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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.214 Lisboa mar. 2015

 

RECENSÕES

DOMINGOS, Nuno, MONTEIRO, Bruno (orgs.)

Tempos Difíceis. As Pessoas Falam sobre a sua Vida e o seu Trabalho,

Lisboa, Outro Modo Cooperativa Cultural/Le Monde Diplomatique,

2014, 94 pp.

ISBN 9789899582231

 

Virgílio Borges Pereira*

*Departamento de Sociologia e Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n — 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: jpereira@letras.up.pt

 

Ainda que seja, fisicamente, um pequeno livro frágil e se encontre, literalmente, preso por um fio, Tempos Difíceis. As Pessoas Falam sobre a sua Vida e o seu Trabalho está longe de poder ser definido em termos equivalentes do ponto de vista do respetivo conteúdo e alcance. Organizado por Nuno Domingos e Bruno Monteiro, que assinam também a Introdução, a obra ganhou vida nas páginas da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique ao longo de cerca de um ano numa série com o mesmo título do livro, publicado no final de 2014. Filiando-se nos trabalhos jornalísticos desenvolvidos por Louis “Studs” Terkel (1970 e 1974) sobre a experiência do trabalho e as memórias da Grande Depressão nos EUA a partir das vozes dos que as viveram, estes Tempos Difíceis portugueses alicerçam-se ainda no exemplo de análise fornecido pela investigação que Pierre Bourdieu (1993) coordenou sobre a produção do sofrimento social na França (e não só) de finais do século XX. Ilustrado por André Luz, que é também responsável pelo arranjo gráfico, o livro define-se em torno de 11 incisivos textos curtos que procuram analisar e restituir, numa sequência que antecipa e atravessa os anos da mais recente crise do país, a experiência, não linear, da dominação na vida e no trabalho em outras tantas situações sociais. Estas são retratadas a partir de um duplo ponto de vista que objetiva, frequentemente a dois tempos, as condições de vida do(s) entrevistado(s) e fixa uma situação de interação entre este(s) e quem entrevista.

O texto de Bruno Monteiro, “É fogo que arde sem se ver: os ‘velhos operários’ e a ‘nova fábrica’”, interroga as vivências da recomposição do mundo do trabalho com base nas transformações verificadas no universo fabril e oficinal tradicional do Noroeste do país, e releva a importância da combinação contraditória entre inovação tecnológica e gestionária e deterioração material e simbólica das condições de trabalho dos operários. Ao assinalar as exigências técnicas, corporais e morais que a nova fábrica coloca aos que nela laboram, as entrevistas e a análise identificam as condições que tornam possível a adesão à nova disciplina fabril e aquelas que definem a progressiva relegação laboral e social dos que a não incorporam.

“Ao som da sirene: a vida no Bairro de Santa Maria”, texto de Inês Brasão, leva-nos a um bairro, com 45 anos, de casas de rendimento económico de Peniche, ao ritmo imposto pelo trabalho fabril de transformação do peixe, e às injunções contraditórias que reproduzem trajetórias laborais marcadas pela precariedade. Entre o esgotamento de parte da frota pesqueira local e as estratégias de reconversão profissional encontradas na construção civil, o trabalho fabril de transformação do pescado consolida-se como emprego para os habitantes do bairro. Para o entrevistado do texto, uma tal circunstância, ainda que articulada com um potencial momento de valorização económica do pescado, não se traduz na superação de uma situação laboral precária e de condições de trabalho penalizantes.

José Nuno Matos, em “O retrato da jovem enquanto trabalhadora: da precariedade à precariedade”, incide o seu olhar sobre uma jovem de Lisboa que vê o seu percurso de vida definido pela importância do trabalho precário desde tenra idade e, não obstante os constrangimentos a que esteve sujeita, pelo cruzamento deste com um processo de escolarização superior que, não sem esforço pessoal e institucional, lhe recompõe o horizonte de oportunidades sem lhe quebrar, contudo, o peso da precariedade permanente. O retrato constrói-se com uma reflexão sobre as margens de ação pessoal, institucional e política a que a vida assim tecida se sujeita, e releva a importância dos repertórios estratégicos de adaptação dos indivíduos em situação de precariedade aos constrangimentos organizacionais, bem como as dificuldades da ação sindical para incluir a precariedade no seu horizonte de prioridades.

Maria Inês Coelho e Sandra Leitão, em “Do entusiasmo à amargura – um percurso na (des)industrialização”, direcionam o seu olhar para a região do Vale do Ave e para a densa trajetória de aprendizagens familiares articulada com a incorporação da disciplina fabril na indústria têxtil de uma mulher de 55 anos. À leitura das condições de possibilidade a que a negociação da entrada e da permanência na grande fábrica têxtil estavam sujeitas – um mundo feito de grandes fábricas povoou parte da região durante o século XX –, acrescenta-se a constatação do constrangimento decorrente do fim da fábrica e do desemprego compulsivo, incompatíveis com a formulação de horizontes previsíveis de futuro pessoal e coletivo.

