SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número211Líderes políticos e comportamento eleitoral: rumo a uma personalização da política?Bem Comum: Público e/ou Privado? índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.211 Lisboa jun. 2014

 

FÓRUM - COMENTÁRIO

Um caleidoscópio crítico sobre a sociedade atual: Bem Comum. Público e/ou Privado?

Isabel Allegro de Magalhães*

*FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Av. Berna, 26 C — 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: isamag000@gmail.com

 

Vinda da área das literaturas, literatura mundial e comparada, sou de algum modo uma intrusa a comentar o recente conjunto de ensaios reunidos por João Pato, Luísa Schmidt, Maria Eduarda Gonçalves (ICS, 2013), no livro Bem Comum. Público e/ou Privado? Digo “intrusa” no sentido de fora do campo académico em que estes trabalhos se situam. Contudo, creio que só em parte poderei estar de fora de um estudo sobre bem comum e o comum viver: por um lado, pelo exercício ativo de cidadania que me move e co-move; e, por outro, pelo facto de a literatura como todas as artes (meu campo académico), serem, com as suas linguagens simbólicas, criadoras de mundos possíveis, na expressão de Leibniz, e assim intimamente ligadas ao viver e com-viver no Planeta, mesmo quando por via negativa. Disso falava já Goethe, com o seu conceito de uma literatura mundial: a Weltliteratur.

Ora neste tempo de temor e tremor (Carta de São Paulo aos Filipenses, 2, 12; Kierkegaard), terrível e inesperado na Europa, tempo de verdadeiro retrocesso civilizacional e cultural, torna-se ainda mais necessário e urgente o “pensar o comum” (Lessa, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 130), separadamente e em conjunto, para isso convocando as diferentes áreas do saber de modo a tornar possível e eficaz esse bem comum e uma qualidade de vida para todos.

Logo à partida, tanto as pessoas que lançaram esta iniciativa como o leque dos ensaístas que nela cooperaram, com a sua reconhecida competência e uma chamativa vontade, explícita ou implícita, de trabalhar “por mor” desse bem comum, criam uma expectativa de qualidade e de utilidade social, cultural e política que esta obra, sem dúvida, cumpre.

Trata-se de um conjunto de quinze ensaios longos e cinco breves, de autores ligados a cerca de dez áreas disciplinares, das ciências sociais e não só. Até por isso as abordagens e metodologias usadas nas reflexões sobre a matéria são diversas: históricas ou conceptuais, sociológicas ou políticas, experienciais e empíricas ou mais analíticas e especulativas.

Três são os eixos-matriz à volta dos quais os textos circulam: bem comum, do privado e do público, em conflito ou em cooperação; regulado ou desregulado nas respetivas fronteiras; dando força ou retirando-a ao valor ético de um destino universal dos bens da Terra. Esses eixos constituem as três partes do livro:

 

1) Bem comum: bens públicos, bens privados: com seis ensaios mais teóricos e reflexivos, mesmo se sempre apoiados na realidade empírica.

2) Entre o público e o privado: desafios regulatórios, com nove textos de cariz mais pragmático (de João Bau, Carla Amado Gomes, João Pato, Pedro Serra): sobre bens e serviços públicos como a água, bens ambientais (coletivos por natureza), apontando a vertentes essenciais em termos do bem comum (propriedade, função coletiva, uso, gestão, direitos; reparação de danos, etc. (p. 159; p. 189; p. 202); o clima enquanto bem comum (Pedro Barata, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 207); a desafiante ideia da Terra, património natural da Humanidade, como um condomínio (Paulo Ferreira de Magalhães, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 229).

3) Público e privado: conflito e cooperação, binómio analisado relativamente à propriedade e território (por Miguel Júdice), na tarefa urbanística (João Miranda); na democracia articulada com a comunidade, a tolerância, etc. (José Tavares) ou no litoral, com a erosão, modos de ocupação e outras preocupações (Luísa Schmidt).

 

Dado o carácter mais abrangente desta primeira parte será sobre ela que mais diretamente incidirá este comentário.

