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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.211 Lisboa jun. 2014

 

FÓRUM - COMENTÁRIO

Bem Comum. Público e/ou Privado?

Guilherme de Olveira Martins*

*Centro Nacional de Cultura, Rua António Maria Cardoso, 68 — 1249-101 Lisboa, Portugal. E-mail: gom@cnc.pt

 

A obra Bem Comum. Público e/ou Privado (ICS, 2013), reúne um conjunto de textos e reflexões de rara atualidade, organizados com extremo rigor por João Pato, Luísa Schmidt e Maria Eduarda Gonçalves. É que os tempos de crise que vivemos obrigam a pensar, mais do que apenas o futuro Estado Social, a função social do serviço público que está confiado à sociedade em que vivemos. A primeira questão só será respondida com atenção à segunda. É, afinal, o “cuidar do futuro” e dos outros que está em causa, como afirmou Maria de Lourdes Pintasilgo. Nesse sentido, esta obra põe o tema no devido lugar, para além do imediatismo e das soluções conjunturais. Como os organizadores e autores da obra deixam claro, estamos perante cinco desafios que têm de ser seriamente respondidos: a transformação dos sistemas políticos, de um modelo rigidamente hierárquico para uma governação multipolar, de intervenção simultânea; a importância da incerteza radical, como variável determinante na definição, concretização e avaliação das políticas públicas, numa lógica de partilha de responsabilidades; o aumento da complexidade decorrente do aumento da diversidade de agentes, valores, interesses e contextos; a independência entre agentes e recursos, abrindo caminhos a novas possibilidades de políticas colaborativas e de troca; e a importância da identidade e da confiança no quadro das relações interinstitucionais e interpessoais. Assim se compreende a articulação permanente entre a legitimidade da origem (o voto) e a legitimidade do exercício (a prestação de contas), de maneira a que a lógica constitucional se afirme plena e permanentemente nas relações de cidadania. A obra divide-se em três partes: bem comum, bens públicos, bens privados; entre o público e o privado: desafios regulatórios; e público e privado: conflito e cooperação. A propósito dos temas fundamentais, encontramos uma análise de problemas específicos, como a água, os bens ambientais, o clima, o condomínio da terra, a informação, a propriedade intelectual ou o genoma, a par de reflexões necessárias sobre a propriedade e o território, o urbanismo, a democracia, e naturalmente as responsabilidades públicas e privadas. Facilmente compreendemos que o Estado moderno deixou de ser o alfa e o ómega da vida política – é muito mais um mediador, a partir da noção cada vez mais relevante de subsidiariedade. Deste modo, a noção de serviço público ultrapassa a distinção entre público e privado, entre estatal e particular.

Como despertar para o bem comum? – pergunta-nos Maria da Glória Garcia. Importa dar atenção aos direitos e deveres de cidadania e à responsabilidade social perante um Estado de direito centrado nos interesses e valores comuns e na dignidade da pessoa humana. João Ferreira de Almeida suscita a exigência de atenção aos valores sociais, à qualidade de vida, ao Estado e ao mercado com dimensão social e comunitária – o que obriga a pôr a tónica da equidade inter e intrageracional, como fator de melhoria das escolhas públicas. Para João Pato, o Estado e a positivação da ordem jurídica obrigam a centrarmo-nos na relação entre a sociedade e o indivíduo, articulando valores-fins (singularidade e personalidade) e valores-meios (o Estado e a cidade) e compreendendo domínio público e bens públicos. A economia tem, assim, de ser chamada ao entendimento da essência do bem público – com apelo à noção de bem-estar social e ao contratualismo de John Rawls, ligando a eficiência à provisão de bens públicos e à correção das desigualdades, uma vez que a eficiência e a coesão (como bem assinala Paulo Trigo Pereira) obrigam à conciliação entre a decisão cívica e o mercado. Já José Castro Caldas propõe uma revisão crítica dos pressupostos da teoria económica – complementando ordem social, escolha política e ação coletiva –, em nome do que designa por “democracia deliberativa”, em lugar da “democracia representativa”, segundo uma definição de economia de bens comuns.

