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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.211 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGOS

O nascimento da polícia moderna: uma análise dos programas de policiamento comunitário implementados na cidade do Rio de Janeiro (1983-2012)

The birth of modern police:  community policing programs in Rio de Janeiro (1983-2012)

 

Ludmila Ribeiro*

*Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Pres. Antônio Carlos, 6627, Unidade Administrativa III — CEP 31270-901 Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: ludmila.ribeiro@gmail.com

 

RESUMO

Neste artigo, o objetivo é apresentar uma análise sociohistórica dos programas de policiamento comunitário executados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) no período compreendido entre 1983 e 2012. Pretendem-se problematizar as diferenças entre as intenções presentes no qualificativo “comunitário” e a prática efetiva destas iniciativas policiais, que em nada se assemelham a programas de tal natureza. Não obstante esta dissonância, um dos maiores benefícios dessas ações é viabilizar a institucionalização do policiamento tradicional em áreas de favela da cidade do Rio de Janeiro, sedimentando, assim, as bases para o nascimento de uma polícia moderna.

Palavras-chave: segurança; território; polícia; burocracia; modelos de policiamento.

 

ABSTRACT

We make a socio-historic examination of the community police efforts undertaken by the Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) from 1983 to 2012, and emphasize the differences between the distinction of “community” and the actual practices employed, which in no way reflect the underlying terminology or nature.  Despite the mismatch of jargon to reality, the actions have been beneficial insofar as they have made it possible to institutionalize traditional police measures in the favelas of Rio de Janeiro, and lay the foundations for the emergence of a modern police force.

Keywords: security; territory; police; bureaucracy; police models.

 

INTRODUÇÃO1

 

Os programas de policiamento comunitário foram implementados pela primeira vez no Brasil na década de 1980. A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) foi a organização precursora no uso desse modelo com a tradução de manuais sobre o tema e a realização de um programa dessa natureza em 1983. Desde então, a PMERJ implementou várias outras iniciativas de policiamento comunitário, as quais, contudo, diferem largamente em termos de programa de ação e resultados alcançados, tanto do ponto de vista teórico quanto entre si.

Todavia, quando essas iniciativas são analisadas a partir de uma perspetiva histórica, torna-se notório que, em vez de flexibilizarem o modelo profissional de polícia (tal como proposto pela literatura), contribuem para a sua institucionalização nas áreas periféricas da cidade. O efeito positivo dessa inversão de prioridades parece ser a constituição das bases para o nascimento de uma polícia moderna na cidade do Rio de Janeiro.

Antes de prosseguir com a apresentação do que se entende por “modelo de policiamento profissional” e “modelo de policiamento comunitário”, é importante destacar que, desde a década de 1980, o termo “comunidade” passa a ser utilizado como eufemismo de favela. Do ponto de vista académico, não há fonte fidedigna que informe como e por que motivo essa associação se estabeleceu, mas o estudo de Silva (2013) aponta a importância do papel dos agentes comunitários nesse sentido. Eram eles que lutavam pelos direitos dos favelados a uma vida tão digna quanto a dos moradores do asfalto e, por isso, acabavam por se intitular “defensores da comunidade” como um silogismo para significar aquele que lutava pelo direito de todos os que estavam na mesma situação.

O facto é que, desde os anos 1990, a categoria “policiamento comunitário” passa a ser usada para a identificação de uma modalidade de policiamento destinada às áreas de favela. Em parte, essa confusão de significados – entre o que a categoria pretende do ponto de vista doutrinário, e o que de facto realiza no quotidiano da cidade do Rio de Janeiro – pode estar relacionada com a constatação de que o termo comunidade é, muitas vezes, empregado para significar favela.

Do ponto de vista conceptual, a categoria policiamento comunitário é engendrada para a identificação de modelos de reforma da organização policial. Entende-se que os modelos profissionais de policiamento promoveriam amplo distanciamento dos cidadãos, que, por sua vez, não se sentiriam protegidos pela polícia. Na tentativa de reverter esse cenário, os modelos de policiamento comunitário propõem-se aproximar a polícia da comunidade por meio da descentralização dos processos de tomada de decisão, os quais passam para as mãos dos polícias de linha em vez de ficarem a cargo de seus comandantes. Nesse contexto, a polícia passa a contar com a colaboração da comunidade no mapeamento dos problemas e na definição das questões prioritárias a serem atendidas pela ação policial. Uma vez encerrado o diagnóstico, polícia e comunidade definem, em conjunto, as estratégias de ação que serão empregadas para a solução do problema, de modo que o crime ou a desordem não voltem a ocorrer (Skogan, 2008).

O surgimento do modelo de policiamento comunitário é atribuído às experiências conduzidas pelas polícias norte-americanas ao longo de 40 anos (1950-1990) com o objetivo de aumentar a efetividade da ação policial em termos de prevenção do crime no que tange à redução do sentimento de insegurança e ao aumento da confiança nas organizações policiais. Essas experiências são iniciadas com o propósito de responder às críticas da população às organizações policiais norte-americanas, as quais, na época, estavam completamente dominadas pelo “modelo profissional”, que enfatiza o respeito pelos regulamentos previamente estabelecidos como fonte da ação, a hierarquia como metodologia de tomada de decisão e a distância do polícia em relação à comunidade policiada para evitar cooptações políticas da polícia (Travis, 1992).

Nesse contexto, o policiamento comunitário não pode ser entendido como um programa ou uma estratégia, mas sim como um processo de reforma organizacional da polícia, uma vez que envolve mudança na estruturação da agência, nos fluxos dos processos decisórios, na natureza dos mecanismos utilizados para diagnóstico dos problemas que suscitam intervenção policial e na própria forma de controlo da ação da polícia, atividade que passa a ser exercida pela comunidade.

