUGUÊS

 

O caso particular da geologia constitui a evidência empírica que sustenta o presente artigo, contemplando as formações de geologia e de engenharia geológica e/ou de minas.

Entende-se, em primeiro lugar, que a geologia portuguesa se tem caracterizado por um reduzido número de alunos e profissionais, arriscando tornar-se “uma espécie em vias de extinção” (Brilha, 2004, p. 2). Tal pode ficar a dever-se ao facto de, em Portugal, “a formação cuidada de geólogos e engenheiros de minas” (Carneiro e Mota, 2010, p. 521) não ter tido lugar até ao século XX, altura em que o surgimento da Sociedade Geológica de Portugal, na década de 1940, e a criação da primeira licenciatura em “geologia”, nos anos 602, ­permitiram a “atribuição do título profissional de geólogo” (id., ibid., 2010, p. 525). Este relativo atraso e reduzida expressividade justificam uma certa falta de protagonismo e capacidade de intervenção social por parte dos geólogos (Brilha, 2004), uma consequência de um “geral desconhecimento do seu papel na sociedade” (Dinis e Cunha, 2010, p. 589).

Embora o número de ingressos em “geologia” tenha aumentado com alguma expressão desde a expansão do ensino superior português até ao início do século XXI, o período curricular de 2001/2002 marca um decréscimo assinalável nas candidaturas, destacando-se como fatores mais determinantes o “enorme alargamento na formação de Ensino Superior”, um “contexto de intensa perda demográfica” e a “saturação das colocações no ensino básico e secundário público de recém-licenciados no ramo educacional” (id., ibid., pp. 588 e 593). Este último aspeto revela-se de extrema importância, uma vez que “a maior parte de licenciados em geologia se encontra nas escolas dos ensinos básico e secundário onde lecionam conteúdos de geologia que são, muitas vezes, desvalorizados relativamente aos temas do domínio da biologia” (­Brilha, 2004, p. 2). Esta é uma realidade retratada com o exemplo da Universidade de Coimbra, onde, até 2001, “a maioria dos alunos desta licenciatura optava pelo ramo educacional” (Dinis e Cunha, 2010, p. 588). Não é de admirar, pois, que tal saturação nas colocações se tenha traduzido num número significativo de pessoas que “optaram por uma atividade profissional não ligada ao ensino” (Gomes e Alencoão, 2010, p. 613), realidade que se acentuou na última década.

Nos anos 80, com o intuito de “obter um compromisso entre o ensino de matérias da área da engenharia e um conteúdo significativo de disciplinas da área da geologia” (Oliveira, 2010, p. 361), foi criada a licenciatura de “engenharia geológica” em várias universidades que já ofereciam cursos em “engenharia civil”, “engenharia de minas” e “geologia”, com destaque para a Universidade Nova de Lisboa e a Universidade de Coimbra (Dinis e Cunha, 2010; Oliveira, 2010). Com “Bolonha”, “a estrutura dos cursos de geologia e de engenharia geológica foi reformulada, diferentemente de escola para escola” (Oliveira, 2010, p. 361), seja pela afirmação de certas áreas como “geologia aplicada”, “geologia ambiental” e “gestão do ordenamento do território” (Araújo e Neiva, 2010; Vasconcelos, 2010), seja pelo reforço da “geologia de engenharia” e outras unidades curriculares que introduzem alguma variabilidade nas designações dos cursos de engenharia, de acordo com os ramos de especialidade (Araújo e Neiva, 2010; Rodrigues-Carvalho e Silva, 2010).

À semelhança dos cursos de geologia, também os cursos de engenharia geológica e/ou de minas apresentam “deficiências nacionais”, como é reportado pela Ordem dos Engenheiros num ciclo de conferências que organizou: número excessivo de cursos, atendendo à dimensão do país e em comparação com os EUA; e número reduzido de alunos, docentes e investigadores (Ordem dos Engenheiros, 2012).

A avaliação destes cursos em várias universidades, realizada por um conjunto de comissões avaliativas, sustenta que “o muito que foi feito continua a ser insuficiente quer para a afirmação da Geologia, quer para a afirmação dos profissionais desta área” (Araújo e Neiva, 2010, p. 558). Como tal, é defendida por vários autores, numa lógica de flexibilização curricular, a importância crescente de uma aquisição de novos conhecimentos e competências transdisciplinares, como a comunicação e o empreendedorismo (Griffiths, Diver e Williams, 1997; Robb, 2013), no sentido de abrir novas possibilidades aos profissionais no mercado cada vez mais complexo e exigente do século XXI.

Para prosseguir a análise e interpretação desse objeto, importa, pois, caracterizar os seguintes domínios no campo da geologia: a oferta e procura formativa (de geologia e de engenharia geológica e/ou de minas3), a composição curricular e as áreas de especialização dos respetivos cursos. Em alguns pontos procedeu-se a uma seleção de algumas instituições de ensino e de cursos, dada a extensa oferta formativa. A seleção foi baseada numa preocupação em contemplar uma diversidade de instituições e cursos a nível nacional.

 

ANÁLISE DA OFERTA FORMATIVA

 

A geologia é uma ciência antiga, que estuda a morfologia, composição e dinâmicas de longo prazo da crosta terrestre, e como tal é investigada e ensinada desde há muito nas faculdades de ciências das universidades tradicionais. No caso português, ao longo do século XX, isso aconteceu em cursos de licenciatura em “geologia” nas Universidades de Coimbra, Lisboa e Porto, geralmente de cinco anos de duração, com uma prevalência de disciplinas incluindo áreas de matemática, física, química, biologia e, obviamente, geologia.

Com a recente adoção das orientações de “Bolonha”, estes cursos tenderam a cingir-se a um modelo de licenciatura de três anos, seguidos de mestrados mais especializados de dois anos, embora haja exceções a tais configurações.

Da pesquisa documental efetuada resultam desde logo algumas observações de caráter geral.

