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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.212 Lisboa set. 2014

 

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Ao longo das últimas décadas, a obra de Michel Foucault tem interpelado as ciências sociais e humanas de forma muito diversa. Por exemplo, vários conceitos de sua autoria têm convidado a uma renovação dos termos em que debatemos questões como as relações de poder. Entre estes conceitos, destaca-se o de gouvernamentalité, assistindo-se mesmo à consolidação de uma área designada como Governamentality Studies. Nos trinta anos da morte de Foucault, a Análise Social convida um conjunto de investigadores a partilharem connosco uma reflexão sobre o modo como aquele conceito interceta a sua própria agenda de pesquisa.

 

Foucault em chave etnográfica: o governo dos guèto de Porto Príncipe

 

Federico Neiburg*

*Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Quinta da Boa Vista, São Cristovão — 20940040 Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: federico.neiburg@gmail.com

 

Em 2007, comecei a realizar trabalho de campo e a coordenar uma equipa de pesquisa nos guèto ou bairros populares (katié popilè) da grande Bel Air, no centro de Porto Príncipe, capital do Haiti.1 A região está imbricada no principal vértice do sistema de mercados (a área de Croix de Bossales) que conecta a capital, o interior e os grandes centros comerciais haitianos situados fora do território nacional como Miami, Panamá e Santo Domingo. Trata-se de uma zona particularmente densa na história política nacional e na conformação do dispositivo de governo instaurado no país, a partir de junho de 2004, com a intervenção da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). A região de Bel Air, situada a poucos passos do Palácio Nacional, foi uma das principais bases de apoio do ex-presidente Jean Bertrand Aristide e um dos centros da resistência armada ao golpe de Estado que o destituiu em fevereiro de 2004 (com apoio militar dos Estados Unidos, Canadá e França); foi também o primeiro cenário das ações da MINUSTAH, que estabeleceu o seu comando em Fort Nacional, na parte alta da região. Juntamente com Boston, na vizinha Cité Soleil, constituem as duas áreas que a ONU considera ainda hoje como “vermelhas” na zona metropolitana de Porto Príncipe, i.;e., de “alta periculosidade”, nas quais os funcionários civis das Nações Unidas (ligados, por exemplo, ao PNUD ou à UNICEF) estão proibidos de circular sem escolta militar. A região é também palco privilegiado do envolvimento brasileiro no Haiti: está sob jurisdição do batalhão brasileiro dos capacetes azuis, sendo, desde 2006, alvo preferencial de projetos da ONG brasileira Viva Rio.

Na grande Bel Air moram aproximadamente 130 mil pessoas, das quais 60% ganham menos de um dólar por dia e 80% estão fora do mercado formal de trabalho. Além das remessas enviadas por aqueles que estão no exterior, a sua principal fonte de renda está ligada aos projetos da cooperação internacional e à economia dos mercados e das ruas. Daí a importância das políticas do espaço na implantação de “projetos” e no controlo da circulação de mercadorias, pessoas e dinheiro. Daí também a centralidade, em termos de geografia política do guèto, das chamadas baz (bases)2: formas sociais segmentares que recobrem uma variedade de associações e pertencimentos, de comités locais mais ou menos formalizados (alguns com reconhecimento formal de instâncias do governo) até grupos armados, todos eles referidos a territórios: um bairro, uma zona, o setor de uma rua, uma esquina, uma casa. As baz são âmbitos de criação de lideranças e de coletivos. Elas aproximam e afastam, igualam e hierarquizam, criando afiliações e chefias. Trata-se de uma categoria polissémica que designa uma área de ação, uma “galera” que pode oferecer proteção, um prato de comida, aconchego e abrigo, bem como acesso a pequenos bicos nas ruas, nos mercados e nos projetos implementados por Agências Internacionais e por Organizações Não Governamentais (ONG) – projetos estes em geral voltados para a “estabilização”, para o “desenvolvimento” e para a resposta às “emergências”, como aquelas ocasionadas pelo devastador terremoto de janeiro de 2010 e pela epidemia de cólera que se seguiu.

