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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.212 Lisboa set. 2014

 

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Ao longo das últimas décadas, a obra de Michel Foucault tem interpelado as ciências sociais e humanas de forma muito diversa. Por exemplo, vários conceitos de sua autoria têm convidado a uma renovação dos termos em que debatemos questões como as relações de poder. Entre estes conceitos, destaca-se o de gouvernamentalité, assistindo-se mesmo à consolidação de uma área designada como Governamentality Studies. Nos trinta anos da morte de Foucault, a Análise Social convida um conjunto de investigadores a partilharem connosco uma reflexão sobre o modo como aquele conceito interceta a sua própria agenda de pesquisa.

 

Governamentalidade, tecnologias do eu e a história da escola

 

Jorge Ramos do Ó*

*Instituto de Educação, Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade — 1649-013 Lisboa, Portugal. E-mail: jorge.o@ie.ul.pt

 

Para a constituição da minha agenda de investigação, tendente a fixar uma visão da relação educativa em que a velha noção de sistema e suas respetivas funções, como significando um articulado coerente de opiniões acerca do que deveriam ser a formação e os papéis do aluno, possa ser substituída pelos mecanismos próprios da experiência social – as práticas cognitivas, as hierarquias de escolha e as imagens de si, desenhadas pela instituição escolar para formatar a identidade pessoal do estudante e para serem por ele igualmente reinventadas –, foi determinante a leitura dos trabalhos teóricos, e também das análises empíricas, produzidos por Michel Foucault no contexto da redação e publicação dos três volumes da História da Sexualidade (Ó, 2001, 2003, 2011, 2013).

Foucault vai definindo aí um território de análise que permite cruzar permanentemente os domínios da ética com os da política. O termo governamentalidade e a expressão tecnologias do eu, remetendo um para o outro e esclarecendo-se mutuamente, são os que melhor definem a inflexão operada nos seus últimos projetos de investigação, visando compreender as bases sobre as quais as modernas práticas da subjetivação têm vindo a ser construídas na modernidade. O objetivo das duas tópicas é gerar toda uma aparelhagem conceptual que possa tornar explícita tanto uma análise micro, tomando o indivíduo no seu próprio universo, quanto uma visão macro do tecido social, revelando uma preocupação de governo da população no seu conjunto. Como se as dinâmicas da individualização e da totalização correspondessem a um e a um só processo – e nós devêssemos falar de identidade como um problema essencialmente relacional –, os textos de Foucault mobilizam-se para inventariar os mecanismos de poder desenvolvidos, a partir do século XVI e na Europa Ocidental, no sentido de administrar e supervisionar as condições de vida dos cidadãos, de todos e de cada um em particular. Os seus escritos finais procuram desvendar a emergência de todo um novo exercício do poder soberano ligado à razão de Estado. A governamentalidade corresponderia, assim, ao desencadear de toda uma arte caracterizada pela heterogeneidade de autoridades e agências, empregando igualmente uma desmesurada variedade de técnicas e formas de conhecimento científico destinadas a avaliar e a melhorar a riqueza, a saúde, a educação, os costumes e os hábitos da população. Este modelo bio-político terá conhecido uma enorme aceleração a partir do século XVIII. Com efeito, o Estado moderno foi-se afirmando através de formas de notação, coleção, representação, acumulação, quantificação, sistematização e transporte de informação, alimentando-se ainda do propósito de reinventar permanentemente novas modalidades de divisão do espaço e do tempo social. Estas operações de poder-saber terão configurado num dispositivo ágil para o governo da nação no seu conjunto e disponibilizaram igualmente critérios para o aperfeiçoamento ético.

Quando fala em tecnologias do eu, Foucault refere-se a todo este conjunto de técnicas performativas de poder que incitaram o sujeito a agir e a operar modificações sobre a sua alma e corpo, pensamento e conduta, vinculando-o a uma atividade de constante vigilância e adequação aos princípios morais em circulação na sua época. A subjetivação, tal como no-la apresenta o autor de Vigiar e Punir, envolve portanto exercícios de inibição do eu, ligados às dinâmicas políticas de governo e ao desenvolvimento de formas de conhecimento científico. A sociedade moderna ter-se-á por essa via transformado numa sociedade essencialmente disciplinar. É esta preocupação geral que, de facto, anima a investigação foucauldiana dos últimos anos: analisar a formação do homem moderno através dos mecanismos por intermédio dos quais cada um se deve passar a relacionar consigo mesmo e a desenvolver toda uma autêntica arte de existência destinada a reconhecer-se a si como um determinado tipo de sujeito. E um sujeito cuja verdade pode e deve ser conhecida. A ética torna-se unicamente inteligível como um domínio da prática.

Persuado-me de que este posicionamento intelectual traz agregado um conjunto de ferramentas que permitem compreender as racionalidades, as ­técnicas e as práticas que historicamente envolvem o cálculo e a formatação das capacidades humanas. O modelo de aluno autónomo que a escola tem vindo de há muito a promover, e sob tradições político-culturais as mais diversas, entronca por inteiro nesta tecnologia de governo. A virtualidade explicativa dos fenómenos sociais proposta por Foucault entusiasma-me bastante. É como se a tarefa do historiador fosse a de instaurar uma espécie de varanda sobre o mundo. E o que desse plano distanciado alcançará só pode corresponder ao que os instrumentos teóricos que ele próprio maneja lhe permitem descortinar. Como nota Paul Veyne (1989, p. 23), “a totalidade do curso da história é constituída por subsistemas cujas ligações são contingentes”; “cada conceito que construímos aperfeiçoa e enriquece a nossa perceção do mundo: sem conceitos não se vê nada”. A nossa disciplina histórica não existe, de facto, para além da capacidade que o investigador tem de criar o espaço social e de nele promover a aparição de relações sociais multímodas. A sua perspetiva do passado, porque construída sob toda uma utensilagem conceptual, será sempre uma configuração particular. Uma e só uma interpretação. Nada mais. Por isso nem muito remotamente poderei ter a ousadia de responder à questão clássica de esclarecer o que aconteceu e porquê. Em vez disso, os meus trabalhos em torno da história da escola procuram dar conta do que autoridades de vários tipos e géneros tentaram que acontecesse, que problemas de governo definiram, que objetivos e estratégias perseguiram na socialização das sucessivas gerações de alunos que frequentaram as escolas públicas portuguesas desde o século XVI e até meados dos anos 50 da última centúria. Procuro analisar o modo como alguns esquemas, programas, técnicas e dispositivos foram inventados, operacionalizados, transformados, contestados em direção à formação da identidade e da conduta do aluno.

Em lugar de uma grande teoria sobre o poder e a escola – que reivindique um conhecimento das essências –, intento procuro problematizar, sequenciando-a, a forma como as crianças e jovens se viram eles mesmos constituídos historicamente também como um problema. É que, a meu ver, todas as tentativas de governo foram também elas limitadas pelos próprios conceitos e instrumentos que, em cada época, se encontravam disponíveis para a regulação da conduta, embora pudessem ser sempre usados de forma inovadora e inspirar a criação de técnicas de regulação mais eficazes. Tento agregar linhas de pensamento, a invenção, a concretização e o destino – os atos e os contra-atos – de programas e dispositivos de governo. O que admito possa ser o valor da minha investigação sobre as instituições educativas relaciona-se, assim, com a delimitação de um território intersetado sempre por novos vocabulários ético-científicos, em que o aluno e a sua subjetividade foram concebidos como recursos políticos e realidades governáveis. As tecnologias utilizadas pela escola não foram inventadas ab initio; são híbridas, heterogéneas, constituindo um autêntico complexo de relações entre pessoas, coisas e forças.

Não gostaria nada que o meu expresso entusiasmo por Foucault fosse entendido como reverência, culto do autor ou selo de uma aliança dogmática. O que entendo é que a perspetiva da governamentalidade nos envia para um nível de compreensão que rejeita muitas das antinomias (realidade/representação, real/ficção, interior/exterior, forma/conteúdo, micro/macro, coletivo/individual, sujeito/objeto, espírito/corpo, objetivo/subjetivo, liberdade/autoridade, soberania/autonomia, direita/esquerda, religioso/laico, natural/social, essência/aparência, substância/emergência, reprodução/mudança, etc.) que o pensamento social clássico utilizou para explicar o mundo das relações humanas porque, essencialmente, tenta estabelecer os circuitos por onde passam regras de poder e verdade sobre os sujeitos e as suas ações. O princípio da inteligibilidade dicotómica é, em Michel Foucault, superado por modalidades de pensamento que privilegiam formas combinatórias de objetivação e cristalização da realidade. Ora, este conhecimento não clivado, está no centro do debate. Estou certo de que as ferramentas teórico-metodológicas, inicialmente propostas pelo autor de As Palavras e as Coisas, contribuíram em muito para aprofundar o movimento de renovação empreendido no interior das ciências sociais nas últimas duas décadas de Novecentos e cujos efeitos ainda cativam muitos de nós. Tenho em mente a corrente assunção da tese da codeterminação do todo e das partes, bem como as posições que reivindicam a historicidade dos fenómenos, mesmo quando se trata da análise do presente. Eis o essencial: que o estudo das estruturas sociais englobantes possa aparecer e florescer totalmente entrecruzado com a apreensão das interações face a face dos atores nos palcos do tempo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Ó, J.R. do (2001), O Governo dos Escolares: Uma Aproximação Teórica às Perspectivas de Michel Foucault, Lisboa, Educa/Prestige.         [ Links ]

Ó, J.R. do (2003), O Governo de Si Mesmo: Modernidade Pedagógica e Encenações Disciplinares do Aluno Liceal (Último Quartel do Século XIX – Meados do século XX), Lisboa, Educa.         [ Links ]

Ó, J.R. do (2011), “Tecnologias de subjectivação no processo histórico de transformação da criança em aluno a partir de finais do século XIX”. In G. Castelo-Branco e A. V. Neto (orgs.), Foucault: Filosofia e Política, Belo Horizonte, Autêntica Editora, pp. 175-194.         [ Links ]

Ó, J. R. do (2013), “The Portuguese State and modern education: High School management and student subjectification in the 1930s and 1940s”. In L. Trindade, (ed.), The Making of Modern Portugal, Newcastle upon Tyne, Cambridge Scholars Publishing, pp. 201-224.         [ Links ]

VEYNE, P. (1989 [1978]), Comment on écrit l’histoire, Paris, Points.         [ Links ]

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