Diferentes mas convergentes, as vinte e uma vozes que aqui falam fazem uma análise crítica do que e está na sociedade e no mundo atual, desenhando possibilidades de um bem comum a haver: para a Humanidade e para cada ser humano. Aqui sou tentada a acrescentar algo que o livro não equaciona: a integração nesse bem comum de outros seres, não-humanos, que connosco partilham a Terra (teoricamente, apoio-me no pensamento do especismo e na investigação neurobiológica em curso quanto a animais não-humanos).

Sem dúvida que a derrocada em todos os planos da vida em sociedade (do financeiro ao económico, do institucional ao organizacional, do social e jurídico, ao da saúde, do ambiente, da cultura) exige repensar tudo, sobretudo o humano no seu ser e agir na Terra. As sociedades europeias, as ocidentais e todas as outras, afinal, são chamadas a refletir a partir de dentro sobre o que entendem por bem comum, coisa central para que não deixemos de ser humanos.

O perigo existe, ao vivermos a atual e muito rápida (des)aprendizagem de virtudes e valores, visível em geral e nas elites políticas e financeiras que nos governam, perdida que está a ideia do humano como de um eu-com-outros-no-mundo (Merleau-Ponty). Daí o aumento de razões egoístas, autocentradas, a direcionarem a política.

A oportunidade deste livro prende-se com essa falta de uma gestão dos bens públicos que beneficie todos, substituída pela vontade de poder de uns quantos (shakespearianos!) happy few, cuja vida e ação ampliam o fosso das desigualdades, a rasura dos direitos fundamentais, o esgotamento das chamadas “universalidades” (Pato, in Pato, Schmidt e Gonçalves, p. 81). Mesmo sem ter sido ouvido por quem devia, Paulo VI, na Populorum progressio, falava já em 1967 sobre o “destino universal dos bens”…

Num substancial texto de “Introdução”, escrito a seis mãos (as dos três organizadores da iniciativa ao computador), cada ensaio é apresentado por um seu resumo, já de si aliciante.

Trata-se então de uma antologia de textos que pensam sobre o bem comum, a dimensão pública e a privada, apontando causas e brechas, bem como possíveis auctores e atores futuros. Pela conexão sistémica entre tudo, o livro aciona um pensamento não só em rede, mas, como sugeriu Guilherme de Oliveira Martins, multipolar, potenciando assim mais inter- e trans-disciplinaridade na visão e solução dos problemas.

Sem eliminarem a complexidade envolvida, estes ensaios abordam a ligação do bem comum com o domínio público, bens públicos, bens comuns (Caldas, in Pato, Schmidt e Gonçalves, p. 109), apontando à necessidade de definir o valor primeiro que deslegitimará todas as decisões tomadas em proveito próprio e danosas para outros.

É impossível, em poucas palavras, dar conta da riqueza e densidade de cada um dos estudos. Acentuo apenas alguns dos pontos – pedindo desde já desculpa aos autores e autoras cujo trabalho fique, e injustamente, menos exposto.

Na primeira parte, aberta por Maria da Glória Garcia, surgem alguns dos ingredientes da história da noção de bem comum, definida sobretudo como “ação intencional na polis” (Garcia, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 47). Recorrendo a fundamentos da cultura e do pensamento europeus, raízes gregas e cristãs (Renato Lessa fá-lo-á também, mas de outro modo), Maria da Glória evoca Platão e Aristóteles, com a ideia de uma sociedade justa (no primeiro) e de uma “vida boa”, de pessoas felizes e virtuosas (no segundo), ambos articulando bem comum ou “vida boa” com a justiça (em Platão), a virtude e a felicidade (em Aristóteles). Aliás, na Ética a Nicómaco (Aristóteles, 2012), o marido de Pitias, isto é, Aristóteles, afirma sem rodeios a elevação daquilo que constitui o bem comum, partilhado por todos:

 

[…] mesmo quando se pensa que o bem do indivíduo e o da Cidade são o mesmo, impõe-se-nos como algo maior e mais completo acolher e preservar o bem da Cidade: porque se o bem já é, sem dúvida, desejável quando se trata de o procurarmos só que seja para um único indivíduo, ainda mais belo e divino é quando se tem em vista um povo ou uma Cidade! [Aristóteles, 1094b, pp. 7-10].