Desde o início, ficou claro para nós que um dos resultados da pesquisa deveria ser uma crítica etnográfica às narrativas dominantes na literatura académica e nos documentos da cooperação internacional que tratam dos bairros populares haitianos – e de outros locais semelhantes, situados simultaneamente no centro e nas margens do sistema capitalista internacional e do sistema de Estados nacionais3 – de maneira normativa, sublinhando a suposta “ausência” do Estado, o império da “informalidade” e das “ilegalidades”. Mais ou menos explicitamente, estas perspetivas tratam os mercados das ruas, bem como aqueles dos projetos, como realizações do ideal dos mercados autorregulados, que estariam habitados por indivíduos maximizadores e por personalidades individuais e coletivas predadoras.4

A etnografia, o convívio prolongado com pessoas em Bel Air na intimidade de suas casas, nas ruas, nos mercados e nos projetos da cooperação estimulou a elaboração de quadros conceptuais e de questões empíricas radicalmente diferentes e críticas em relação àquelas narrativas. Como compreender, a partir do ponto de vista das pessoas de Bel Air, o entrelaçamento entre as dinâmicas da economia popular, a economia dos mercados e das ruas e o mercado da coope­ração internacional? Como compreender os mecanismos reais de controlo sobre os territórios e sobre os fluxos de pessoas, objetos e dinheiro? Como entender, considerando o ponto de vista das pessoas de Bel Air, e principalmente daquelas próximas às baz, as subjetividades criadas e que contribuem para a criação desse universo de mobilidades, de senso de oportunidade e de gestão de frustrações, cimentador de amizades e inimizades, proximidades e distâncias, hierarquias e solidariedades? Como dar inteligibilidade, para além da denúncia e do engajamento, do romantismo e do miserabilismo, a esse universo de motivações humanas, sempre ambivalentes e nuançadas?5

As formulações de Michel Foucault sobre governamentalidade — especialmente na linha de alguns autores que delas se apropriaram como instrumentos heurísticos e não para construir algo como uma “antropologia foucaultiana” — revelaram-se especialmente afinadas com o registro propriamente etnográfico no qual situamos as nossas questões teóricas e empíricas.6 Três pontos parecem-me particularmente relevantes neste sentido.

Em primeiro lugar, ao deslocar a questão do “Estado” para a questão do “governo”, a noção de governamentalidade transforma-se num instrumento que permite descrever positivamente arranjos ou configurações complexos de interdependências e de concorrências, de alianças e de relações de força entre a multiplicidade de agentes e de agências que participam do governo dos territórios e das populações: as baz (armadas ou não), as forças militares e de segurança (a própria MINUSTAH, a UNPOL, a Polícia Nacional, as empresas de segurança privadas), os órgãos do governo (sempre presentes, mesmo na sua suposta “ausência”), as agências internacionais e as ONG, entre outras. A etnografia das políticas de DDR (Desmobilização, Desarmamento e Reinserção), promovidas inicialmente pela ONU, em seguida encampadas por algum tempo pelo governo haitiano, e o acompanhamento de perto dos “acordos de paz” assinados a partir de 2007 entre lideranças da zona, permitiram observar tais arranjos em toda a sua complexidade, não para celebrar ou denunciar os seus efeitos pretendidos (embora fosse expressiva a diminuição das mortes violentas até ao terramoto de 2010), mas para mapear o universo das agências e dos agentes de “governo” que deveriam entrar no foco da nossa lente etnográfica.7

Em segundo lugar, a noção de governamentalidade permite evitar o falso dilema entre a denúncia e o engajamento, tão comum na literatura que trata destes assuntos.8 Foucault mostra-nos que o governo (as formas de “conduzir as condutas próprias e as condutas dos outros”) se deve fazer sempre em nome do “bem estar de todos”. Por isso, as denúncias (da dominação militar ou humanitária, por exemplo) constituem um obstáculo para a atitude etnográfica que procura compreender a multiplicidade de pontos de vista em jogo, considerando as justificações morais que os agentes individuais e coletivos conferem às suas ações. De que modo os valores cimentam as relações de interdependência e os diferenciais de poder em configurações ou arranjos específicos, dos quais fazem parte agências e agentes de natureza e escala diferentes? De que modo nesses universos tensos, muitas vezes atravessados por acusações (de aproveitamento ou de interesse),9 transcorrem as vidas humanas, se constroem afinidades e afetos?