A primeira é a de que a quase-totalidade da oferta formativa existente em Portugal neste campo da geologia reside no ensino público, pois apenas encontrámos um curso ligado a uma instituição do ensino particular e cooperativo. Por uma questão de antiguidade e tradição, pelo pequeno volume dos efetivos discentes e, sobretudo, certamente pelo custo de algumas infraestruturas e processos necessários ao ensino (laboratórios, museus, trabalho-de-campo com perfurações, etc.), verifica-se que praticamente nenhuma instituição do setor particular e cooperativo se abalançou até agora nesta área.

Porventura pelas mesmas razões, com uma única exceção, verifica-se também, em segundo lugar, que todas as instituições de formação em “geologia” pertencem ao subsetor do ensino universitário. De facto, observa-se que até mesmo todas as formações orientadas para o exercício do professorado de matérias de geologia no ensino geral obrigatório têm sido dadas nas escolas universitárias e não nas Escolas Superiores de Educação dos Institutos Politécnicos.

Por último, ocorre dizer que nenhuma destas formações é oferecida nas universidades da Madeira e dos Açores, o que até pode surpreender neste último caso, dada a ativa vulcanologia existente na região autónoma.

 

AS FORMAÇÕES EM GEOLOGIA

 

Sendo muito antigos, e com tradições bem ancoradas na academia, os cursos de licenciatura em “geologia” das maiores universidades portuguesas sofreram significativas evoluções na sua estrutura curricular ao longo das últimas décadas, sob o regime democrático saído da revolução de 1974.

Na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no ano de 1983, é feita uma reorganização de todas as suas formações, para ativar o sistema das unidades de crédito, onde na área científica da geologia são reconhecidos três cursos: “geologia”, “geologia económica aplicada” e “ensino da geologia” – os dois primeiros com uma duração de quatro anos, e o último com duração de cinco anos, garantindo a profissionalização dos seus diplomados para o exercício de funções docentes na escolaridade básica e secundária.

Diferente nas nomenclaturas, mas com algum paralelismo conceptual, o reformulado curso de licenciatura em “geologia” aprovado para vigorar em 1981-1982 na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto apresenta então três ramos (“científico”, “científico-tecnológico” e “educacional”): a composição curricular é comum no 1.º e 2.º anos; no 3.º é comum para o ramo científico e científico-tecnológico, e já diferente para o “ramo educacional”; no 4.º ano, cada ramo tem o seu currículo próprio, sendo que o científico termina aí o seu percurso escolar; finalmente, existe um 5.º ano de estágio profis­sio­nalizante facultativo para o ramo científico-tecnológico e um de estágio ­pedagógico obrigatório para os alunos do “ramo educacional”.

Ainda diferente dos anteriores é o caso do plano de estudos da licenciatura em “geologia” oferecido pela Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra em 1983-1984, pois, sendo homólogo ao do Porto no que toca aos ramos “científico” (com quatro anos de duração) e “educacional” (com cinco, sendo este último constituído por um estágio pedagógico), falta-lhe contudo, em absoluto, o “ramo científico-tecnológico” ali então existente.

Esta evolução parece indicar que, ao lado do tradicional curso de “geologia” de vocação essencialmente científica – ciência fundamental virada para o conhecimento e a investigação – e de um curso destinado a habilitar pedagogicamente os futuros professores do ensino geral, a partir dos anos 80 foi começando a tomar forma uma outra linha de formação, que num caso se designou por “geologia económica aplicada” e no outro por “ramo científico-tecnológico”, de vocação mais aplicada e talvez mais próxima das engenharias, que procuram operacionalizar e explorar tecnicamente, em condições economicamente aceitáveis ou vantajosas, os recursos naturais existentes.

Passando à atualidade, no ano letivo de 2010-2011, a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa regia um curso de licenciatura em “geologia” com quatro anos (semestralizados) de duração (240 ECTS), com dois ramos de especialização nos 3.º e 4.º anos, em “geologia aplicada e do ambiente” e em “geologia e recursos naturais”, o que constitui uma relativa excecionalidade no quadro do “processo de Bolonha”. Além disto, numa conceção formativa mais modulável e interdisciplinar, há também outras possibilidades de obter licenciatura, sempre a partir do tronco comum dos dois primeiros anos: “geologia com minor em outra área científica” e “major em geologia com minor em biologia”. Passando em sequência para as novas formações superiores de 2.º ciclo, existem aqui dois cursos de mestrado de três semestres de duração (90 ECTS) com as designações de “geologia” e de “geologia aplicada”, e a possibilidade de frequência de três outros cursos de mestrado, não facilmente identificáveis, mas que poderão ser os de “ciências geofísicas”, “ciências do mar” e “sistemas de informação geográfica: tecnologia e aplicações”, todos de quatro semestres de duração (120 ECTS). Embora não oferecido em 2010-2011, anunciava-se que voltaria a abrir para o ano letivo de 2011-2012 o mestrado em “ensino de biologia e geologia no 3.º ciclo do ensino básico e no ensino secundário”, com duração de quatro semestres (120 ECTS), que vem acrescentar-se aos anteriores. Finalmente, existe um doutoramento em “geologia” com 11 áreas de especialização possíveis.

Diferentemente de Lisboa, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto o curso de licenciatura em “geologia” tem a duração, hoje normalizada, de três anos letivos, não semestralizados (180 ECTS) e sem variantes ou ramos de especialização. Sequencialmente, esta escola oferece três cursos de ­mestrado: em “geologia”, em “geomateriais e recursos geológicos” (este último em comum com a Universidade de Aveiro) e em “ensino”, todos com a duração de dois anos (120 ECTS). Finalmente, há um doutoramento em “geociências” com sete áreas de especialização.