Considerando as definições de modelo de policiamento profissional e modelo de policiamento comunitário, é possível afirmar que a PMERJ vem executando “programas” de policiamento comunitário. Afinal, as iniciativas que carregam esse nome propõem, na verdade, a instalação de postos de policiamento em áreas anteriormente dominadas por uma disputa violenta de “bandidos” pelo controlo do território (Misse, 2010). Não são, portanto, metodologias que visam a reforma da organização policial; e, por conseguinte, não podem ser classificadas como modelos. São programas que têm como objetivo estender a prestação do serviço policial a uma parcela da população da cidade do Rio de Janeiro que, de outra forma, não o receberia.

Assim, pode-se afirmar que os programas de policiamento comunitário executados pela PMERJ desde a década de 1980 na cidade do Rio de Janeiro não visam flexibilizar as regras e os procedimentos tradicionais, mas institucionalizar o modelo profissional. Afinal, têm como objetivo preponderante a prestação do serviço regular de polícia em áreas de favela dominadas por “bandidos” que fazem uso da violência ilegítima para dominar o território. Esses programas visam a recuperação do domínio da área pelo Estado e, consequentemente, a monopolização da violência para uso legítimo por parte desse órgão. Nesse contexto, os programas de policiamento comunitário fazem com que os policiais passem a prestar o serviço de policiamento nas áreas de favela de modo contínuo e não brutal,2 criando, dessa forma, as bases para o nascimento de uma polícia efetivamente moderna.

Por polícia moderna entende-se a organização que, de um lado, garante a vigilância e, portanto, a segurança de todos os cidadãos de maneira indiscriminada; e, de outro, operacionaliza o uso legítimo e proporcional da violência e do poder disciplinador. Nesse contexto, argumenta-se que os programas de policiamento comunitário viabilizam a prestação dos serviços de policiamento a todos os residentes na cidade de forma não discriminatória e constante, afinal, é com a instalação do policiamento comunitário que a PMERJ deixa de realizar incursões violentas e esporádicas em áreas de favelas.

É a partir do momento em que programas qualificados de policiamento comunitário começam a ser empreendidos na favela que a polícia deixa de fazer as incursões para ali permanecer, prestando serviços voltados, por um lado, para a contenção da violência ilegítima praticada por “bandidos”, e muitas vezes pela própria comunidade, e por outro, para a disciplina dos comportamentos dos indivíduos que ali residem. Portanto, os programas de policiamento comunitário criariam as bases para o nascimento de uma polícia moderna, uma vez que transformariam a lógica de operação policial em áreas de favela, fazendo com que essa agência começasse a perceber-se como prestadora de serviços (e, por isso, tributária dos ideais dos mercados modernos), guiando as suas ações pelos princípios de uma burocracia pública e em detrimento de um bando armado que procura defender os próprios interesses.3

Nesse sentido, a proposta aqui é reconstituir a trajetória dos programas de policiamento comunitário operacionalizados pela PMERJ de 1983 a 2012, que tiveram como espaço a cidade do Rio de Janeiro. Com base na análise sociohistórica dessas iniciativas, pretende-se demonstrar como elas contribuem para o nascimento de uma polícia moderna por institucionalizarem a lógica do modelo profissional de polícia na tentativa de engendrarem a prestação dos serviços de segurança em áreas de favela.

Para viabilizar a adequada compreensão desse argumento, o presente texto foi dividido em duas partes, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, apresenta-se uma breve história do percurso tradicionalmente percorrido pelas organizações policiais ao longo de seu processo de modernização, destacando o que se entende, na atualidade, por modelo de policiamento profissional e modelo de policiamento comunitário.

Na segunda parte, a história dos programas de policiamento comunitário implementados na cidade do Rio de Janeiro é recontada com base no uso de trechos dos documentos oficiais produzidos pelo governo do Estado do Rio de Janeiro e pela PMERJ. Além disso, são utilizados materiais que integram o arquivo pessoal do cel. Nazareth Cerqueira,4 assassinado em 1999. Nesta secção, as citações são escrutinadas com o objetivo de demonstrar como o termo policiamento comunitário passa a ser empregado num sentido cada vez mais distante de seu significado original e cada vez mais próximo do policiamento profissional. Afinal, a categoria policiamento comunitário passa a ser utilizada para identificar programas de policiamento que pretendem, por um lado, viabilizar a prestação regular do serviço de polícia em áreas consideradas “à margem do Estado” (Das e Poole, 2004) e, por outro, normalizar os padrões de conduta e convivência dos residentes nessas áreas por meio da imposição de regras de disciplina reguladas pela presença da própria polícia.

 

SOBRE OS PROCESSOS DE CONSTITUIÇÃO DA POLÍCIA ATÉ À CONTEMPORANEIDADE

 

De acordo com Monjardet (2003, p. 13), Max Weber subscrevia a afirmação de Trotski de que “todo Estado é baseado na força”. Ou seja, o Estado é uma instituição que procura disciplinar os comportamentos individuais e garantir a ordem por meio do uso da força legítima como mecanismo de coerção.

Do ponto de vista das derivações que essa subscrição poderia ter, a mais importante é a ideia de que o Estado moderno pode ser definido como uma comunidade humana que, nos limites de um território determinado, reivindica com sucesso e por sua própria conta o monopólio da força física cujo exercício se dá por meio de uma força pública denominada polícia. Ou seja, a polícia é a instituição estatal que estaria autorizada a utilizar a força de modo legítimo para obrigar o indivíduo a comportar-se de acordo com determinadas regras, ainda que contra a vontade dele.