Tomando por referência a experiência laboral de uma antiga trabalhadora que se dedicou durante 12 anos, numa vida ativa de 34, a apanhar frangos, Sara Conceição, em “‘Manipuladora de aves’: a privação da vida”, apresenta um relato de uma vida definida, durante muito tempo, pela precariedade das condições de trabalho e pelo cansaço extremos. A descrição, avassaladora, do conteúdo simples, mas muito intenso, das tarefas e ritmos de trabalho impostos pela atividade de manipular aves assinala a importância da força e da resistência físicas como condição para o trabalho e o lugar da exaustão na produção do fim da vida laboral. Assinala ainda, mesmo quando ausente, como é relevante a regulação jurídica e social do trabalho na produção da cidadania.

João Queirós, em “A experiência reiterada da relegação socioespacial ­perspetivada a partir de um bairro do Porto”, direciona o seu olhar para um dos bairros sociais municipais mais fragilizados e desafamados da cidade do Porto, o bairro do Aleixo, e para a visão do mundo de um dos seus velhos residentes. A restituição de voz a este morador permite, entre vários aspetos, ensaiar uma compreensão do processo de relegação socioespacial a que o bairro foi sujeito a partir de um ponto de vista alternativo ao dominante e, ao desnaturalizar a história do bairro, sublinhar a relevância das opções políticas na definição não só do seu passado, mas também do seu futuro.

Nuno Dias, em “A escolha de Vitória: trabalho doméstico e os equívocos da moral burguesa”, remete-nos para um outro domínio das relações sociais marcado pela opacidade, o das relações de trabalho doméstico, e para a trajetória densa de uma imigrante brasileira, desempregada aquando da entrevista, que, entre o Brasil e Portugal, se viu envolta pela trama que, em termos práticos e simbólicos, informa este domínio da realidade social e que lhe deu espaço de afirmação pessoal e social mas também lhe negou salários, direitos laborais e cidadania.

João Baía, em “No bairro da Relvinha, depois de Abril”, releva a importância da ação coletiva organizada na superação de impasses sociais e destaca as memórias de um militante de bairro de Coimbra com responsabilidades na construção do único contexto habitacional das operações SAAL que, nesta cidade, logrou ultrapassar a fase de projeto. Entre a identificação das dinâmicas da ação ­coletiva local e a exploração da oportunidade constituída pelo programa habitacional do período posterior a Abril de 1974, a entrevista é também um momento de reflexão sobre o presente desindustrializado do bairro e sobre o futuro pessoal e coletivo dos seus moradores.

Nuno Domingos, em “Ninguém é desafinado”, conta a história de um professor de música e o caminho que o leva do ensino num colégio privado de Lisboa à lecionação na Escola Básica do Vale de Alcântara, na mesma cidade, um estabelecimento de ensino “com boa estrutura” que serve as crianças provenientes dos novos bairros que realojaram as populações do Casal Ventoso. A entrevista permite destacar - para além da precariedade do exercício profissional, dos constrangimentos sociais a que o reconhecimento da docência nas atividades de enriquecimento curricular está sujeito, e dos impasses interacionais que decorrem na sala de aula – como pode ser relevante o ensino da música na superação de barreiras sociais e como, depois de um complexo mas bem sucedido período de integração do professor, este sai da escola para lugar incerto no ano letivo seguinte.

José Soeiro escreve um texto intitulado “A luta de Rita: precariedade, vontade de justiça, ‘um outro lado demasiado grande’” e centra também a sua atenção numa docente precária das atividades de enriquecimento curricular, neste caso de inglês, que habita no Grande Porto. Com origens num meio rural e numa família marcada pela pluriatividade e pelos baixos salários, a história de Rita revela-nos um exercício de auto-análise sobre o percurso social marcado por um aguçado sentido crítico, assim como pelos impasses, desmotivadores da ação, que se reproduzem em torno da precariedade laboral, da automobilização política ou do acesso à justiça.

Emília Margarida Marques, em “Ser mais que um robô”, apresenta um retrato da intensificação do trabalho físico na indústria do vidro e do modo como, no início do século XXI e para os operários entrevistados, a adesão às cadências aceleradas do trabalho fabril neste ramo de atividade se faz de imposição e de consentimento, incentivados pelas transformações técnicas, pela individualização da relação salarial e também, não sem significativas contradições, pelo brio profissional.

As histórias relatadas nestes Tempos Difíceis merecem a atenção de quem se interessa pela compreensão do Portugal contemporâneo. A sua leitura – em voz alta, de preferência – e o debate por esta suscitado perante uma audiência serão, certamente, os destinos que os autores perspetivaram como mais adequados para o seu trabalho. Como facilmente verificará o leitor atento, uma parte significativa destas histórias integra corpora mais vastos que se construíram no quadro de investigações científicas diversificadas sobre a realidade prática e simbólica das regiões menos favorecidas do espaço social nacional e sobre alguns dos desafios que se colocam à intervenção nesta. Nesse sentido, este pequeno livro pode também ser entendido como um convite a um exercício de leitura suplementar a construir nessas investigações.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BOURDIEU, P. (dir.) (1993), La Misère du monde: la souffrance qui parle, Paris, Seuil.         [ Links ]

TERKEL, L. “Studs” (1970), Hard Times: an Oral History of the Great Depression, Nova Iorque, Pantheon Books.         [ Links ]

TERKEL, L. “Studs” (1974), Working: People Talk About What They Do All Day and How They Feel About What They Do, Nova Iorque, Pantheon/Random House.         [ Links ]

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