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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.212 Lisboa set. 2014

 

FORUM

Ao longo das últimas décadas, a obra de Michel Foucault tem interpelado as ciências sociais e humanas de forma muito diversa. Por exemplo, vários conceitos de sua autoria têm convidado a uma renovação dos termos em que debatemos questões como as relações de poder. Entre estes conceitos, destaca-se o de gouvernamentalité, assistindo-se mesmo à consolidação de uma área designada como Governamentality Studies. Nos trinta anos da morte de Foucault, a Análise Social convida um conjunto de investigadores a partilharem connosco uma reflexão sobre o modo como aquele conceito interceta a sua própria agenda de pesquisa.

 

Michel Foucault, os poderes e o resíduo da história

 

Tiago Pires Marques*

*CES, Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo Largo D. Dinis, Apartado 3087 — 3000-995 Coimbra, Portugal. E-mail: tiagopmarques@gmail.com

 

Para muitos investigadores que se reivindicam de Foucault, a experiência humana é inteligível na perspetiva de uma história do poder, nomeadamente nas formas repertoriadas pelo filósofo-historiador francês: soberania, disciplina, poder pastoral, governamentalidade, biopolítica. Aqueles que se reclamam deste projeto analisam as práticas institucionais e as relações humanas como relações de poder e contra-poder (resistências; oposição do cuidado de si à tentativa do outro de governar). Trata-se aqui de uma utilização hermenêutica de Foucault, decidida de antemão pela investigadora ou investigador. Noutros casos, os seus conceitos são utilizados de forma exploratória: podem estes contribuir para a formulação de questões e, assim, para uma maior inteligibilidade dos objetos? Chamaria utilização heurística a este modo de mobilizar a obra de Foucault. Enfim, o famoso método genealógico, aplicável à construção dos saberes e das disciplinas científicas, tem dado ­resultados ­assinaláveis (por exemplo, os trabalhos de epistemologia histórica de Ian Hacking, ­Nikolas Rose ou Arnold Davidson). Seria desejável aplicá-lo ao discurso religioso e à teologia, levando mais longe a investigação seminal de Talal Asad (2010), agora que alguns autores do espaço dos Cultural Studies reivindicam o sagrado e a espiritualidade como categorias epistemológicas (ex. Jacqui ­Alexander e Ann ­Cvetkovich).

Os estudos da governamentalidade vieram consagrar a pertinência heurística do conceito: muitas das práticas que constituem o Estado moderno liberal tomam como ponto de aplicação, de facto, a população e os indivíduos enquanto entidades bio-psíquicas. Para além disso, parecem articular-se bem com práticas aparentemente distantes do poder político, tal como o governo da casa, a catequese, a consulta psicoterapêutica ou a pedagogia escolar. Contudo, a força da tópica foucaultiana terá resultado, por vezes, numa totalização hermenêutica homogeneizadora das mais variadas realidades sociais, como argumentou Marshall Sahlins em 1993 (“Waiting for Foucault, Still”, publicado em versão desenvolvida em 2002).

O compromisso epistemológico da história assenta, a meu ver, na dupla exigência de crítica das fontes e restituição dos contextos e experiências de sentido e da ação dos sujeitos, sendo por isso incompatível com planos de enfoque totalizantes, foucaultiano ou outros. Porém, a convicção de que a história só é interessante quando é história-problema, para utilizar o velho termo da Primeira Geração dos Annales, levou-me, se não a utilizar uma hermenêutica especificamente foucaultiana, a dialogar, de forma heurística, com a obra de Foucault. No meu primeiro estudo publicado (Marques, 2005), em torno da implantação do sistema penitenciário em Portugal no século XIX, o autor francês foi um interlocutor importante: uma das questões que então coloquei foi a da aplicabilidade da noção de disciplina aos processos históricos observados. Encontrei-a como categoria nos discursos dos políticos, jurídicos e técnicos envolvidos na institucionalização da nova forma penal. Porém, tornou-se evidente que a sua eficácia foi limitada, sobretudo em face da importância da prática repressiva do degredo colonizador, interno e externo. A lógica territorial, que Foucault atribuía à racionalidade própria do poder soberano (que na sua esquematização antecede historicamente o poder disciplinar), estava no centro, e não na periferia, do projeto político de modernização do Estado e da sociedade. Se é certo que, em teoria, havia a ideia de construir uma rede de instituições capazes de otimizar economicamente o governo da população, nomeadamente da população “delinquente”, era dominante a preocupação em garantir uma ocupação geográfica associada ao Estado. Por outro lado, descobrindo uma relativa diversidade de valores, argumentos religiosos e saberes mobilizados pelos reformadores, parecia-me que a questão histórica a colocar era não tanto a da sua lógica normativa comum, mas a das práticas necessárias à fabricação de um consenso político, jurídico e técnico. Em suma, tratava-se de olhar para as reformas penais, não como resultado ou agente de uma racionalidade, mas como processo histórico agenciado por atores em situações concretas, invocando, por vezes, diferentes referenciais normativos.