Na medida em que polícia é a organização que viabiliza o exercício legítimo da força física, essa agência conforma-se como instrumento de poder para obrigar os indivíduos a agirem de determinada forma mesmo contra a vontade deles. Trata-se de um serviço público, visto que passível de ser requisitado por qualquer indivíduo que se sinta ameaçado; e de uma profissão, já que as suas atividades devem ser executadas por indivíduos especificamente preparados para essa finalidade.

A polícia é, portanto, a instituição estatal que faz uso legítimo da força física com os objetivos de manter a ordem, disciplinando os indivíduos; proteger os cidadãos, por meio da vigilância constante, contra qualquer uso indevido da força; e, por fim, viabilizar a punição, com a identificação e o registo como suspeito de quem violou as regras.

Para a realização dessas funções, a polícia estrutura-se de acordo com modelos relativamente estáveis no tempo e no espaço, em que pesam as inovações verificadas nos últimos anos (Skogan, 2008). Isso equivale a dizer que, apesar de ao longo de toda a história da polícia, a sua função primordial ter sido a manutenção da ordem, a forma como a organização viabilizava o alcance dessa meta passou por contínuas modificações. Ou seja, a constituição de uma polícia moderna é o ponto de chegada de uma série de empreendimentos que tiveram como propósito desenvolver um modelo de policiamento condizente com as características estruturantes da própria ideia de Estado-nação moderno (tal como apresentada por Tilly, 1996).

Para Foucault (2008), o processo de modernização das sociedades e, por conseguinte, a emergência do Estado-nação na qualidade de instituição que disciplina e organiza a vida social por meio da sua polícia estão eminentemente conectados com a constituição das cidades: seja como espaço murado e denso, característica de sistemas arcaicos, nos quais o fim maior do Estado-nação é o estabelecimento da soberania; seja como espaço de circulação de indivíduos e de mercadorias, mas com fronteiras fixas, característica de sistemas modernos, em que o fim maior do Estado-nação é o estabelecimento da disciplina; seja como espaço simbólico de pertença, com fronteiras eminentemente líquidas, característica de sistemas contemporâneos, nos quais o fim maior do Estado é o estabelecimento da segurança.

Portanto, é nas cidades que as polícias vão atuar com vista a garantir que a finalidade maior da existência do Estado-nação possa efetivar-se. Exatamente por isso, é possível afirmar que a garantia da soberania, da disciplina e da segurança são as funções que, progressivamente, as organizações policiais foram alcançando e pelas quais são responsáveis na atualidade. Os instrumentos utilizados pela polícia para o alcance de cada um desses objetivos, porém, são essencialmente distintos, dependendo do contexto histórico temporal da sua existência.

No processo de formação do Estado-nação, momento em que as polícias seriam responsáveis pela garantia da soberania, o instrumento operacionalizado para tanto seria essencialmente a violência física, utilizada de maneira desproporcional e até indisciplinada desde que o espaço físico das cidades fosse mantido. A esse primeiro tipo de organização policial Foucault (2008, p. 453) dá o nome de maréchaussée:

 

[…] uma força armada que o poder real havia obrigado a pôr em serviço no século XV para evitar todas as consequências e as desordens que se seguiam às guerras, essencialmente à dissolução dos exércitos no fim das guerras. Soldados dispensados, soldados que muitas vezes não haviam recebido soldo, soldados debandados, tudo o que constituía uma massa flutuante de indivíduos que, evidentemente, se entregava a toda sorte de ilegalidades: violência, delinquência, crime, roubo, assassinato – todas as pessoas errantes, e eram essas pessoas errantes que a maréchaussée era encarregada de controlar e reprimir.

 

Uma vez consolidados os limites da cidade e institucionalizada a soberania do Estado-nação, a função da polícia vai-se transformar. Assim, além de retirar os errantes de circulação pelo uso da força física, a polícia passa a ter uma função disciplinadora, repreendendo todos aqueles que apresentassem padrão de comportamento dissonante em relação ao previsto nos regulamentos em geral, e nos códigos penais em especial. A fim de alcançar o objetivo da disciplina com eficiência, é desenvolvido o modelo profissional de policiamento.5

O modelo profissional tem as suas origens nas experiências conduzidas por Robert Peel em Londres, em 1829, e pela Polícia de Nova York em 1840 (Travis, 1992). O foco principal da ação policial é a prevenção de crimes violentos, que seriam os responsáveis pelo sentimento de insegurança da população. Neste contexto, são valorizadas ações policiais que tenham como objetivo alertar os indivíduos sobre o que pode e o que não pode ser feito ou que tenham como objetivo reprimir a ocorrência de um crime tão logo ele se verifique. Para tanto, são desenhadas intervenções estruturadas de acordo com diagnósticos técnicos estabelecidos com base nas análises sobre padrões de incidência criminal nas áreas de responsabilidade de cada comando. Por outro lado, para que a comunidade perceba a polícia como eficiente, os polícias devem responder rapidamente às chamadas para o número 190 feitas por vítimas e testemunhas, além de posicionarem viaturas em locais estratégicos, não apenas em virtude da elevada incidência de crimes, mas também pela elevada circulação de pessoas, de modo a que os residentes na localidade acreditem que a polícia será capaz de responder prontamente a qualquer delito.

No entanto, à medida que o processo de modernização da sociedade avança – em virtude da constituição de um Estado-nação cada vez mais burocrático e preocupado com a eficiência e de um mercado capitalista cada vez mais meritocrático –, o processo civilizador que orienta o comportamento dos indivíduos em sociedade também se modifica. Assim, a função da polícia precisa igualmente de ser revista.