Também o curso de licenciatura em “geologia” da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra apresenta a duração de três anos, semestralizados (180 ECTS), sem qualquer variante minor. No entanto, quer a “geologia”, quer a “engenharia geológica e de minas” (ver mestrado abaixo) podem ser variantes minor de outros cursos de licenciatura lecionados nesta faculdade. No 2.º ciclo de estudos superiores aqui ministrado aparecem quatro cursos de mestrado: em “ciências da Terra”, “geociências”, a referida “engenharia geológica e de minas” e ainda em “ensino”, todos com duração de dois anos (120 ECTS). Por último, existe um doutoramento em “geologia”, com seis áreas de especialização, e outro em “geotecnologias”, com três áreas de especialização.

Relativamente ao que ocorria entretanto nas novas escolas criadas depois de 1970, apenas na Universidade do Minho funcionava um curso de licenciatura em “geologia” com três anos de duração (em regime pós-laboral desde 2010-2011), semestralizados (180 ECTS). A esta formação inicial seguia-se um mestrado em “património geológico e geoconservação” e outro em “ensino”, ambos com duração de dois anos (120 ECTS). Em contrapartida, não existia ainda um doutoramento nesta área.

Temos, portanto, quatro licenciaturas em geologia, seguidas de várias formações de 2.º e 3.º ciclo mais especializadas, incluindo os mestrados em “ensino”, que habilitam à lecionação no sistema público de educação, no 3.º ciclo do ensino básico e no ensino secundário.

 

AS FORMAÇÕES EM ENGENHARIA GEOLÓGICA E/OU DE MINAS

 

As técnicas de exploração de minas de fundo, lavras e pedreiras são antiquíssimas e quase todos os povos as empregaram para o aproveitamento útil de rochas e minérios, tal como para a procura e consumo das águas subterrâneas. Na época moderna, com instrumentos e saberes já desenvolvidos pelo pensamento científico, a exploração mineira do carvão e do ferro (e outros minerais), e posteriormente a perfuração para extração do petróleo bruto, estiveram na base do salto civilizacional da sociedade industrial. Assim, desde o século XIX, a engenharia de minas constituiu um domínio de aplicação privilegiado dos conhecimentos geológicos. Apesar da relativa escassez das nossas jazidas minerais ferrosas e não-ferrosas, a par do curso universitário de “geologia” ministrado nas faculdades de ciências, foi-se consolidando uma formação superior em “engenharia de minas”, em Lisboa e no Porto.

No Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa funcionou um curso de licenciatura em “engenharia de minas” desde 1921 até 1994, sendo que em 1982 passou a subdividir-se em dois ramos (denominados “geologia aplicada” e “planeamento mineiro”); de 1994 até 2006 o curso designou-se por “engenharia de minas e geo-recursos”; e no ano letivo de 2006-2007 adotou o nome de “engenharia geológica e mineira” – sempre com cinco anos de escolaridade. Atualmente (a partir de 2010-2011), funciona ali o curso de licenciatura em “engenharia geológica e de minas”, no modelo dos três anos “de Bolonha”, semestralizados (180 ECTS). Esta formação prossegue a nível do 2.º ciclo de estudos com um mestrado em “engenharia geológica e de minas”, de dois anos (120 ECTS), cuja titularidade dispensa o exame de admissão à Ordem dos Engenheiros. Existe também nesta escola um doutoramento em “geo-recursos”.

Na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto funciona atualmente um curso de licenciatura de três anos, semestralizados (180 ECTS), intitulado “ciências de engenharia: engenharia de minas e geo-ambiente”, que é o herdeiro do antigo curso de “engenharia de minas” daquela cidade nortenha. A esta formação de 1.º ciclo faz seguimento um mestrado de dois anos (120 ECTS), igualmente em “engenharia de minas e geo-ambiente”. Existe ainda um doutoramento em “engenharia de minas e geo-recursos”.

Na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra existiram já, por exemplo em 1983-1984, cursos de licenciatura (de cinco anos de duração) em “engenharia geológica” e em “engenharia de minas”. Porém, atualmente, há apenas um curso de mestrado em “engenharia geológica e de minas” (que assinalámos acima) com dois anos de duração (120 ECTS), e que é uma das alternativas possíveis para o prosseguimento de estudos de diplomados em “geologia” (além de poder constituir-se como opção minor para outros diversos cursos desta faculdade).

Encontra-se, pois, um primeiro conjunto de antigos cursos de “engenharia de minas” que, provavelmente pela escassez da procura e de oportunidades de emprego dos seus diplomados, a partir dos anos 80 foram alargando o seu âmbito para outros domínios de exploração de recursos do subsolo, aproximando-se mais em direção aos saberes tradicionais da geologia, mas pela via da sua operacionalização industrial e económica. Contudo, adicionalmente, a esse conjunto de cursos veio acrescentar-se, também a partir dessa época, a criação de novos cursos assentes diretamente no conceito de “engenharia geológica”, por parte de bom número das novas universidades.

De facto, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa funciona hoje uma licenciatura de três anos, semestralizados (180 ECTS), com a designação de “engenharia geológica”. Seguem-se, em paralelo, dois mestrados de dois anos de duração (120 ECTS) em “engenharia geológica (geo-recursos)” e em “engenharia geológica (geotecnia)” –, cujas titularidades dispensam o exame de admissão à Ordem dos Engenheiros. Finalmente, existe aqui também um doutoramento, sempre em “engenharia geológica”.

Idêntico esquema existe na Universidade de Évora, com uma licenciatura de três anos, semestralizados (180 ECTS) em “engenharia geológica”. Esta formação pode ser seguida por qualquer um dos dois mestrados oferecidos, um em “engenharia geológica” (cuja titularidade dispensa o exame de admissão à Ordem dos Engenheiros), o outro na modalidade de “ensino”, com duração de quatro semestres cada (120 ECTS). Não existe doutoramento nesta universidade nesta área.