Na sua aula no Collège de France a 1 de fevereiro de 1978, na origem de um texto fundamental para compreender o conceito de governamentalidade, Foucault opunha a transcendência religiosa da soberania, como forma de poder, à lógica de imanência da “arte de governar”. Embora referisse a permanência de “bloqueios” à governamentalidade característica dos regimes liberais, estes surgiam-lhe como grãos de areia na engrenagem imparável de governamentalização do Estado e um “resíduo”, cito, numa sociedade que se organizava segundo o modelo da casa (a sociedade como “economia”). Ora, os resultados desta investigação levavam-me a olhar para o “resíduo” como elemento decisivo. Os fascismos, autodefinindo-se pela recusa da democracia, do liberalismo e do socialismo, e pela mobilização política legitimadora de uma transcendência, seriam, por hipótese, um bom observatório da força estruturante do “resíduo”.

Tomando por objecto e problema a vaga de reformas das ordens jurídico-penais europeias no período de entre as duas grandes guerras, centrei-me nos casos italiano, português e espanhol, esperando, na sua análise, contribuir para uma antropologia histórica do fascismo. Este estudo veio reforçar a ideia de que a lógica do poder soberano, colocando o indivíduo em relação com a entidade mítica Estado, não só não desaparecera, como desempenhou um papel importante na transformação do liberalismo, mesmo nas sociedades que não seguiram a via fascista. Contudo, tornava-se também claro que a codificação jurídica e a reforma das instituições estatais eram agora enquadradas por um conjunto de normas analisáveis sob o prisma da otimização económica das “forças sociais”. Num argumento essencial do meu livro Crime and the Fascist State (Marques, 2013a), a própria teologia política da transcendência, cara ao fascismo, foi incorporada num regime de governamentalidade. Ora, estes problemas colocavam-me em diálogo, já não exatamente com Foucault, mas com um dos seus cultores mais originais e estimulantes, o filósofo Giorgio Agamben.

Nos trabalhos de pós-doutoramento, entre 2008 e 2013, o meu centro de interesses deslocou-se das instituições estatais para a relação entre as narrativas religiosas da experiência e a formação de epistemologias críticas da religião em formações seculares. Tratou-se fundamentalmente de observar o problema histórico da secularização. Realizei vários estudos de caso (Marques, 2010, 2012, 2013b e 2013c) analisando ­articulações diversas entre o político e os saberes e práticas médicas e religiosas. Os meus interlocutores foram historiadores e antropólogos interessados nas práticas sociais da crença num mundo cuja modernidade se faz da interseção de mundos, citando Marc Augé e Michel de Certeau; investigadores dos processos de construção de imaginários político-religiosos, como Charles Taylor e ­Maurice Godelier; e sociólogos interessados nas consequências culturais e epistemológicas dos processos de individualização (na senda de Norbert Elias, Alain Ehrenberg e Pierre-Henri Castel). Apesar de focar a psiquiatria e a psicanálise, temas da predileção de Foucault, não encontrei nos seus trabalhos elementos particularmente úteis para a análise destes campos. Foucault deixou-nos, é certo, estudos importantes sobre a génese das práticas clínicas e das noções de “delírio” e “tratamento moral”, mas as suas análises sobre o poder psiquiátrico, opondo à ação normalizadora da psiquiatria a loucura, entendida como força vital emancipadora, são de pouca utilidade para compreender as políticas de saúde mental, as práticas psiquiátricas contemporâneas, o sofrimento da doença mental, ou fazer justiça ao trabalho dos prestadores de cuidados. No primeiro caso, o livro de Robert Castel, La Gestion des risques (2011 [1981]), que deve talvez mais a Bourdieu do que a Foucault, continua, creio, a ser a obra de referência. Para o restante conjunto de problemas, parece-me preferível procurar apoio nas etnografias de Anne Lovell, Tania Luhrmann, Livia Velpry ou Junko Kitanaka, e, no caso português, de Sílvia Portugal, Fátima Alves, Luís Quintais, Elsa Lechner ou Chiara Pussetti. Para me limitar a um exemplo claro, atente-se na análise de Kitanaka (2012), segundo a qual a medicalização de emoções de abatimento, tristeza e falta de esperança através da categoria de “depressão”, no Japão das últimas décadas, tem permitido a pacientes e psiquiatras lutar pelos direitos e dignidade dos trabalhadores num mundo empresarial tradicionalmente dominado pelos valores do sacrifício de si em nome do grupo, da honra e da vergonha, e por isso com elevadas taxas de suicídio.