Por fim, a noção de governamentalidade, como se sabe, ilumina os vínculos entre conhecimento e poder ou, melhor dizer, entre saberes e controlos. A questão seria então: como e quem produz conhecimento sobre os guèto de Bel Air? Que outras categorias sócioespaciais (como guèto, por exemplo) são utilizadas para designar esses territórios e populações, para encaminhar demandas ou para ser objeto de políticas?10 No Haiti, o conhecimento autorizado sobre a morfologia social do país e sobre os bairros populares não é de forma alguma monopólio dos órgãos de governo. Ao contrário, ele é produzido sobretudo no âmbito das agências de cooperação, em geral sob a forma de rapid assessments, utilizando as técnicas de grupos focais (que tendem a confirmar as questões previamente formuladas nos projetos).11 Entretanto, os conhecimentos dos experts, por sua vez, convivem, concorrem e dialogam com as formas de conhecimento ordinário, com as categorias com as quais a miríade de sujeitos e de agências que participam do controlo dos espaços e dos fluxos concebe os territórios e as fronteiras, e inclusive as unidades de medida e as escalas com as quais as pessoas e as chefias orientam as suas ações, imaginam e implementam as suas políticas.12

Em suma, o que nos interessa no conceito de governamentalidade não é o seu uso técnico, tãopouco a discussão conceptual, as avaliações críticas ou os contrastes com outros conceitos disponíveis que atingem ou pretendem atingir registros semelhantes. O que verdadeiramente nos interessa é a capacidade do conceito em suscitar questões como as sugeridas neste breve texto, a sua afinidade, digamos assim, com a pesquisa e com a experiência etnográfica.13

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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NOTAS

1 Sobre os usos do termo guèto nos bairros populares de Porto Príncipe, v. Braum (2014, cap. 3).

2 V. Neiburg, Nicaise e Braum (2011) e Braum (2014).

3 Complicated places é a sugestiva expressão utilizada por Geertz (2008) para descrever aqueles locais nos quais o sistema conceptual do Estado nacional parece não se aplicar.

4 Nenhuma dessas narrativas se restringe ao Haiti, é evidente. Mas, em relação ao país caribenho, consultar, por exemplo: Fass (1988) sobre a economia como drama de sobrevivência, Schuller (2012) sobre a denúncia do sistema da cooperação e Fatton (2002) sobre o Estado predador.

5 A expressão em crioulo jere fristrasyon é chave na gestão do auto-controlo e do controlo das pessoas no guèto. Ela descreve espíritos individuais e coletivos e serve, também, como ameaça de desordem (désod) quando do não atendimento de demandas.

6 Trata-se de uma tradição que pode ser situada a partir da publicação do artigo de Ferguson e Gupta (2002), de algumas coletâneas, como a editada por Inda (2005), das formulações de Mitchell (1999) e Rose e Miller (p. ex. 1992), num movimento que dá continuidade e dialoga com os primeiros usos etnográficos do conceito de governamentalidade na literatura que se ocupou dos “legados coloniais” (ver, p. ex.: Scott, 1995; Cohn, 1996; Pels, 1997; ou, mais recentemente, de l’Estoile, 2008).

7 O conceito de configuração é particularmente útil para a perspetiva aqui proposta (p. ex. Elias, 2006). De modo mais específico, é igualmente relevante o conceito de “regime de emergência”, como proposto por Fassin e Pandolfi (2010), em diálogo direto com Foucault.

8 Para uma revisão crítica, v. de L’Estoile, Neiburg e Sigaud (2005).

9 Sobre a dinâmica de suspeitas e acusações que envolve a economia da ajuda humanitária, no caso do Haiti, v. James (2010).

10 Para consideração dos conceitos “bairro” e “comunidade” na “topografia da violência” em Cité Soleil, numa perspetiva afim à aqui sugerida, v. Marcelin (no prelo).

11 Para uma etnografia da forma “projeto”, afinada com a perspetiva aqui apresentada, v. Mosse (2005).

12 A própria expressão “Grande Bel Air” é um exemplo do dinamismo que envolve a produção e a circulação de categorias socioespaciais. Nascida após 2006 para descrever uma região de intervenção da ONG Viva Rio (incluindo uma área que se estende até Cité Soleil, compreendendo o bairro chamado Bel Air), a expressão “grande Bel Air” passou a circular de forma natural na região, noutros âmbitos de interação e de ação política.

13 Discutir a dimensão coletiva e comparativa dessa agenda de pesquisas extrapola o escopo deste breve texto. No âmbito de nossa equipa, para além de Bel Air e do Haiti, é possível consultar o projeto “Formas de governo e práticas econômicas ordinárias” (http://ecogov.weebly.com).

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