 

A referência à raiz cristã chega aqui por S. Tomás de Aquino, na sua Summa, onde com veemência é afirmada quer a noção de “dignidade da pessoa humana” (claramente introduzida na cultura europeia por mão do cristianismo), tornada depois noção-chave em qualquer Estado de Direito; quer ainda a necessidade de um direcionamento no agir humano, em ordem à sua finalidade última. Ambas as noções – nota a autora – recebem particular atenção do Concílio Vaticano II, sobretudo na Constituição Conciliar Gaudium et Spes, publicada em 1965. Isso acontece, aliás, porque apesar de a História o ter ido esquecendo, nisso reside o cerne da mensagem de Jesus Cristo.

A este conjunto de referências, acrescento uma outra, esta legada pelo judaísmo e acolhida quer pelo cristianismo, quer pelo islão: a extraordinária afirmação-interrogação sobre o fulcro da natureza e do sentido do humano, na sua responsabilidade inalienável pelo outro e pelo bem comum. É nestes termos que o Talmude da Babilónia a expressa:

 

Se não respondo por mim, quem responderá por mim?

Mas se só respondo por mim: serei ainda eu?

 

De entre as diferentes, mas condizentes, aproximações à noção de bem comum, cito três que me parecem aqui centrais: a de João Ferreira de Almeida, que afirma a necessidade de esse bem ser “aferido pelo acesso e uso pelos cidadãos de capacidades efetivas de escolha” (Almeida, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 68); a de Paulo Trigo Pereira, que vê o bem-estar-social como equivalente a bem comum enquanto “eficiência na provisão de bens públicos” (Pereira, in Pato, Schmidt e Gonçalves, p. 87); a de João Pato, que acentua o quanto o Estado deveria ser o garante do direito e da justiça, da gestão das “coisas públicas” que são comuns a todos: mar, ar, etc. (Pato, in Pato, Schmidt e Gonçalves, pp. 69-71). Também outras vozes conferem à sociedade civil organizada essa capacidade de garante da bondade das decisões.

Em qualquer caso, unânime em quase todos os textos é a falta de uma direção, de um norte: situação que nos coloca hoje perante o que Fernando Pessoa no seu tempo assim anotava:

 

Ninguém sabe que coisa quer.

Ninguém conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem. [Pessoa, 1993, p. 86]

 

Um ou outro texto entra na questão do bem comum pela negativa, falando de mal público e de mal absoluto, crendo que desse modo se acede melhor à noção de bem comum. É o caso de Renato Lessa que, apoiado em conceitos de Fernando Gil, lembra como a filosofia política vive um “desacordo indecidível” ou uma diaphonia em relação a tal noção. Lessa pensa que, no caso da Shoah, esse mal absoluto deveria ter feito cair por terra toda a dissensão quanto a bem comum, fazendo dele um indiscutível imperativo categórico (Lessa, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, pp. 130-131 e 145). Por sua vez, Paulo Trigo Pereira (Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 91) serve-se da noção de mal público, indicativa do mal geral causado pelas chamadas “externalidades negativas”, de ação individual ou pública, isto é, o problema dos efeitos externos de determinadas produções e comportamentos.

Sem dúvida, as decisões, globais como locais, quanto a “bem[s] público[s]” (Pato, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 73), a “domínio público” e a “bem comum” (idem, p. 74), estão hoje sujeitas a orientações sem respeitável autoridade moral ou ética, dada a subjetividade tantas vezes acrítica, interesseira, egoísta e não-responsável, de legisladores e de outros agentes políticos.