Conforme destacado por Elias (1993), em sociedades marcadas por uma elevada integração e monopólio da força física, o indivíduo é protegido contra ataques súbitos e, simultaneamente, forçado a reprimir em si mesmo qualquer impulso emocional para atacar outra pessoa. A polícia, com a sua função disciplinar, atua a fim de lembrar ao indivíduo a importância do autocontrolo e do respeito pelas regras sociais. Essa racionalização do comportamento humano, por sua vez, permite a evolução do processo civilizador e, por conseguinte, a internalização de padrões mais elevados de autocontrolo. A partir do momento em que o indivíduo não precisa já de ser lembrado acerca da necessidade de contenção das suas emoções, o papel disciplinador da polícia perde importância e, com isso, é preciso repensar, se não a sua função na sociedade, pelo menos a forma como presta o seu serviço.

Ou seja, em contextos nos quais os padrões de autocontrolo são essencialmente elevados, é preciso intervir apenas para regular pequenas controvérsias que ocorrem no âmbito dessa recém-criada sociedade civil. É preciso, porém, que os indivíduos se sintam seguros, em termos de garantia dos seus direitos, e, para tanto, eles devem estar cientes de que essa polícia, apesar de não estar já visível na sua função disciplinadora, intervirá sempre que a ordem for rompida. Em última instância, a polícia passa a consubstanciar-se numa agência que deve garantir o sentimento de segurança.

A grande questão que se apresenta é que, com essa mudança, a polícia precisa de repensar a própria forma de prestação do serviço. Se antes a proposta da polícia moderna era viabilizar o distanciamento da maréchaussée e dos seus procedimentos violentos pela via da instituição de um modelo de ação bastante calcado no regulamento e, por conseguinte, na limitação do poder discricionário do polícia de ponta, agora a polícia contemporânea via-se forçada a flexibilizar os seus procedimentos empreendendo ações diferenciadas, de acordo com os fenómenos que levavam à insegurança das distintas comunidades de interesse. Na ânsia de ater a função policial ao prescrito nos regulamentos, os gestores da polícia esqueceram-se de que essa agência era prestadora de serviço público e, por isso, precisava de considerar o seu interlocutor para formular como e quando deveria agir. Esse cenário de insulamento da organização policial em relação ao público por ela servido levou à necessidade de se repensar o modelo profissional em tempos contemporâneos. Afinal,

 

[…] o modelo havia calculado mal o que os cidadãos esperam da polícia […]. Mais importante, o isolamento da polícia em relação ao público teve um preço alto. O oficial de patrulha, em um carro com ar-condicionado e aquecimento, não saía mais dele para fazer patrulha preventiva ou para saber mais sobre a comunidade que estava policiando. […] Logo, a população não tinha mais confiança de que a polícia estivesse lidando, ou poderia lidar, com seus problemas [Reiss, 2003, p. 67].

 

Ou seja, na atualidade, os cidadãos desejam que a polícia faça com que se sintam seguros. Para tanto, os modelos que orientam a formatação de regras e de recursos para a ação policial tiveram de ser repensados, deslocando o foco principal da disciplina dos errantes como forma de garantir a redução do crime para o desenvolvimento de um modelo de policiamento capaz de gerar a redução do sentimento de insegurança. Nascia, assim, o modelo de policiamento comunitário, o qual, contudo, foi sendo progressivamente constituído como modelo com as experiências das polícias norte-americanas. Desde os anos 1950, essas polícias haviam-se reestruturado a fim de constituir uma equipa de policiamento de referência para cada área da cidade, sensibilizar a comunidade para o problema do crime, envolvê-la no desenvolvimento de iniciativas de prevenção ao crime, atuar sobre as causas do crime – e não apenas na sua ocorrência – e sobre a redução do sentimento de insegurança para além da própria criminalidade.

Os resultados alcançados com essas mudanças eram suficientemente substantivos para indicar a necessidade de se repensar a relação entre polícia e comunidade. A aprovação e o aumento do sentimento de segurança foram tais que as experiências denominadas “policiamento comunitário” multiplicaram-se no tempo e no espaço, fazendo com que a expressão passasse a identificar uma série de diferentes ações e estratégias empreendidas pelas polícias de todo o mundo.

Em que pese a plasticidade que esse conceito terminou por assumir em razão do próprio processo que orientou a sua constituição, do ponto de vista doutrinário é consensual que ele não pode ser definido pelas atividades, mas sim em virtude das estratégias assumidas pela organização policial para adaptar o modelo profissional às características do ambiente em que a polícia vai atuar. Exatamente por isso, descentralização, envolvimento com a comunidade, e foco na solução de problemas são fatores imprescindíveis para que o modelo de policiamento seja classificado como comunitário. Cerqueira (2001) resume as diferenças existentes entre o modelo de policiamento profissional e o modelo de policiamento comunitário conforme retratado no quadro 1.

 

 

A grande questão que se apresenta é que muitas organizações policiais passaram a compreender essas duas metodologias de ação policial como se uma estivesse em evidente oposição à outra, e não de forma complementar, o que evidentemente se constituiu em equívoco. Afinal, apenas pode existir modelo de policiamento comunitário nas áreas onde o modelo de policiamento profissional chegou ao seu esgotamento e, assim, apesar de produzir ordem, não é capaz de disseminar o sentimento de segurança em razão do distanciamento excessivo em relação à população policiada. Ou seja, modelo profissional e modelo comunitário são, na verdade, duas faces da mesma moeda. É necessária uma burocracia estruturada para que a ação policial seja substantivamente previsível, mas é necessária ainda certa flexibilidade para a definição de cursos de ação diferenciados a fim de viabilizar o atendimento às variadas demandas da comunidade.

