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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.214 Lisboa mar. 2015

 

RECENSÕES

ALBANESE, Matteo, BULLI, Giorgia,

CASTELLI GATTINARA, Pietro e FROIO, Caterina

Fascisti di un altro millennio? Crisi e partecipazione in CasaPound

Italia, Roma, Bonanno Editore, 2014, 152 pp.

ISBN 9788863180121

 

Riccardo Marchi*

*Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencout, 9 — 1600-189, Lisboa, Portugal. E-mail: riccardo.marchi@ics.ulisboa.pt

 

Entre o último quartel do século XX e o princípio do século XXI, a extrema-direita europeia encetou vários percursos de renovação ao nível organizacional e ideológico. Entre estes percursos destaca-se o surgimento do identitarismo, ou seja, da corrente de pensamento centrada na defesa das identidades nacionais europeias contra o projeto multicultural alegadamente promovido, a nível nacional e europeu, pelas esquerdas progres­sistas, pelas direitas liberais, pelas organizações não-governamentais e pelas Igrejas. As ideias identitárias contaminaram um amplo leque de sujeitos na extrema-direita do espectro político: partidos, movimentos sociais, associações, grupúsculos sub-culturais. Na área extrapartidária, as duas experiências identitárias mais inovadoras em termos nacionais, e influentes de um ponto de vista transnacional, encontram-se em França e em Itália com o Bloc Identitaire e a CasaPound, respetivamente. Trata-se de duas organizações reconduzíveis à área definida por Roger Griffin (2003) como “groupuscular radical-right”, e que sempre mereceu uma atenção menor por parte da literatura científica comparativamente à área dos partidos políticos, sejam eles – segundo a concetualização de Piero Ignazi (2003) – da velha ou da nova extrema-direita.

A relevância do objeto e a escassez de estudos sobre esta matéria motivaram quatro investigadores italianos de ciência política e história a realizar um estudo de caso sobre a associação CasaPound Italia (CPI). Já fotografada por inúmeros trabalhos de cariz jornalístico, CasaPound Italia conquistou apenas recentemente a atenção dos académicos (di Nunzio e Toscano, 2011), sendo a monografia agora publicada a confirmação da centralidade da CPI para este campo de estudos. Os autores justificam a escolha deste objeto de análise com o facto de o caso CPI permitir ultrapassar as limitações que frequentemente inviabilizam o estudo dos grupos: a existência efémera, a exiguidade numérica dos militantes, a indisponibilidade para se exporem à investigação científica. A CPI, pelo contrário, conta já uma década de existência, representa um dos movimentos radicais mais consistentes na Europa ocidental, e apresenta-se bastante disponível, por razões de visibilidade, à colaboração também com o mundo académico. Perante estas condições favoráveis, a equipa de investigação aprontou uma metodologia atenta à triangulação dos dados para garantir uma recolha exaustiva e uma análise aprofundada das dimensões escolhidas. Através da análise de conteúdo de vários site internet da rede de CPI foram mapeados todos os temas tratados pela organização, a importância hierárquica de cada um deles na agenda política e a sua tradução em práticas de mobilização. Estes dados quantitativos foram aprofundados através de 19 entrevistas em profundidade com dirigentes nacionais e locais da CPI e através da observação participante em dois momentos nacionais de relevo ocorridos em 2012. A apresentação dos dados está organizada em seis capítulos dedicados respetivamente à história da CPI, à sua ideologia, à organização e militância, às práticas de construção identitária e ao repertório de ações.

Logo à partida, os autores questionam a pertença da CPI à categoria dos partidos políticos populistas, assim como à dos movimentos sociais. Por um lado, apesar do discurso de protesto e antielitista, a CPI rejeita a minimização da dimensão ideológica e da militância de base típica dos novos partidos populistas e reivindica abertamente a matriz fascista e o ativismo de rua como aspeto central da membership. Por outro lado, a CPI rejeita a horizontalidade democrática dos movimentos sociais, pois a sua estrutura em rede é hierarquizada, a inscrição formalizada, a leadership e os “mediadores ideológicos” claramente identificados.

Organização híbrida entre institucionalização e movimentismo, a CPI apresenta fatores de inovação já na sua génese histórica e na organização. Surgida por iniciativa de um pequeno grupo de militantes que, em 2004, ocuparam um edifício devoluto em Roma em protesto contra a especulação imobiliária, a CPI cria, em dez anos, uma realidade ramificada no território nacional e ativa em várias frentes: cultura, desporto, excursionismo, ambientalismo, proteção civil, voluntariado, associativismo estudantil e sindical. O próprio ato de fundação (a ocupação destinada à habitação) rompe com o repertório tradicional da extrema-direita e carateriza a CPI por um modus operandi proativo traduzido em propostas legislativas concretas: Mutuo Sociale para garantir aos cidadãos o direito à propriedade da habitação, Tempo di Essere Madri para alargar os direitos à maternidade para as mulheres trabalhadoras, Ferma Equitalia para limitar a cobrança coerciva por parte do Estado das dívidas dos pequenos contribuintes. O mesmo pragmatismo é demonstrado também acerca de temas sensíveis como a imigração, que a CPI recusa por ser a forma do esclavagismo moderno, e a homossexualidade, face à qual a CPI defende o reconhecimento das uniões de facto pelo Estado, mas recusa a equiparação ao casamento e o direito à adoção.