As recentes descobertas das tecnociências colocam-nos perante novas perplexidades axiológicas, e não é fácil encontrar um “critério” moral insuspeito. Quem poderá responder com autoridade inquestionável, por exemplo, sobre a legitimidade ou a falta dela no caso da manipulação do genoma humano? Ou como reagir à definição da sua natureza: será o genoma humano pessoa? Coisa? Bem público? Ou como identificar o seu estatuto: privado? Público? Questões difíceis como estas têm aqui ponderação, nos textos de Paula Lobato Faria, João Valente Cordeiro, João Lavinha.

No que diz respeito à investigação nas diferentes ciências e tecnologias, quando ela tem efeitos de mal comum, falta pois quem com justeza possa proferir um dictum respeitado: um veredictum. Exemplo disso é a invenção de drones, que apresenta questões diversas: é possível que tais instrumentos, potentes e tele-comandados, venham a ser eficaz e talvez produtivamente usados por empresas (a Amazon prevê essa possibilidade), como uma extensão para transportarem, em diferentes países, próximos ou distantes, os seus produtos ao domicílio; no entanto, a sua invenção destinava-os antes de mais a funcionarem como seguras armas de guerra, aptas a fazerem explodir quaisquer alvos, cidades inteiras ou pessoas individuais, a partir de lugares longínquos da Terra, deixando ilesos, ao computador, “em casa”, os detonadores das explosões. Neste contexto há perguntas que exigem resposta: será que a investigação deveria ter sido parada antes de a possibilidade ter sido criada? – para que não se repita o que há muitas décadas se passou, aquando da primeira experiência atómica em ato, na consciência de Oppenheimer, inventor da energia atómica: tremeu e sentiu-se culpabilizado perante os eventuais usos futuros dela1.

Ou será que a alternativa teria sido a de previamente terem sido definidas instâncias com suficiente autoridade moral para regularem a aplicação do que as tecnociências possibilitam?

Têm aqui particular pertinência e significado vários outros pontos, de entre os quais acentuo alguns.

O papel do Estado e a participação política, ingredientes declinados em modalidades diversas por vários dos autores. A orientação jurídica sempre foi a de que deveria ser o Estado a atuar para “prosseguir o interesse público”, “seu único fim” (Pato, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 79), dado que o Estado é pessoa coletiva “desinteressada” – o que hoje pode considerar-se uma afirmação vazia, não-performativa, dado o “[e]svaziamento da dimensão intencional ou política da vida em sociedade”. É que demasiados são os casos de gestão interesseira e danosa (estatal, privada, em “clubes”), sem qualquer garantia de utilidade pública ou de um benefício para todos (Pato, in Pato, Schmidt e Gonçalves, p. 79).

Com ironia e graça, e alguma razão, José Miguel Júdice diz que a convicção de o bem comum dever estar no espaço público pode constituir impedimento à comprovação dos casos em que os detentores do poder público prejudicam o bem comum (Júdice, in Pato, Schmidt e Gonçalves, p. 312). É uma afirmação verdadeira, mas também perigosa, embora com o mérito de apelar à criação de formas ajustadas de autêntica accountability, seja da parte de quem for. De certo modo, João Pato (Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 78) contrabalança essa declaração com o que afirma sobre o “interesse público desenvolvido por entidades não necessariamente públicas”, mostrando também como uma visão consistente de “bem comum” e do interesse público pode ser rasurada pela falta de ética que permite o serviço de interesses meramente individuais.