As organizações policiais contemporâneas devem ser capazes de empreender tanto práticas reativas quanto preventivas. Devem estar preocupadas em aplicar a lei de modo universal e, ao mesmo tempo, responder às demandas específicas de cada comunidade. Devem estar atentas à prestação do serviço de forma impessoal e universal, mas sem se esquecerem da satisfação dos cidadãos que recebem o serviço. Em suma, as organizações policiais devem, simultaneamente, possuir todos os critérios de uma burocracia no sentido weberiano, mas sem serem engessadas por uma espécie de lei de ferro da burocracia, flexibilizando-se para que os cidadãos sintam que estão protegidos pelos prestadores do serviço público.

Portanto, na atualidade, as organizações policiais devem ser capazes de garantir: a soberania estatal em todas as partes do território contidas nas fronteiras do Estado-nação; o comportamento disciplinado por parte do povo que compõe esse Estado-nação, o qual deve estar em consonância com as regras vigentes nessa localidade; e ainda o sentimento de segurança perante toda a população, que se deve sentir protegida e, por conseguinte, capaz de ter acesso aos equipamentos de disciplina sempre que alguma ameaça estiver iminente.

Para a realização dessas três funções, as organizações policiais utilizam, em primeiro plano, o modelo profissional, que estabelece as regras e os recursos a serem acionados pelo polícia na sua tarefa de disciplinar os indivíduos e, consequentemente, de garantir a ordem. Contudo, em áreas nas quais a plena institucionalização desse modelo não é capaz de prover o sentimento de segurança, as organizações policiais tendem a utilizar o modelo de policiamento comunitário, que, ao flexibilizar determinados pressupostos da ação policial tradicional, contribui para que a população policiada se sinta mais próxima da polícia e, assim, mais segura.

Na secção seguinte, a trajetória dos programas de policiamento comunitário executados na cidade do Rio de Janeiro é reconstituída e, com isso, será possível perceber que a história recente da PMERJ difere, em boa medida, do percurso descrito nesta secção, o qual foi o seguido pela maioria das instituições policiais tradicionais. Com base nesses dados, procura-se problematizar os percalços da tentativa de se introduzir o modelo de policiamento comunitário quando o modelo profissional ainda não se encontrava plenamente implementado. Dessa forma, espera-se demonstrar que os programas denominados “policiamento comunitário” têm criado as bases para o nascimento de uma polícia moderna na cidade do Rio de Janeiro ao disseminarem os pilares de sustentação do modelo de policiamento profissional para áreas em que nem sequer a soberania estava garantida.

 

OS PROGRAMAS DE POLICIAMENTO COMUNITÁRIO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

 

Este artigo é derivado de uma pesquisa sociohistórica que tem como objetivo reconstituir a trajetória dos programas de policiamento comunitário implementados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) no período de 1983 a 2012. Assim, a fim de que as estratégias utilizadas para alcançar esse objetivo possam ser adequadamente compreendidas, o processo de seleção das fontes será detalhado antes do início da análise propriamente dita.

A princípio, a ideia era reproduzir, nesta secção, trechos dos documentos oficiais que apresentassem a natureza de cada iniciativa classificada pela PMERJ como policiamento comunitário. As lacunas que porventura existissem no material seriam preenchidas com entrevistas com intelectuais orgânicos6 e académicos que participaram na constituição, monitoramento ou na avaliação dessas iniciativas.7

Contudo, a reunião das fontes de informação para a escrita do trabalho não se mostrou tão fácil como parecia. Primeiro, o projeto foi apresentado ao comando da PMERJ, que nos encaminhou ao arquivo central da corporação, o qual reúne “tudo o que é publicado” no âmbito da PMERJ, categoria em que se incluem: 1) os Boletins de Informação (BI); 2) a documentação das unidades extintas (por exemplo, o Batalhão de Trânsito – BPTRAN, que deixou de existir em 2000); 3) as pastas de pessoal, referentes a polícias inativos – reformados e excluídos; e 4) a documentação histórica da polícia, como os atos publicados na época do Império.

O material a ser procurado neste arquivo para se atingir o objetivo proposto, eram os decretos de criação de unidade, nos quais há sempre uma descrição dos propósitos pretendidos por ela; e as Notas de Instrução (NI), que orientam os polícias em termos de regras e de recursos a serem mobilizados para a execução do trabalho nas novas unidades. Ocorre que os BI não se encontravam indexados por temas e, dessa forma, seria necessário consultar cada um individualmente. Como os boletins circulam diariamente, isso significa pesquisar 10 585 documentos, cada qual com uma média de 80 páginas.

Nesse cenário, para que a pesquisa pudesse ser viabilizada, seria necessário obter a informação relativa à data em que os decretos de criação e as NI relativas a programas de policiamento comunitário haviam sido publicadas. Após algumas idas e vindas, foi possível descobrir que os BI se encontravam digitalizados, mas no formato imagem, o que também inviabilizava a busca dos decretos e das NI por palavra-chave. A solução, então, seria consultar cada um dos boletins em busca da informação, mas, considerando a quantidade de trabalho envolvida, procuram-se outras opções.

Nesse processo, após entrevistas com intelectuais orgânicos, ficou evidente que, sempre da posse de um novo comandante, um programa de ação é escrito com o objetivo de sinalizar a todos os integrantes da corporação que tipo de ações, projetos ou programas se pretende desenvolver a cada quadriénio. Ao final, com o objetivo de se verificar qual foi o legado deixado por cada comandante, é redigido um relatório de atividades, apresentando a todos os polícias as realizações do período. Era evidente que essa regra se constituía, na verdade, numa espécie de convenção, já que nada obrigava o comandante a redigir esse documento.