Seguindo a distinção do filósofo Fernando Gil entre fundamento e fundação – fundamento axiológico e fundação histórica –, Renato Lessa propõe, como modo crítico radical de compreender e assumir o “bem comum”, a necessidade de equacionar a noção de “mal comum”, cujo paradigma seria o holocausto. Assim, visto às avessas, poderíamos entender o “bem comum” como orientado para a emancipação humana. Por seu lado, em torno dos desafios regulatórios, João Bau aborda a chamada crise da água – centrando-se no valor social e no direito à água. Por contraponto à mera mercantilização, o autor fala-nos de água-vida, água-cidadania e água negócio (legítimo e ilegítimo) – preocupado com a salvaguarda do bem ou serviço público. João Pato e Pedro Serra desenvolvem, por seu turno, o tema do direito ao interesse público a partir da classificação pública das águas. Carla Amado Gomes refere-nos os bens ambientais como bens coletivos, reencontrando a distinção do direito romano, que falava de bens públicos, comuns e privados, chegando ao moderno conceito de abuso de direito – numa tensão evidente entre o interesse comum e os direitos individuais. Pedro Barata refere o clima como bem comum: envolvendo a definição e a gestão – e abrangendo as noções de cidadania global, de justiça e transparência à escala internacional e nacional. E assim chegamos, com Paulo Ferreira de Magalhães, ao problema crucial do “condomínio da terra”, sem o qual o “bem comum” não se entende. E, com originalidade e pertinência, temos a adaptação à escala global de um modelo de organização planetário a partir de soluções já testadas no instituto privado do condomínio. Como superar então a “falha do mercado”? Como salvaguardar o património natural da humanidade? Como pagar os ecossistemas destruídos?

Maria Eduarda Gonçalves põe o dedo na ferida a propósito dos temas da informação na era digital. Estamos perante um bem público e/ou privado? Deparamo-nos, afinal, com os riscos inerentes à privatização da informação e de todas as suas consequências, devendo haver um equilíbrio entre o valor social e económico da informação e o reforço da sua proteção privatística. Importa, no fundo, reconhecer um direito fundamental à informação como direito social, que permita garantir o acesso na medida em que este se mostre indispensável à promoção da criação de conhecimento, de educação, de cultura e do exercício das liberdades públicas. E o tema complexo e sensível da propriedade intelectual, coordenado com o problema da propriedade industrial e das marcas e patentes? Manuel Mira Godinho põe-no, oportunamente, na ordem do dia, enquanto Paula Lobato de Faria, João Valente Cordeiro e João Lavinha referem o tema sumamente controverso de saber se o genoma é um bem público ou privado, do mesmo modo que surge a reflexão sobre a distinção entre pessoa e coisa… Importa, porém, garantir o genoma como bem público, recusando-se o seu patenteamento, a fim de poder servir de base ao desenvolvimento de novas técnicas de análise genética e de novos fármacos, mas também com salvaguarda da sua natureza privada, para prevenir a potencial estigmatização e discriminação social das pessoas. E fica, no entanto, a dúvida sobre se perante a natureza pública ou privada nos encontramos diante de um exemplo de conflito, ou em face de um caso de cooperação.

José Miguel Júdice, com a versatilidade intelectual que lhe conhecemos, critica a dualidade estrita entre bens públicos e interesse privado, uma vez que estamos diante de um critério que tem instrumentalizado os poderes públicos em favor de interesses puramente privados e egoístas. João Miranda fala-nos ainda da prestação de serviços por entidades privadas à administração pública, o que obriga a distinguir o interesse privado e a prossecução de interesse público, enquanto Francisco La Fuente Sanchez refere os valores de responsabilidade social, considerando entidades privadas que podem assumir a lógica do bem comum. José Tavares centra-se na relação entre bem público e democracia, verificando que a participação na vida pública é o caminho não só para reforçar os valores da democracia, mas também para encontrar a legítima determinação do que seja bem comum.

Os temas diversos revestem não só atualidade, mas enorme pertinência, por não serem analisados na perspetiva tradicional, mas numa lógica inovadora e para além dos lugares comuns. Por exemplo, é atualíssima a referência de Luísa Schmidt ao litoral português, precocemente consagrado na lei como domínio público, mas nunca verdadeiramente integrado como bem comum pelas dinâmicas de utilização por parte das populações – tornando-se indispensável considerar a faixa litoral como verdadeiro bem comum assumido seriamente. Afinal, o bem comum obriga a não nos limitarmos a definições formais. Eis-nos perante a tensão natural que está na pergunta do título: o bem comum corresponde a que lógica – pública ou privada? E será o público estatal ou tenderá a ser social e a responsabilizar a cidadania? Ao longo dos diferentes textos há um forte apelo responsabilizador. É a inovação cívica que perpassa transversalmente.

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