Ao discutir a função do Estado, e como achega a esta dificuldade, José Castro Caldas atribui importância maior, em casos de conflito de valores, ao querer da comunidade. Na sua estimulante e pertinente reflexão, a comunidade deve erguer-se na sua capacidade de “conceber um interesse pelo plural” (e não movida apenas por interesses próprios), de modo a poder agilizar “uma ação coletiva civilizadora” (Caldas, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 119). Com isso questiona a democracia representativa, alterando as atuais formas de decisão coletiva. Propõe “processos dialógicos que envolvem a definição do que ‘queremos’ e do que ‘podemos’ fazer para consegui-lo”; diz que “os processos de deliberação podem conduzir à emergência de visões partilhadas do bem comum e à escolha de cursos de ações julgados apropriados” (Caldas, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 119). Também de Pedro Barata ouvimos a urgência em “criar instituições mais adaptadas a um mundo em que a resolução de um problema global não se faz apenas pelo diktat das instituições internacionais (e seus financiadores), mas pela confluência de múltiplas ações a diversas escalas”, fazendo entrar “iniciativas locais na discussão e na negociação internacional” (Barata, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 219). Isto leva a atribuir a capacidade de monitorizar decisões e de fazer escrutínios válidos, não exclusivamente às mãos fracas (e não impecavelmente limpas) da Assembleia da República (como parece sugerir Trigo Pereira, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 106), sobretudo na situação da nossa pseudo-democracia, mas a toda a sociedade civil organizada.

Tudo isto faz encarar novas “constelações de agentes interventivos na polis”, do local ao global. A sociedade civil terá então de fazer surgir novos agentes políticos que desencadeiem alternativas de inovação social, agindo de forma a suprir falhas dos governos e dos mercados, tomando palavra nas decisões que a todos dizem respeito.

Essas práticas de inovação social chegam a ser vistas como forma de sairmos do sistema financeiro liberal e como resposta à “falência desses sistemas financeiros e do capitalismo neo-liberal”.

A congregação de cidadanias ativas tornar-se-á então um vórtice de caminhos para o bem comum, substituindo assim o individualismo das motivações por uma “gestão dos bens de todos”. Tal exercício é alargado por Pedro Barata ao de “cidadania internacional” em prol das comunidades claramente mais desfavorecidas [isto é: dos mais pobres]” (Barata, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 35). Também Paulo Trigo Pereira atribui a definição de bens públicos e a decisão quanto ao que se produz e se financia à sociedade no seu conjunto. Tal como João Ferreira de Almeida, sugere que a regulação do que é comum seja operacionalizada pela sociedade civil (Almeida, in Pato, Schmidt e Gonçalves, p. 57).

A meu ver, seria importante poder cruzar estas aproximações à noção de bem comum com as de qualidade de vida introduzidas em 1993 por Maria de Lourdes Pintasilgo, no “Relatório da Comissão Internacional para a População e a Qualidade de Vida” por si coordenado e elaborado por essa Comissão a que presidiu. Foi um trabalho de anos e de relevo, resultante de várias audições públicas em todos os continentes, com mulheres e homens que iam de simples cidadãos com experiência dos problemas às elites mais críticas em cada sociedade. Esse material foi trabalhado por peritos das diferentes zonas do mundo, em número igual de homens e mulheres e de áreas académicas diversas, orientados para um trabalho teórico-analítico sobre os problemas-alvo do relatório: questões da população e da qualidade de vida de todos. Desse relatório nasceu o livro Cuidar o Futuro: um Programa Radical para Viver Melhor, traduzido em mais de uma dezena de línguas, que na altura foi enviado a todos os chefes de governo. Na maioria dos casos, as respostas foram nulas ou esvaziadas de qualquer substância: et pour cause – as exigências de uma viragem civilizacional eram de facto de tal dimensão que se tornavam assustadoras…

Curiosamente, posterior só em semanas à publicação de Bem Comum, a primeira “Exortação” do Papa Francisco – Evangelium gaudium 2013, para espanto geral vem exatamente no mesmo sentido de uma denúncia radical do atual capitalismo neoliberal e seus efeitos escandalosos, nas desigualdades cada vez maiores em todo o mundo e na pobreza extrema da maioria dos habitantes do mundo.

Chamativo ainda neste livro é a já atrás referida visão inovadora da Terra como um condomínio, que Paulo Ferreira Magalhães propõe. Concebendo o Planeta como um território sobre o qual todos se pronunciam e decidem, desterritorializa a noção de uma experiência urbana quase doméstica – a do condomínio – para a tornar um “modelo organizacional planetário”, o que poderá gerar mudanças significativas e até revolucionárias.