No entanto, era sabido que nesse material seria possível encontrar dados suficientes para se compreender de que modo o conceito de policiamento comunitário chega à PMERJ, como se vai transformando e como se consolida em sinónimo de policiamento em áreas de favela com o objetivo primeiro de garantia da soberania do Estado nessas áreas. Em busca de tais documentos, fizeram-se pesquisas na biblioteca da Escola Superior de Polícia Militar e foi possível encontrar todos os planos diretores e relatórios de gestão, com exceção para os referentes aos anos 1999, 2000, 2003 e 2007 em diante.

Em busca dos documentos que poderiam cobrir esse período, fizeram-se também levantamentos documentais na Academia de Polícia Militar (APM). Nessa ocasião, a PMERJ franqueou o acesso a distintas revistas publicadas pela própria corporação e que reuniam artigos de oficiais, praças e académicos com os objetivos de disseminar o modelo de policiamento operacionalizado por cada comando; refletir sobre a situação do crime e da violência em cada momento histórico; e problematizar os limites e as possibilidades de avaliação da própria atividade de policiamento. É interessante destacar que a periodicidade das revistas não parece ser estabelecida a priori e, por isso, não é possível afirmar se a publicação parou de circular em alguns momentos, voltando a circular depois, ou se sempre circulou, e a biblioteca da PMERJ não guardou uma cópia em determinados períodos.

Contudo, com a visita a essas duas bibliotecas, foi possível reunir o material documental listado no quadro 2. Cumpre sublinhar que o período para o qual se possui menos informações é exatamente o atual, já que a PMERJ disponibilizou poucas informações sobre os planeamentos e avaliações realizados entre 2007 e 2012.

Como forma de suprir a ausência de documentos para determinados períodos, ao longo dos anos 2010 e 2011 foram realizadas seis entrevistas de história de vida com ex-comandantes da própria PMERJ e com oficiais que haviam comandado programas de policiamento comunitário.8 Com o intuito de contrastar as diversas fontes de informação, foram realizadas visitas a distintas unidades da PMERJ, momentos em que algumas conversas não sistemáticas foram empreendidas com informantes-chave que forneceram informações valiosas sobre os caminhos a seguir, bem como pistas sobre documentos e pessoas a serem consideradas para a compreensão da trajetória dos programas de policiamento comunitário na cidade do Rio de Janeiro.

Por fim, recentemente, em julho de 2012, foi possível ter acesso à própria documentação deixada pelo cel. Cerqueira no Instituto Carioca de Criminologia após a sua morte,9 documentação que foi organizada em 40 caixas distintas por Nilo Batista, que, na época, dividia com Cerqueira a presidência do referido instituto.

Portanto, a reconstituição da trajetória dos programas de policiamento comunitário implementados na cidade do Rio de Janeiro entre 1983 e 2012 será realizada tendo como base os planos diretores e os relatórios de gestão encontrados, as revistas da PMERJ localizadas, os documentos do arquivo do cel. Cerqueira já revistos e ainda as entrevistas e as informações-chave repassadas pelos polícias contactados ao longo da pesquisa.

O ponto de partida desta análise é o início da década de 1980, ou a passagem do autoritarismo para a democracia. O documento “O comando-geral”10, de 18 de agosto de 1981, indica que, para os polícias militares, a mudança de regime significaria a possibilidade de os polícias da PMERJ voltarem a escolher o seu comandante-geral. Assim, na consulta realizada entre os oficiais da PMERJ para a indicação de quem seria o novo comandante-geral da corporação, os tenentes-coronéis apontados foram: ten.-cel. Cerqueira (45,33% dos votos), ten.-cel. Rosette (15,33% dos votos) e ten.-cel. Elísio (7,33% dos votos).

Para que o empreendimento de nomear um polícia de carreira para o cargo de comandante-geral da corporação se pudesse efetivar, o governador recém-eleito – Leonel Brizola (1983-1987) – precisou de realizar certa engenharia institucional. Isto porque, como o Brasil ainda vivia o período de ditadura militar (1964-1985), os ocupantes desses cargos deveriam ser aprovados pelo Exército, tal como previsto pelo Decreto-lei n.º 667 de 1969. Para escapar a essa regra, o governador recém-empossado (1983) extinguiu a Secretaria de Segurança, que coordenava a ação da Polícia Militar e da Polícia Civil, dando lugar ao aparecimento das secretarias de Polícia Civil e Polícia Militar: “Assim, o Estado do Rio de Janeiro não obrigou a submeter um nome à aprovação do ministro do Exército, pois não existia um Comando-Geral, mas secretarias de Estado” (Lemgruber, 1986, p. 22).

Tal como verificado pela análise dos documentos disponíveis no arquivo do cel. Cerqueira, antes de uma nomeação para o cargo de comandante-geral da PMERJ, ele realizou diversas missões ao exterior com o propósito de conhecer quais eram os modelos de policiamento em voga. É nesse momento que o coronel entra em contacto com os modelos de policiamento comunitário desenvolvidos no Japão (modelo Koban), no Canadá (polícia de Ontário) e nos Estados Unidos (polícia de Nova Iorque), e a sua grande preocupação foi trazer para o Brasil documentos que explicassem como viabilizar a constituição desses modelos e, por conseguinte, garantir a sua exequibilidade em distintos cenários.

Uma vez nomeado para o cargo, a sua preocupação foi incluir, já no plano diretor, alguma menção a essa nova forma de prestação do serviço policial que garantia não apenas mais efetividade em termos de prevenção do crime, mas sobretudo mais legitimidade e, por conseguinte, aceitação da polícia. Com isso, o primeiro documento oficial da PMERJ no governo Brizola já traz a proposta de institucionalização de um modelo de policiamento comunitário, como indica o trecho a seguir, em que se apresenta um dos objetivos principais da “nova polícia” que nasceria por meio daquele governo:

 

Promover, adaptando a estrutura policial militar às exigências da Segurança Pública, o ajustamento comportamental da organização dentro de uma nova concepção de ordem pública, na qual a colaboração e a integração comunitária sejam os novos e importantes referenciais, o que implica um novo policial e uma nova polícia [Plano diretor, 1984-1987, p. 34, itálico nosso].

 

A inserção do modelo de policiamento comunitário como linha estruturante das ações da Polícia Militar para o período conjugava-se de maneira bastante coerente com os princípios de respeito dos direitos humanos e cooperação comunitária que orientavam a ação governamental nas demais áreas, como denota a primeira medida inscrita no Plano de Desenvolvimento Económico e Social do Estado do Rio de Janeiro (PDES) para o período de 1984 a 1987:

 

A primeira medida para iniciar um processo de recuperação do Estado da situação de dificuldade e desesperança em que se encontra deve ser uma mudança da conduta do governo em relação à comunidade: ele deve procurar o diálogo com todos os segmentos da sociedade, com as associações de classe e de moradores, empresários, estudantes, sindicatos, entidades religiosas e de produtores rurais [PDES, 1984-1987, p. 5, itálico nosso].

 

É interessante destacar, contudo, que a utilização do modelo de policiamento comunitário como estratégia de constituição de uma polícia moderna, visto que sujeita a regulamentos disciplinares, e não arbitrária, já aparece no próprio plano de governo. Em parte, esse protagonismo da polícia no plano de governo (para além do seu próprio plano diretor) é decorrente do entendimento de que, durante os regimes autoritários, a polícia tem uma função política de reprimir os opositores do governo. Além disso, como os direitos e as garantias fundamentais estiveram suspensos, vários foram os casos de denúncias de execução empreendidas por polícias militares e de excessos no uso da força aquando da execução da atividade de policiamento (Bicudo, 1992).

Logo, a adoção do modelo de policiamento comunitário não se consubstanciava numa estratégia que visava a flexibilização do modelo profissional, mas num mecanismo engendrado com o objetivo de mudar a imagem que a população tinha da polícia e, para tanto, era imprescindível fazer com que os polícias passassem a agir de acordo com a doutrina de direitos humanos e se preocupassem em desconstruir os preconceitos em relação à polícia herdados do período anterior. Esse entendimento parece particularmente evidente na seguinte passagem do PDES:

 

A mudança de conduta do governo em relação à comunidade deve começar pelo respeito aos direitos humanos em todos os níveis, particularmente no que diz respeito à segurança do cidadão comum. É necessário criar junto à população a consciência do fim da arbitrariedade e da impunidade, no que se refere às autoridades estaduais. O cidadão não deve temer a polícia, que será acionada para protegê-lo, não para reprimi-lo. Não há mais “blitzen” de trânsito, nem prisões em flagrante delito, não se entra mais nas favelas arrombando portas de barracos, mas, ao contrário, a nova administração atua em colaboração com a comunidade. A manutenção da ordem pública se fará através do policiamento preventivo, do diálogo e da ação política, e o governo garante ao cidadão o direito de se manifestar livremente [PDES, 1984-1987, p. 7, itálico nosso].

 

A ressalva de que a ação da polícia deveria ser guiada de acordo com regulamentos reforça a tese de que a aproximação com a comunidade era, na verdade, uma forma de criar laços suficientemente fortes para que esta viesse a exercer a função de controlo externo da atividade policial. Essa atividade estaria circunscrita aos regulamentos que seriam produzidos ao longo dos primeiros anos do governo Brizola com o objetivo de limitar a discricionariedade do polícia de ponta, que, no período anterior, era utilizada para arrombamento de casas, revistas e prisões sem o devido respaldo legal.

Utilizando-se das prerrogativas para o estabelecimento de um novo regulamento policial que pudesse orientar os polícias no processo de aproximação com a comunidade, o cel. Cerqueira decide conduzir uma tentativa que, dependendo dos resultados, levaria ao desenho de um novo modelo de policiamento a ser expandido para todas as demais unidades da PMERJ. Trata-se do Centro Integrado de Policiamento Comunitário (CIPOC), inaugurado em 1983 na área do 18.º Batalhão.11 Nessa experiência, os polícias e os representantes comunitários reunir-se-iam para a discussão dos problemas que mais afetam a atividade de manutenção da ordem pública e, em seguida, construiriam estratégias para a solução das causas do fenómeno de tal maneira que ele não mais acontecesse e a comunidade pudesse ficar em paz.

No entanto, quando os documentos que retratam essa experiência são analisados, é evidente desde o primeiro momento, que a adoção do policiamento comunitário não visava uma reforma do modelo profissional, mas a sua própria institucionalização. Desde o primeiro parágrafo, destacava-se como a unidade recém-batizada de CIPOC tinha como objetivo garantir o provimento de serviços de policiamento em áreas que, tradicionalmente, não o recebiam por serem “pobres”:

 

[O CIPOC] Tem como objetivos assegurar a presença do policiamento em determinadas áreas carentes, onde a presença do policiamento normal, da Unidade Operacional, seja dificultada por qualquer fator; dinamizar as ações no local em que se localize o Centro, dotando-o de condições de funcionamento como elemento avançado; integrar a Polícia Militar à comunidade, sobretudo a mais pobre; articular e atualizar recursos comunitários existentes na área, utilizando-os no atendimento da comunidade; promover e incentivar o desenvolvimento de um trabalho a nível preventivo, junto às camadas mais jovens; colaborar no programa de favorecimento e oportunidade de ocupação e emprego, visando à melhoria de condições de vida da comunidade carente; minimizar os problemas sociais existentes na área afetada ao CIPOC, através de um esforço conjunto da PM, com técnicos da área humana (psicólogos, pedagogos e assistentes sociais); prevenir e reduzir tensões sociais, levando a comunidade carente a engajar-se no desenvolvimento social; proporcionar aos comunitários recursos de uma documentação completa e conjugar esforços entre a Polícia Militar e o Grupo Social, na incessante busca do bem-estar social em complementação à manutenção de ordem pública [Revista da PMERJ, 1983, pp. 27-28, itálicos nossos].