A minha investigação atual1 desenvolve as possibilidades de compreensão histórica de narrativas experienciais, nomeadamente das que se manifestam sob a forma de emoções e experiências sensoriais partilhadas e referidas a contextos identificáveis. Objetivadas pelos discursos que as fixaram, incluindo os saberes científicos, a questão é abordável sob o prisma da construção do conhecimento epidemiológico e psicoterapêutico e da noção foucaultiana de subjetivação. A forte mobilização pública em torno do problema da saúde mental confere à noção de governamentalidade um potencial heurístico a ter a conta. Será necessário, contudo, saber articulá-la com a experiência enquanto forma de autoridade – fundamental para compreender, por exemplo, a durabilidade das práticas terapêuticas –, com o investimento afetivo e cognitivo dos sujeitos históricos em diversas poéticas do sentido, e com práticas de cuidado de si e do outro que, ainda que analisáveis no quadro de interações de poder, podem ter por efeito o empoderamento, e não a opressão, de sujeitos frágeis.

Trinta anos passados sobre a morte de Foucault, a denúncia de uma moda foucaultiana perdeu, felizmente, a sua razão de ser. Permanece a grandeza de uma obra onde continuo a encontrar análises virtuosas inspiradoras, questões pertinentes e pistas metodológicas. Torná-la instituição total de uma agenda de investigação teria sido traí-la naquilo que ela tem de mais libertador.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ASAD, T. (2010), Formations of the Secular, Religion and the Political Imagination, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

CASTEL, R. (2011 [1981]), La gestion des risques. De l’antipsychiatrie à l’après-psychanalyse, Paris, Minuit.         [ Links ]

FOUCAULT, M. (1994), “La ‘gouvernementalité’, cours au Collège de France, année 1977-1978: ‘Sécurité, territoire et population’, 4e leçon, 1er février, 1978’”. In Dits et écrits, III, 1976-1979, Paris, Gallimard, pp. 635-657.

KITANAKA, J. (2012), Depression in Japan. Psychiatric Cures for a Society in Distress, Princeton and Oxford, Oxford University Press.         [ Links ]

MARQUES, T.;P. (2005), Crime e Castigo no Liberalismo em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte.         [ Links ]

MARQUES, T.;P. (2010), “Mystique, politique et maladie mentale. Historicités croisées (France,
c. 1830 – c. 1900)”. Revue d’histoire des sciences humaines, 23, pp. 37- 74.

MARQUES, T.;P. (2012), “De corpo e alma na margem. Catolicismo, santidade e  medicina no norte de Portugal (c. 1900 – c. 1950)”. Topoi. Revista de História, 13, n.º 25, pp. 147-167. Disponível em: http://www.revistatopoi.org.         [ Links ]

MARQUES, T.;P. (2013a), Crime and the Fascist State, 1850-1940, Londres, Pickering & Chatto Publishers.         [ Links ]

MARQUES, T.;P. (2013b), “La foi psychiatrique. Catholicisme et médecines de l’âme au Portugal (c. 1926 – c. 1967)”. Archives des sciences sociales des religions, 163,  pp. 103-122.         [ Links ]

MARQUES, T.;P. (2013c), “Uma frágil camada de Razão. A clínica das paixões religiosas em França e Portugal (c. 1830 – c. 1910)”. In T.;P. Marques (coord.), Experiências à Deriva. Paixões Religiosas e Psiquiatria na Europa (séculos XV a XXI), Lisboa, Cavalo de Ferro, pp. 171-216.         [ Links ]

SAHLINS, M. (2002), Waiting For Foucault, Still, Chicago, Prickly Paradigm Press.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Projeto Investigador FCT 2013 (em curso): “The Fabric of Mental Health. Medical Power, Secularity, and the Psychotherapeutic Field in Portugal (1940s-2000s)”.

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