Na Universidade de Aveiro é lecionado um curso de licenciatura de três anos, semestralizados (180 ECTS), também em “engenharia geológica”. Em sequência, existem os cursos de mestrado de dois anos (120 ECTS) intitulados “engenharia geológica” (cuja titularidade dispensa o exame de admissão à Ordem dos Engenheiros), “geomateriais e recursos geológicos” (em parceria com a Universidade do Porto) e ainda o de “ensino”. E há ainda dois doutoramentos: em “geociências” e em “geotecnologias”.

Como se vê, com mais estas três, perfazem-se aqui cinco licenciaturas vocacionadas para a engenharia geológica e/ou de minas, a que dão seguimento diversas formações de mestrado e doutoramento. Esta tendência acompanha a expansão das formações em engenharia para vários domínios do saber científico (como é o caso da geologia), acompanhando o estreitamento da relação entre ciência e tecnologia na organização dos mercados de trabalho, e complexificando as dinâmicas de competição, diferenciação, e fechamento sociais das ocupações que coexistem num mesmo campo profissional.

Finalmente, encontrámos ainda dois casos singulares de formações que concedem o grau de licenciado nesta área disciplinar, mas que não correspondem a nenhum dos agrupamentos anteriores. De facto, existe na Universidade de Évora um curso de licenciatura marcado por uma forte interdisciplinaridade com a designação de “ciências da terra e da atmosfera”, com duração de três anos, semestralizados, segundo o modelo de “Bolonha” (180 ECTS). Registámos também a existência no Instituto Superior de Engenharia do Porto, do Instituto Politécnico do Porto, de um curso de licenciatura de três anos, semestralizados (180 ECTS), em “engenharia geotécnica e geoambiente”.

Em conclusão deste primeiro exercício de pesquisa, fundamental para a compreensão da oferta formativa e das suas mudanças, podemos concluir que o plano da formação dos especialistas de nível superior na área da geologia é composto por uma multiplicidade de fileiras e entrecruzamentos, uns antigos, outros mais recentes, onde se evidenciam o sólido núcleo científico da geologia, as engenharias ligadas à sua exploração, as aproximações à biologia e as linhas de formação de professores para o Sistema Nacional de Educação. Contudo, se a genealogia histórica dessas fileiras aparenta sustentar uma clara diferenciação dos seus saberes e do seu posicionamento funcional no campo profissional da geologia, a análise diacrónica revela uma adaptação da oferta formativa à transformação das condições do mercado de trabalho e, correlativamente, da procura de diferentes cursos. Essa adaptação aponta no sentido de uma crescente maleabilidade interdisciplinar da formação, apelando a diferentes áreas de especialização, criando sobreposições funcionais nas fronteiras historicamente estabelecidas entre as ocupações presentes neste campo. Para perceber em que medida essa sobreposição se revela apenas um reposicionamento daquelas ocupações diferenciadas no mercado de trabalho através de novas estratégias de credencialismo, ou se aponta para dinâmicas de hibridação que tocam em planos mais profundos da sua diferenciação e fechamento sociais – como seja ao nível dos seus saberes profissionais – importa, pois, caracterizar mais em profundidade aquela oferta formativa, nomeadamente, em termos da sua composição curricular.

 

ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO CURRICULAR DOS CURSOS

 

Se discutimos a questão das fileiras de formação, a aproximação aos saberes exige uma análise mais detalhada ao nível dos planos de estudos dos diferentes cursos acima repertoriados. Concluímos que estes incluem não apenas uma grande variedade de modalidades de organização, como também são sujeitos a frequentes alterações: umas ditadas pela evolução científica e tecnológica (através dos canais próprios da difusão de conhecimentos); outras (de forma mais mediatizada) pelas oportunidades surgidas na economia e os sinais (positivos e negativos) provindos dos mercados de trabalho qualificados; e outras, ainda, pelos interesses institucionais e profissionais das escolas, dos seus docentes e das suas associações científicas e corporativas.

Perante essa enorme variabilidade, adotámos uma metodologia de análise que consiste em analisar a composição curricular dos seguintes cursos e épocas, considerados reveladores e significativos para o conjunto do campo profissional em estudo ao nível dos domínios de saberes.

 

I Formação em geologia:

a) Licenciatura de quatro anos de duração em “geologia”,

há cerca de três décadas;

b) Licenciatura de três anos em “geologia”, na atualidade;

c) Mestrado em “geologia”, na atualidade.

 

II Formação em engenharia geológica e/ou de minas:

a) Licenciatura de seis anos em “engenharia de minas”,

há cerca de cinco décadas;

b) Licenciatura de três anos em “engenharia geológica e de minas”,

na atualidade;

c) Mestrado em “engenharia geológica e de minas”, na atualidade;

d) Licenciatura de três anos em “engenharia geológica”, na atualidade;

e) Mestrado em “engenharia geológica”, na atualidade.

 

Dentro destes parâmetros, a seleção dos cursos foi efetuada de forma mista: numa primeira escolha, selecionaram-se cursos de maior reputação social (por exemplo, os que contemplam entrada garantida na Ordem dos Engenheiros) e produtores de maior número de diplomados; num segundo momento, escolheu-se aleatoriamente entre os cursos sobre os quais se dispunha da necessária informação documental.

Eis então os resultados apurados no final deste exercício analítico no quadro seguinte, em que se apresenta a distribuição em percentagem destas matérias por áreas científicas.