No âmbito da dicotomia entre público e privado – eixo fundamental do livro –, são importantes os ensaios que chamam a atenção para situações novas de risco. Por exemplo, no que toca à informação e à propriedade intelectual. Isto é trabalhado por Maria Eduarda Gonçalves, por um lado, e por Manuel Godinho, por outro, em dois dos ensaios. São analisados o desperdício e a fraude a que estão hoje sujeitos esses bens intangíveis e imateriais, mostrando-se, por exemplo, o contraste entre a publicidade das redes eletrónicas e a privacidade protegida da circulação de achados científicos, tecnológicos, intelectuais, que poderiam ser utilizados de outros modos e com outros fins, tornando-se assim claramente lesivo do bem comum. Não distinguindo entre significante e irrelevante, fica astutamente escondido, e assim salvaguardado, tudo o que possa prejudicar os interesses privados económico-financeiros: sinal evidente da vontade de domínio tão tentadora da maioria dos humanos em qualquer plano da existência.

A fechar estas palavras, repito uma ideia do filósofo Nelson Goodman que poderá tornar-se desafiadora da atenção de todos nós: a nossa capacidade de não ver é virtualmente ilimitada (Lessa, in Pato, Schmidt e Gonçalves, 2013, p. 133). É por essa razão que o território bem comum é uma diafonia ou uma razão de conflitos. Resta a dúvida e a confiança quanto a se a Humanidade e cada sociedade poderão ou não chegar a preferir o bem público em detrimento dos benefícios próprios, individuais e de grupo. Segundo Fernando Gil, a confiança que está a montante de todas as outras atitudes. Ora falhando isso, talvez só uma catástrofe global provoque as condições necessárias para um recomeço de vida na Terra, então verdadeiramente humana. É nossa responsabilidade pois evitar tal catástrofe. Como lemos em ARA, o mais recente livro de Ana Luísa Amaral,

 

Vergonha é consentir

[…]

Vergonha é não amar [Amaral, 2013, pp. 78-79]

 

Haverá necessidade de indignação e ao mesmo tempo de confiança em que à nossa frente um desafio imenso nos chama: o de uma visão teleológica da vida que envolva um sentido maior para a existência, onde justiça, solidariedade, compaixão, alegria, possam ser pilares. Desafio por isso a uma interioridade toda exterior, porque voltada para fora, de modo a que em nós haja essa alma com que ter passos de que falava Fernando Pessoa por voz de Bernardo Soares:

 

[…] há grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos [Fernando Pessoa/Bernardo Soares, frg. 339].

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AMARAL, A.;L. (2013), Ara, Lisboa, Sextante Editora.         [ Links ]

ARISTÓTELES (2012), Ética a Nicómaco. Edição bilingue do texto grego estabelecido por I. Bywater e traduzido e anotado por Dimas de Almeida, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas.         [ Links ]

FRANCISCO, Papa (2013), Evangelium gaudium.         [ Links ]

GIL, F. (2000), La Conviction, Paris, Flammarion.         [ Links ]

PESSOA, F. (1993), “Nevoeiro”. In Mensagem. Poemas Esotéricos, ed. crítica de José Augusto Seabra, Madrid, Archives CSIC.         [ Links ]

PESSOA, F. / Bernardo Soares (1998), Livro de Desassossego. Composto por Bernardo Soares, Ajudante de Guarda-Livros na Cidade de Lisboa, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim.         [ Links ]

PATO, J., SCHMIDT. L., GONÇALVES, M.;E. (2013), Bem Comum. Público/Privado, Lisboa, ICS.         [ Links ]

PINTASILGO, M. de L. / Comissão Independente para a População e a Qualidade de Vida (1998) (trad. portuguesa), “Prefácio”. In Cuidar o Futuro. Um Programa Radical para Viver Melhor, Lisboa, Trinova.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Oppenheimer terá sido levado a dizer-se, evocando palavras do livro sagrado hindu Bhagavadgîta: “Now I am become Death, the destroyer of worlds”.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons