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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.214 Lisboa mar. 2015

 

OBITUÁRIO

 

Manuel de Lucena (1938–2015)

Luís Salgado de Matos

 

Manuel de Lucena (Lisboa, 7 de fevereiro de 1938 – 7 de fevereiro de 2015) foi um cientista social português, um ator político e um literato. Nunca separou estas três categorias, o que era caso único na sua geração. Era um homem alto, cavalheiresco, em geral desengravatado e sempre galhardo, socializado de modo idiossincrático, fascinante e por vezes insistente conversador, cuja candura tinha a sua face serpentina na agudeza de inteligência, coragem das ações e tenacidade dos valores. Foi casado de facto com a engenheira agrónoma Laura Larcher Graça, nos anos 1960, e com a jornalista Paula Mascarenhas, nos anos 1980; teve um filho com cada uma delas.

Manuel João Maya de Lucena nasceu numa família tradicional portuguesa. Era filho e neto de oficiais do Exército. Acompanhou o pai a Angola. Regressou a Lisboa com 16 anos. Foi aluno dos jesuítas. Um amigo do pai deu-lhe acesso a um movimento monárquico, a Frente de Juventudes Tradicionalistas; publicou no semanário monárquico O Debate. “Depois, tornei-me mais católico do que monárquico, estive na Juventude Universitária (JUC)”. Frequentou brevemente o Instituto Superior Técnico e logo mudou para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Aqui se relacionou, entre outros, com João Vieira de Castro, Francisco Sarsfield Cabral. Foi ativo no Cineclube Católico (CCC), onde conheceu vários dos seus amigos católicos: o cineasta Paulo Rocha, João Bénard da Costa, Nuno de Bragança, Pedro Tamen, Carlos Portas.

Eclode então a crise universitária de 1961-1962. Aos 22 anos, é o principal redator dos célebres comunicados quase diários das Reuniões Inter-Associações (RIA). Alcança pela primeira vez a visibilidade. Era um homem de amigos e nesta crise solidificou os laços com Jorge Sampaio, Vítor Wengorovious, Nuno Brederode Santos, Jorge Almeida Fernandes, Vasco Pulido Valente, seus colegas em Direito, com José Medeiros Ferreira, da Faculdade de Letras, José Lavradio, da Faculdade de Medicina, e João Cravinho, do Técnico.

Integrou a primeira equipa d’O Tempo e o Modo, revista de diálogo entre católicos e não católicos, fundada em 1963 por António Alçada Baptista, e onde reencontra vários dos amigos acima nomeados.

Incorporado no Exército, deserta em 1963. É uma ação exemplar, que lhe aumenta a visibilidade. Exilado político, circula entre Paris, Argel, Roma. Foi um dos primeiros militantes do Movimento de Ação Revolucionária (MAR), com os seus colegas da crise universitária e Nuno de Bragança, Carlos Veiga Pereira, Armando Trigo de Abreu. Participou na Conferência Permanente da FPLN, um organismo em que coabitavam correntes de oposição ao Estado Novo; abandona-o em 1969, depois da invasão da Checoslováquia pelos exércitos do Pacto de Varsóvia. Após esta data não militará em nenhum partido nem em nenhum organismo partidário.

No começo dos anos 1970, foi um dos fundadores da revista Polémica, publicada no exílio, em Genebra, com José Medeiros Ferreira, Eurico de Figueiredo, António Barreto, Carlos Almeida e Ana Benavente.

Tendo abandonado a política partidária, dedicou-se, tal como uma plêiade de emigrados políticos (Miriam Halpern Pereira, Manuel Villaverde Cabral, António Barreto, Carlos Almeida), a estudar o seu país: Portugal seria único? O Estado Novo seria um fascismo? O marcelismo sobreviveria? As sereias da economia ou das classes sociais não o seduzem; segue um caminho próprio: de 1968 a 1971 frequenta o Institut de Sciences Sociales du Travail, em Paris, onde, sob a direção do Professor G. Lyon-Caen, escreve uma aprofundada mémoire de fim de curso que, em 1976, será traduzida em português, com o título A Evolução do Sistema Corporativo Português. A obra desdobra-se em dois volumes, sendo o primeiro consagrado ao salazarismo e o segundo ao marcelismo. Para além da pormenorizada análise das instituições corporativas, assente no exame da legislação como fonte sociológica, uma introdução teórica intervinha em termos originais e marcantes na questão da qualificação do fascismo, então central na sociologia política europeia: o fascismo não é um totalitarismo, o corporativismo não é inevitavelmente fascista, o Estado Novo é um fascismo sem movimento fascista.

Regressou a Portugal no verão de 1974. É incorporado no Exército, posicionando-se como quem desertara por se opor à política de Salazar e não por se opor à instituição castrense: “continuei o meu serviço militar após o 25 de Abril”, dirá numa entrevista. Promovido a alferes, foi colocado em Cabo Verde, onde desembarca em novembro de 1974, e cuja descolonização segue de perto. Sobre ela elabora um relatório a pedido de Melo Antunes, o qual enviará também ao então major Vítor Alves e a Mário Soares, então ministros da Defesa e dos Estrangeiros. De volta a Portugal, é colocado no Gabinete de Dinamização do Estado-Maior do Exército, onde inicia uma frutuosa amizade com Carlos Gaspar. É crítico do curso revolucionário. Apoiará o documento dos Nove. Foi desmobilizado pouco antes do 25 de novembro de 1975 e entrou no Gabinete de Investigações Sociais (GIS), hoje Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, fundado e dirigido à época por Adérito Sedas Nunes, sociólogo que fora um dos teóricos do corporativismo português. Foi no ICS que se aposentou como investigador principal.

A edição portuguesa d’A Evolução… granjeia imediato eco nacional e internacional. Manuel de Lucena torna-se então o primeiro cientista social português contemporâneo reconhecido no estrangeiro; entre outros, dialoga com Juan Linz, Emilio Gentile, Philippe Schmitter sobre a problemática do fascismo/corporativismo. Este, concebido como o agenciamento dos corpos intermédios de uma dada organização política, dominará a sua investigação posterior, que estendeu organicamente à Constituição, ao totalitarismo e à descolonização portuguesa.

Sendo acima de tudo um investigador singular, dirigiu três grandes projetos de pesquisa: sobre o desmantelamento dos grémios da lavoura (e depois dos organismos de coordenação económica), sobre as associações de interesses (financiado pela Tinker Foundation para o ICS), e sobre a descolonização, um conjunto de entrevistas aos principais participantes portugueses.1 Foi o orientador de provas académicas de Fátima Patriarca, de José Barreto e do signatário deste texto. Ensinou em diversas pós-graduações.

Nos anos 1970 e 1980, acompanhou os empreendimentos jornalísticos do seu grande amigo Víctor da Cunha Rego. Em 1981 apoiou a candidatura presidencial do general Soares Carneiro, o que surpreendeu quem nele via o esquerdista; embora mais tarde assumisse ruturas (“deixei de ser socialista”), não se tratava de um caso de refiliação: em 1996, apoiou a candidatura presidencial de Jorge Sampaio. Fora uma escolha própria, que explicou pela necessidade de uma integração europeia mais estruturada.

A sua intervenção política, do MAR ao cavaquismo, era sempre baseada em argumentos e por isso não deve ser ocultada nem contraposta à ciência. Foi um homem de palavras; procurou sempre levá-las a sairem do seu casulo e puxava por elas como ninguém. Criou um estilo próprio na prosa de ideias. As suas incursões literárias são todas traduções, isto é, recriações; dada a sua criatividade, é razoável crer que se tratou de uma renúncia.

Manuel de Lucena foi um pensador orgânico do político e do social; um institucionalista que desenvolveu a sua própria teoria e o seu método; um português: pesquisou problemas políticos relevantes do seu país e a sua teoria visava iluminá-los.

Não é de excluir que aquela organicidade nasça na doutrina social católica, ou no integralismo monárquico. O contacto diário com Adérito Sedas Nunes, a partir de 1975, e até 1991, reforçou aquela lógica orgânico-institucional.

O seu método, em parte imposto pelas contingências do exílio, que o limitavam à documentação escrita, começa por ser a interpretação dos textos jurídicos e, para lá do seu gosto analítico, era exigido pelas condições da emigração política. A sua teoria nem dispensou a verificação empírica nem se deixou fascinar pelos métodos quantitativos.

A dinâmica do pensamento de Manuel de Lucena é tocquevilliana: identifica o que o presente transporta do passado; por isso, o marcelismo herda do salazarismo, o primeiro motor não movido; o estudo dos grémios da lavoura analisa a subsistência do “antigo regime” depois da revolução do 25 de Abril, tarefa prosseguida com a pesquisa dos organismos de coordenação económica e, mais tarde, com o exame dos parceiros sociais. Este motor dinamiza sempre a pesquisa de Lucena. Em O Estado da Revolução, exporá a herança do Estado da Constituição de 1933. “Num ponto fulcral” encontra “uma grande continuidade” entre “o colonialismo de Salazar e a descolonização”: ambos tratavam as colónias como se fossem todas idênticas entre si.2 Esta busca de homologias ficava bem a um (ex)monárquico, isto é, a um defensor de um regime passado. Por isso, o lema tocquevilliano define Manuel de Lucena: na sua obra, como na sua vida, as ruturas articulam-se com a continuidade.

Morreu deixando anunciado um livro sobre a descolonização (para “um dia”), e inéditos: uma tradução de D. Francisco Manuel de Melo e ensaios biográficos sobre os que designou de “lugares-tenentes de Salazar” (mas, como se assinala no último CV raisonné que Lucena pôde ler, em O Estado da Revolução, p. 28, não acabou a biografia do autocrata para a atualização do Dicionário de História de Portugal).

                                                                                           

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ENTREVISTA COM MANUEL LUCENA. Disponível em http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wak ka=emlucena, consultado em 15-03-2015.         [ Links ]

FERNANDES, J.A. (2015), “Manuel de Lucena, homem livre e cientista político heterodoxo”. Público, 07-02-2015.         [ Links ]

GASPAR, C., PATRIARCA, F. e MATOS, L. S. de (orgs.) (2012), Estado, Regimes e Revoluções. Estudos em Homenagem a Manuel de Lucena, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Disponível em http://www.ics.ul.pt.ahsocial.

2  V. entrevista em http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=emlucena.

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