Os dados apresentados neste quadro permitem evidenciar os seguintes pontos de análise da composição curricular dos cursos, com um elemento de evolução diacrónica:

 

Quadro 1

 

a) Os cursos de licenciatura em “geologia” não terão sofrido nenhuma evolução curricular significativa nos últimos 30 anos, embora certamente tenha havido atualizações teóricas, metodológicas, empíricas e pedagógicas ao longo do tempo. Cerca de dois-terços das matérias lecionadas respeitam à área científica da geologia (nomeadamente a geologia estrutural, cristalografia, mineralogia, petrologia, geoquímica, paleontologia, estratigrafia, geomorfologia, sedimentologia, metalogénese, hidrogeologia, geistória, geofísica, cartografia geológica e prospeção), com uma presença pequena da matemática, física e química. Apenas a informática ocupa agora também o seu (reduzido) lugar nestas formações;

b) Pelo contrário, o curso de licenciatura em “engenharia de minas” de há meio-século está muitíssimo alterado, na versão em que hoje se apresenta, como “engenharia geológica e de minas”. As matérias de geologia mais que duplicaram, à custa de uma redução equivalente das ­cadeiras de engenharia (que, mesmo assim, assegura uma posição forte que inclui matérias tradicionais como: desenho; resistência de materiais; máquinas; topografia, cartografia e sistemas de informação geográfica; mecânica de solos e de materiais; hidráulica; recursos naturais, jazigos e águas minerais; exploração e processamento de minérios, análises industriais; e prospeção), havendo um reforço importante da ­componente de matemáticas, uma estabilização da física e da química e, como se esperaria, o surgimento da informática;

c) De origem mais recente, os cursos de licenciatura em “engenharia geológica” exibem um perfil curricular semelhante ao de “engenharia geológica e de minas” – com algum equilíbrio curricular entre matérias de geologia e matérias de engenharia –, apenas se distinguindo do anterior por uma muito menor presença das matemáticas;

d) Por último, nos cursos de mestrado observa-se uma acentuação de especialização na área anunciada pela respetiva designação. Assim, no mestrado em “geologia”, o seu currículo é quase totalmente preenchido com matérias dessa área. No mestrado em “engenharia geológica” há uma repartição equilibrada entre disciplinas de geologia e engenharia, com uma componente significativa de outras áreas (economia e gestão). No mestrado em “engenharia geológica e de minas” reforça-se a presença das matérias de engenharia, que ocupam mais de metade do elenco.

 

Esta análise reforça pois o sentido da sobreposição dos saberes e áreas de competência destes grupos no campo profissional da geologia. Acompanhando o seu movimento diacrónico, essa sobreposição aparenta assim resultar primeiramente de uma reconfiguração do domínio da engenharia de minas – em declínio de procura formativa – no sentido da sua extensão para a esfera da geologia, ampliando o espectro de competências reivindicáveis pelos formandos no mercado de trabalho. Contudo, a sua interpretação sociológica não é linear: se num primeiro momento tal reconfiguração pode ser lida como uma estratégia de ampliação do espaço de mercado de um segmento profissional, a relativa autonomia dos outros agentes atuantes no campo – como sejam as universidades e as empresas – não garante que essa ampliação se faça sob o beneplácito do monopólio profissional que possa estar estabelecido em outras áreas tradicionais de atuação daquele segmento profissional. Nesse sentido, a estratégia de ampliação do espaço de atuação de um grupo no campo pode, no reverso, abrir um novo espaço estratégico de disputa por outros grupos de alguns dos fechamentos sociais estabelecidos nesse campo. À medida que aquela ampliação das áreas de atuação se vai sedimentando em novas formações, áreas de especialização, e articulação de saberes, construídas já sob uma matriz crescentemente híbrida, as próprias fronteiras entre os grupos presentes no campo tornam-se cada vez mais permeáveis à intermutabilidade dos seus profissionais no mercado de trabalho, e a trajetos individuais de circulação dos mesmos pelos diferentes grupos, adquirindo novas formações e acumulando diversas formas de credencialismo.

Isso mesmo nos sugere um olhar, neste percurso analítico, sobre as áreas de especialização que vêm resultando destes processos de reorganização da formação no campo da geologia.

 

ÁREAS DE ESPECIALIZAÇÃO CIENTÍFICO-PROFISSIONAIS E UNIDADE DO CAMPO PROFISSIONAL

 

As linhas de especialização científica não são imunes às oportunidades geradas no campo económico (Bourdieu, 1997) e dos desenvolvimentos tecnológicos, ainda que também contribuam para a sua potenciação, pois trata-se de uma relação estrutural biunívoca, embora desigual em intensidade e modos de atuação.

Quanto às chamadas “saídas profissionais” dos cursos de 1.º e 2.º ciclo, os responsáveis universitários tendem geralmente a alargar ao máximo o leque das possibilidades oferecidas aos seus diplomados. Por isso, a análise da documentação pública disponibilizada é pouco esclarecedora e muito repetitiva. As áreas profissionais reivindicadas por cada uma destas duas principais linhas de formação – a “geologia” e a “engenharia geológica” – tendem a ser largamente coincidentes. Note-se, por exemplo, como a disciplina de prospeção se apresenta como útil às duas linhas de formação, provavelmente uma com intuitos de sondagem de pesquisa geológica, a outra com intenções de averiguar a existência, extensão e características de recursos minerais exploráveis. E note-se, também, o aparecimento recente nos planos de estudos de “engenharia” de uma matéria com a designação de “geologia de engenharia”, como que para sintetizar a base de conhecimentos geológicos operacionalizados mais indispensáveis ao trabalho dos engenheiros e constituir talvez uma “ponte” entre os dois saberes e potenciar a procura deste tipo de formação.

Serão então as competências e os saberes próprios de cada uma delas que possam ser demonstrados pelos diplomados que deverão ditar as suas oportunidades de emprego, face às necessidades sentidas pela entidade empregadora ou às oportunidades do mercado de prestação de serviços qualificados nesta área.

Compreende-se que as formações em “geologia” visem fornecer ao futuro especialista toda a bagagem científica necessária ao conhecimento da “história da Terra”, dos seus processos próprios e das dinâmicas de atuação dos seus agentes internos e externos e a possível previsão da sua evolução futura, isto é, atuando como uma ciência fundamental.

A engenharia geológica, aproveitando os conhecimentos desenvolvidos anteriormente pela engenharia de minas, coloca-se neste espaço com preocupações de aproveitamento económico e de emprego de tecnologias próprias e habituais da sua especialidade para a exploração controlada dos recursos naturais geominerais, isto é, como uma tecnologia e ciência aplicada.

Se quiséssemos sugerir como exemplo um outro domínio de desenvolvimento do sistema científico-tecnológico em que o mesmo tipo de partilha e complementaridade se encontra instituído entre duas especialidades (pelo menos no espaço académico-universitário), seria o dos geógrafos e dos engenheiros geógrafos.

Contudo, a distinção e a complementaridade ideal-típicas da matriz profissional daqueles grupos vê-se cada vez mais reorganizada empiricamente em torno de dinâmicas de competição no mercado de trabalho – ele próprio sujeito a solavancos económicos e tecnológicos – e sua dialética com os processos formativos destes profissionais.

Veja-se o sentido de evoluções recentes que se podem detetar nas formações mais avançadas hoje oferecidas, nomeadamente em cursos de especialização pós-graduada (que não conferem grau académico), em doutoramentos e nos chamados “pós-doutoramentos”.

Procurando a cooperação de várias disciplinas científicas de tradições bem arreigadas, e por vezes mesmo a integração dos seus saberes, vêm surgindo cada vez com mais frequência e intensidade designações desses percursos formativos ou de atividades de ciência tais como: “ciências da Terra”, “ciências geo-físicas”, “geo-ciências”, “geotecnologias”, “geo-recursos”, “património e geoconservação”, “geoambiente” ou “geotecnia” (esta última designação corresponde, aliás, a uma formação já relativamente consolidada em escolas de engenharia).4

Assim, quer no espaço da investigação fundamental (da geologia), quer no espaço das tecnologias de aplicação (engenharia geológica), parece haver uma apetência crescente para articular os seus saberes com problemáticas sensíveis para as sociedades contemporâneas, como é o caso do respeito pelo património natural e a qualidade ambiental (incluindo os fenómenos das alterações climáticas), ao mesmo tempo que cresce a exigência científica de uma descompartimentação disciplinar em favor de novas tentativas de articulação e síntese explicativa (evolução da Terra e do Espaço), favorecidas pela disponibilidade de novos instrumentos de investigação (observatórios de astrofísica, laboratórios mais sofisticados, apoio das ciências computacionais, etc.).

É também neste sentido que se verifica a existência de zonas de hibridação e sobreposição de saberes que não se verifica apenas no exercício profissional, mas, a montante, na formação que o sustenta, tornando-se uma dinâmica estruturante do campo, não passível de ser interpretada de forma isolada para cada grupo profissional. As instituições de ensino superior revelam, por sua vez, uma centralidade decisiva ao, na sua relativa autonomia – acompanhando as transformações do mercado de trabalho e particularmente a sua expressão nos ciclos de procura de formação – aparentarem ir para lá do fechamento social dos grupos profissionais que nelas socialmente se reproduzem, ao potenciarem formas de hibridação ao nível da oferta credenciada de novas formações que atravessam fronteiras profissionais, desafiando os seus arranjos credencialistas. Essas dinâmicas revelam-se pois centrais para compreender a estruturação contemporânea dos campos profissionais, para lá do próprio controlo estratégico dos grupos que os compõem.

Olhando, por fim, para o contracampo dialético destas dinâmicas, relacionando o nível da oferta com o da procura das formações sob análise no campo profissional da geologia, podemos reforçar a identificação do domínio da engenharia de minas como o nexo em torno do qual se vai estruturando este complexo de estratégias e agências de natureza diversa – intersetando profissões, universidades, e mercado de trabalho – resultando numa crescente hibridação do campo.

 

EVOLUÇÃO RECENTE DA OFERTA E PROCURA DE CURSOS SUPERIORES E DA PRODUÇÃO DE DIPLOMADOS

 

No que diz respeito aos números oficiais da oferta de vagas para estes cursos de licenciatura desde o ano letivo de 1995-1996 até ao ano letivo de 2010-2011 (v. Quadro 2), a análise efetuada permitiu-nos concluir que a evolução desta oferta apresenta variações regulares, globalmente com uma tendência ascendente até 2001, seguida de um decréscimo até 2008 e de nova inversão e tendência para aumentar desde então. Todos os cursos sofreram compreensíveis perturbações na altura da entrada em vigor do modelo de “Bolonha” mas os de geologia são, não apenas os mais constantes, mas também aqueles que ao longo deste período apresentam um valor médio de vagas de entrada mais elevado. Os cursos de engenharia geológica e/ou de minas foram os que sofreram maiores oscilações e mudanças, sobretudo estes últimos, que eram quase residuais no fim deste período (20 vagas em “engenharia geológica e de minas” no Instituto Superior Técnico e outras 20 em “engenharia de minas e geoambiente” na Faculdade de Engenharia do Porto).

 

 

Por universidades, a análise efetuada permitiu observar a maior consistência da oferta das Faculdades de Ciências de Lisboa, Porto e Coimbra, e de Aveiro – apesar de algumas variações mais anómalas –, a reduzida expressão das escolas de engenharia (Instituto Superior Técnico e Faculdade de Engenharia do Porto) e as posições mais marginais e/ou irregulares das restantes.

Convindo comparar esta oferta de ensino com a correspondente procura por parte dos estudantes que ingressam no ensino superior, analisou-se a evolução do total de alunos inscritos pela primeira vez e a diferença para as vagas que haviam sido abertas nesse ano, por agrupamentos de cursos, para três anos letivos que balizam o período estudado. Vejam-se os dados do quadro seguinte.

A situação alterou-se ao longo destes cerca de 15 anos, passando de um recrutamento que ultrapassava as vagas abertas para o concurso geral de acesso (certamente devido às vagas especiais, supranumerários, etc.) para um panorama inverso. Os cursos de engenharia geológica e/ou de minas parecem ser os que mais acusam esta tendência.

À análise acrescenta-se o escrutínio do número de diplomados (licenciados e mestres) pelas diversas instituições de ensino superior, na década que decorreu entre 1999-2000 e 2008-2009 (v. Quadro 3), com destaque para a geologia.

 

 

Os números apurados permitiram, adicionalmente, observar a posição forte das universidades antigas de Coimbra, Lisboa e Porto no que toca aos cursos de licenciatura de geologia e de engenharia geológica e/ou de minas. Neste cotejo, salienta-se a escassa produção de diplomados do Instituto Superior Técnico durante esta última década. Universidades mais recentes, como Aveiro, Nova de Lisboa, Évora ou Minho, constituem uma segunda linha de preenchimento do stock de profissionais atualmente existente.

Em termos gerais, esta análise permitiu visualizar os seguintes fenómenos principais:

 

a) Ao longo da última década e meia, o ajustamento entre a oferta e procura de formações nesta área técnico-científica evoluiu gradualmente num sentido de queda e de fuga de estudantes para outras formações;

b) Os cursos de “geologia” mantiveram um padrão razoavelmente estável de atração e produção de diplomados, com uma evidenciação maior para o curso da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa;

c) Os cursos de “engenharia geológica” estão a afirmar-se bem no tecido universitário, a pouca distância dos anteriores;

d) Os cursos de “engenharia de minas”, sozinhos ou associados à engenharia geológica, mostraram uma presença pouco mais do que marginal neste panorama, tal como, com alguma surpresa, o próprio Instituto Superior Técnico.

 

CONCLUSÃO

 

Segundo a literatura científica existente na área da sociologia das profissões, estas tendem a ser tributárias, em particular, de dois tipos de organizações: as instituições de ensino onde se processa a formação dos seus membros; e as associações profissionais que cada comunidade consegue construir para a defesa de interesses comuns. No complexo jogo das dinâmicas sociais, os constrangimentos e tendências determinados a partir da esfera dos sistemas económicos, da ciência e tecnologia, ou do espaço público da responsabilidade do Estado, também influem grandemente no modo de desenvolvimento concreto de cada grupo profissional. Contudo, podemos pensar que este segundo modo de ação é mais de natureza sistémica e contextual, enquanto as escolas, e, particularmente, as associações de pares agem como atores diretos do devir dos seus profissionais, coletivamente considerados.

Neste artigo debruçámo-nos sobre os processos formativos e, portanto, devemos chamar a atenção para o papel que as instituições de ensino exercem na configuração que emprestam à aquisição de saberes e identidades dos estudantes, seus futuros “colegas” de área científica. Considerámos muito em particular a oferta moldada pela evolução da procura através da perceção do mercado do trabalho.

A geologia, como ciência fundamental (cujos saberes são também importantes para outras áreas científicas de fronteira como a biologia, a oceanografia, a climatologia, etc.), tem mantido um perfil consistente nos seus processos e percursos formativos, sustentando os conhecimentos necessários para os aproveitamentos económicos dos recursos naturais e para uma melhor relação Homem-Ambiente. Adaptou-se ao novo modelo formativo de “Bolonha” e ganhou uma nova importância no quadro dos recursos económicos e estratégicos das nações.

Paralelamente, a antiga tradição tecno-científica da engenharia de minas (porventura com influência da corporação da famosa École des Mines francesa) viu decrescer a sua empregabilidade e valor económico nas últimas décadas, não tendo realizado uma viragem possível que outros fizeram (Estados Unidos da América, ex-União Soviética, etc.) para atividades importantes como a geotermia ou o petróleo off-shore. Em contrapartida, aderiu ao movimento de emergência de uma nova engenharia geológica, estabelecendo ligações importantes à construção (geotecnia) e ao ambiente (conservação, património, águas, etc.). De facto, a realização de obras de engenharia de enorme impacto ambiental, social e mesmo geológico (grandes pontes, túneis, barragens, canais e edificações de maior porte e massificação urbana) que foram sendo executadas ao longo do século XX evidenciou a necessidade de saberes operativos técnico-científicos situados a meio-caminho entre os domínios tradicionais da geologia e da engenharia de minas. Mas deve acentuar-se que esta necessidade foi oriunda da engenharia civil, e não dos seus colegas especialistas “das minas”. É ainda admissível que a importância mundial da extração de petróleo, de gás natural e da prospeção e exploração dos recursos minerais submarinos, bem como da geotermia (com cursos especializados em escolas estrangeiras socialmente prestigiadas), possa também ter contribuído para essa evidenciação, dada a relativa desadequação das técnicas utilizadas na exploração mineira tradicional, de lavra ou por galerias.

Beneficiando da autonomia universitária para a criação de cursos, várias instituições de ensino (inicialmente a Universidade de Aveiro e a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa) lançaram na década de 80, com sucesso, novos cursos de licenciatura em “engenharia geológica” (posteriormente adaptados a “Bolonha”) para aproveitar essa oportunidade.

Os remanescentes cursos de licenciatura em “engenharia de minas” evoluíram então para formações de perfil mais amplo, em “engenharia geológica e de minas” no caso do Instituto Superior Técnico, e em “engenharia de minas e geo-ambiente” no caso da Faculdade de Engenharia do Porto, ou transformaram-se em mestrados de especialização em “engenharia geológica e de minas”, como aconteceu na Universidade de Coimbra. A formação inicial exclusiva em “engenharia de minas” desapareceu. A Ordem dos Engenheiros alinhou-se com esta estratégia, passando a designar o seu colégio de especialidade por “engenharia geológica e de minas” e criando o título de especialista em “geotecnia” (que no respetivo Site se refere ser de natureza horizontal – isto é, acessível a várias formações, entre as quais certamente também a de “engenharia civil” – e contar com 77 nomes).

As matérias curriculares de geologia foram desenvolvidas nestes cursos no sentido de se obter alguma paridade entre as duas áreas de conhecimento. Porém, em certos casos, isso aconteceu sob o controlo e observando os interesses da engenharia, parecendo manter-se uma tensão latente entre os dois grupos no plano das atitudes e identidades profissionais – a despeito da visível e compreensível complementaridade de formações e de exercícios profissionais.

Apesar de a análise diacrónica efetuada da oferta formativa colocar a sua emergência associada primeiro a uma reconfiguração do domínio da engenharia de minas, não fica cabalmente delimitada a “paternidade” da iniciativa, e particularmente o controlo do processo em fase de estabilização destas formações em “engenharia geológica”, entre os espaços identitários da geologia e da engenharia. O situar da análise no âmbito mais amplo do campo profissional suscita uma leitura sociológica não só da forma como estas dinâmicas se vão (re)estruturando mediante estratégias sucessivas de afirmação social e económica de cada um dos grupos, mas de como elas envolvem necessariamente diversas instituições (com diferentes agendas) – como as universidades e as associações profissionais e científicas – e se processam por mecanismos vários, como sejam a influência nas decisões do Estado e na legislação, a ligação ao tecido empresarial, ou ainda a construção da sua própria imagem pública.

Enquanto existiram no campo profissional apenas geólogos e engenheiros de minas, julgamos que as suas fronteiras eram claras e consolidadas por uma experiência já secular, desde logo pela formação, mas que se traduzia inevitavelmente na prática do ato profissional. A partir do momento em que, recentemente, começaram a surgir no país os engenheiros geólogos, instalou-se alguma indefinição entre estes e os consagrados geólogos, no que toca às suas funções e competências profissionais. Na base deste processo está a formação. Ora a oferta formativa resulta do diálogo permanente com instâncias várias no mercado de trabalho e na economia. O recente esbater de fronteiras no campo da geologia entre ocupações antes bem diferenciadas que se demarcavam a vários níveis (formação, prática profissional, regulação deontológica), ilustra bem como o campo não é estanque, mas antes uma permanente luta de forças. Do mesmo modo, considerando a profissionalização das diversas ocupações do campo da geologia, fica demonstrado, por um lado, a não linearidade do processo, por outro lado, o poder das universidades no seu desenvolvimento.

A formação e o mercado de trabalho são esferas relacionadas no campo profissional e nas quais se evidencia a existência quer de iniciativas das universidades, na criação de novas formações ou de renovação das já existentes, quer (como consequência) de transformações no domínio das ocupações profissionais. O que fica evidenciado é que as transformações a que se assiste no domínio da formação contribuem para as mudanças no domínio da profissão, desempenhando, deste modo, um papel não desprezável e aparentemente cada vez maior em função da expansão da autonomia das universidades. Os diplomados do ensino superior universitário em “geologia”, dispondo de uma formação completa nesta disciplina científica – licenciaturas “pré-Bolonha” ou licenciaturas seguidas de mestrado do modelo “Bolonha” com uma duração total mínima de cinco anos –, constituem um grupo profissional habilitado em exclusivo para a realização da ampla gama de funções e exercícios contidos no ato profissional do geólogo contemporâneo, virado essencialmente para a investigação, tanto fundamental, como aplicada. Porém, é fundamental ter presente que os engenheiros de minas – e, de maneira mais difusa e problemática, os engenheiros geólogos – também dispõem de capacidades profissionais já legalmente reconhecidas neste mesmo campo, o que tem consequências na definição do âmbito de atuação de cada uma destas profissões.

A pulverização formativa e a hibridação de saberes na prática do ato profissional traduz-se assim em processos sociais de complementaridade, mas também de concorrência profissional num mesmo campo profissional. Reitera-se pois a saliência dos processos formativos na estruturação dos campos profissionais mas, neste caso, não (apenas) como um mecanismo clássico de fechamento social de cada grupo profissional, mas antes como um mecanismo de hibridação entre grupos. Tal concorre para um quadro de crescente indeterminação, em torno do encadeamento causal de diversos atores, nos campos profissionais (e nos grupos que os compõem), também reiterando estes campos como uma unidade de análise central para poder captar e interpretar sociologicamente dinâmicas profissionais e educativas cada vez mais complexas e interdependentes. Os próximos tempos serão interessantes para observar os diálogos e ruturas entre estas formações e os seus impactos 5, designadamente perante a perspetiva de os geólogos verem o seu reconhecimento como profissão, autorregulamentada, por via administrativa.

 

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Recebido a 16-12-2013. Aceite para publicação a 14-01-2015.

 

NOTAS

1O OCES está hoje integrado no Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais do Ministério da Ciência e do Ensino Superior.

2Herdeira da formação em “Ciências geológicas”, criada em 1930 como substituição do curso de Ciências Histórico-Naturais (Carneiro e Mota, 2010).

3Não contemplamos na análise as formação de “Ensino da geologia” (excetuando algumas notas breves), na medida em que remetem para uma profissão específica e claramente delimitada – a de professor – não tendo um papel estruturante na configuração do campo profissional da geologia. Este grupo de diplomados em “Ensino da geologia” (geralmente associada à biologia) é hoje maioritário, em relação aos dois analisados neste artigo, mas só alguns podem realizar trajetórias profissionais transversais ou disputar as mesmas oportunidades de emprego no sistema económico ou no setor público, fora do ensino básico e secundário.

4É curioso igualmente observar que a oferta de formação existente em Portugal apresenta certas lacunas, talvez surpreendentes, em particular no âmbito da engenharia geológica e de minas. De facto, não se detetaram formações mais especializadas oferecidas em setores tão importantes como são o petróleo e o gás natural, a vulcanologia e a geotermia (com tantas potencialidades nos Açores, por exemplo) ou as técnicas de prospeção, perfuração e aproveitamento dos recursos dos fundos e subsolos marinhos. Haverá talvez entre nós algum distanciamento entre as “ciências da terra” e as “ciências do mar” (hidrografia, oceanografia, biologia marinha, etc.).

5A título ilustrativo destas dinâmicas, veja-se a decisão recente de transferência de um conjunto de competências do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) para o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia. Fonte: http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/ministro-da-presidencia-e-dos-assuntos-parlamentares/documentos-oficiais/20140703-cm-comunicado.aspx. Consultado a 26-07-2014.

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