Sublinhados os pontos de rutura com a extrema-direita, os autores prestam atenção à maneira como o movimento enfrentou, nos últimos anos, a janela de oportunidades oferecida pela crise económica. O estudo revela aqui uma aproximação da CPI à estratégia clássica da extrema-direita europeia para capitalizar ao máximo as falhas da União Europeia, mas sempre com um cunho bastante próprio, que combina “um europeísmo de princípio e um euroceticismo estratégico-eleitoral” (p. 110). Assim, o pedido de revisão dos tratados de Maastricht e Schengen é acompanhado pela proposta de protecionismo comercial da zona euro e de aproximação geoestratégica à Rússia. A convergência com a estratégia populista é evidenciada também pela decisão de concorrer às eleições. A análise da performance eleitoral da CPI é particularmente interessante porque evidencia como um indiscutível sucesso de marketing político não resulta necessariamente no plano eleitoral. Tendo ficado longe do 1% dos votos, a CPI não conquistou de todo o eleitorado de direita radical e, aliás, recaiu no espaço asfixiante dos demais partidos neofascistas (Forza Nuova e Fiamma Tricolore), que tinha abandonado com as práticas inovadoras. Esta urgência eleitoralista pode ser adscrita à “incapacidade de formular estratégias de longo termo” (p. 139) atribuída pelos autores ao movimento.

O estudo aponta com frequência o fascismo como “referência irrenunciável” (p. 37) da CPI tanto nas formas de militâncias inspirada no squadrismo, como no conteúdo das propostas económico-sociais inspiradas pela Carta del Lavoro (1927) e pelo Manifesto di Verona (1943). As análises propostas sobre a relação CPI-fascismo levantam algumas questões. Os autores apontam para o “ocultamento estratégico das dimensões mais desconfortáveis da ideologia fascista” (p. 45) por parte da CPI, que construiria, assim, um “fascismo à la carte” (p. 134) composto de temas selecionados instrumentalmente. Esta atitude parece-nos, pelo contrário, perfeitamente fascista uma vez que o próprio movimento mussoliniano integrou “à la carte” o que lhe interessava das diferentes doutrinas políticas. Acerca do squadrismo, o estudo revela como, no leque de táticas convencionais e não convencionais registadas na crescente mobilização de CPI, a violência ganha um papel preponderante, representando, segundo os autores, a modalidade de 35% das ações praticadas (p. 121). Posto que a CPI pertence a uma tradição política alheia à não-violência como princípio inspirador, a sua relação com a violência organizada teria merecido uma maior problematização que não a derivação, demasiado simplista, a partir de um fascismo histórico enraizado na “ideia de supremacia do mais forte sobre o mais fraco” (p. 59) e na “opressão como sistema social” (p. 88). Da mesma forma, a constatação que as referências da CPI ao fascismo movimento ocultam na verdade o fascínio em relação ao fascismo regime (p. 55) arrisca-se a desvirtuar mais uma inovação da CPI face ao neofascismo: a recusa da dicotomia do historiador Rendo de Felice, e a reivindicação do fascismo na sua inteireza de movimento e de regime.

Finalmente, uma última incompreensão deve ser assinalada acerca da utilização por parte da CPI de ícones da esquerda, esvaziados de significado, nomeadamente o de Che Guevara (pp. 77, 124). Na verdade, a CPI limita-se a reutilizar um ícone já presente na tradição de uma parte da direita radical desde os anos 60 e 70: o Che Guevara anti-imperialista e da ética guerreira ­celebrado por Juan Peron no seu exílio em Espanha, por Jean Thiriart na sua Jeune Europe, por Jean Cau no seu Une passion pour Che Guevara.

Estes reparos acerca de aspetos relevantes para a compreensão do fenómeno CPI não inviabilizam o valor da obra cujas conclusões salientam aspetos importantes para a dinâmica dos movimentos radicais. Em particular, os autores realçam a discrepância entre o sucesso da CPI na conquista da comunicação social, graças à utilização eficaz das técnicas de marketing (site, web-rádios, web-TV, media-ativismo) e o fracasso total da estratégia eleitoral (p. 118). Este fracasso é sintomático do abrandamento na expansão do movimento. A causa deve ser identificada na incapacidade de maximizar as oportunidades políticas oferecidas e, mais propriamente, na limitação objetiva representada pela reivindicação da identidade fascista. Esta conclusão leva os autores a considerar que “a janela de oportunidade de que o grupo soube desfrutar parece ter-se parcialmente fechado” (pp. 136 e 138) e apresenta um bom potencial de ­generalização em relação aos demais movimentos da direita radical ativos pelo menos na Europa ocidental. O estudo sobre a associação CasaPound Italia apresenta, assim, ótimo material para futuras investigações comparativas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DI NUNZIO, D., TOSCANO, E. (2011), Dentro e Fuori CasaPound, Roma, Armando.         [ Links ]

GRIFFIN, R. (2003), “From slime mould to rhizome: an introduction to the groupuscular right”. Patterns of Prejudice, 37 (1), pp. 27-50.         [ Links ]

IGNAZI, P. (2003), Extreme Right Parties in Western Europe, Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

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