 

Esses documentos, em certa medida, reforçam a descrição que Paixão (1982) faz sobre a ação policial na cidade de Belo Horizonte no final da década de 1970. De acordo com o autor, nessa época, a execução das atividades de policiamento visava a constituição de um cordão sanitário sobre as “classes perigosas”, isto é, sobre os pobres. O objetivo mais imediato de tal ação era impedir que essas classes e, por conseguinte, os seus problemas transbordassem para o restante da sociedade, o que poderia criar especialmente conflitos e crimes, nos quais os pobres assaltariam os ricos para garantir a sua sobrevivência. Assim, longe de assegurar a soberania do Estado em áreas carentes, o que a polícia fazia era impedir que essas pessoas circulassem nas áreas mais “saudáveis” da cidade.

Nesse contexto, o objetivo do CIPOC era alterar a “cultura policial” de emprego de categorias construídas na prática profissional, constituintes de uma “lógica em uso”, que identificava criminosos por meio de avaliações da cor da pele e das roupas maltrapilhas (Paixão, 1982). Para aniquilar essas práticas vigentes e transformar a polícia numa instituição prestadora de serviço, o foco da instituição deveria deixar de ser o “bandido” e passar a ser a “comunidade”, com a qual a polícia trabalharia em parcerias, disciplinando a sua ação nesse espaço e, dessa forma, garantindo segurança para os que residiam dentro ou fora da área de atuação do programa.

Algumas questões devem ser destacadas em relação ao argumento da institucionalização do modelo profissional. Para garantir que os polícias lotados no CIPOC de facto não usariam a força de forma discricionária e arbitrária, foram editadas distintas Notas de Instrução que regulavam a rotina desses funcionários públicos. Além disso, os polícias eram obrigados a redigir relatórios diários e pedir que comerciantes e outros transeuntes o assinassem, certificando assim a veracidade das informações prestadas.

Para garantir que os polícias encarregados do policiamento comunitário não seriam desvirtuados nem empregariam padrões de conduta “viciados” com os ideais autoritários do período anterior, apenas seriam lotados no CIPOC os polícias recém-admitidos. A avaliação da ação desses indivíduos, bem como a satisfação da população com os serviços prestados, seria auferida por meio de pesquisas de monitorização e avaliação dessa unidade policial, as quais seriam executadas por agências externas à própria polícia, evitando, dessa forma, possíveis corrupções do avaliador e, por conseguinte, perda de legitimidade dessa experiência inovadora.

Mesmo assim, o diagnóstico que o próprio cel. Cerqueira fez dessa experiência no final do governo foi de um programa mal sucedido. Em parte, isso teria acontecido porque o pressuposto para o desenvolvimento do modelo profissional de polícia não se fazia presente. Isso porque, se o pensamento histórico de Foucault (2008) for retomado, é possível afirmar que o pressuposto básico para a constituição de uma polícia moderna é a capacidade dessa agência de garantir a soberania do Estado-nação em todo o seu território. Apenas após essa etapa, é possível instalar unidades de policiamento nas quais os prestadores do serviço seguem os regulamentos e tentam, pela proximidade com a comunidade, compreender quais são os fenómenos sociais que causam medo e, por conseguinte, insegurança:

 

É realmente um trabalho difícil e complexo. [As áreas de policiamento comunitário] São áreas geralmente desassistidas pelo poder público, nas quais os traficantes de tóxicos mantêm redes superorganizadas de terror e de apoio à população local, mantendo-as subjugadas e, às vezes, obrigando-as a não apoiarem o trabalho policial. Por outro lado, o mau policial, às vezes aliando a sua corrupção a uma violência desnecessária e ilegal, dificulta qualquer trabalho de conquista dessas populações. É um desafio que não pode ser abandonado [Relatório de gestão, 1983-1986, pp. 88-89, itálico nosso].

 

Na avaliação feita do CIPOC, a sua descontinuidade seria a consequência da incapacidade das organizações policiais de retomarem o controlo do território. Como tal controlo continuava nas mãos de criminosos, estes terminavam por impor as regras à localidade, fazendo com que a tarefa de disciplinar a população situada às margens do Estado fosse realizada por uma organização que nem sequer o reconhece como fonte de autoridade.

No período seguinte (1987-1991), Moreira Franco assumiria o governo do Estado, e o cel. PM Manoel Elysio a Secretaria de Polícia Militar. De acordo com os documentos produzidos durante essa gestão, a tentativa de operacionalizar modelos de aproximação da comunidade12 como modelos de racionalização e disciplina da ação policial continua a ser uma constante.

No entanto, esse é um momento bastante especial, pois, em 1988, é promulgada a Constituição Federal. No capítulo dedicado à segurança pública, a Polícia Militar passa a figurar como força auxiliar e reserva do Exército nos estados da Federação e no Distrito Federal. Nesse contexto, a sua principal função é a realização das atividades de policiamento ostensivo com vistas a garantir a preservação da ordem pública (Constituição Federal, 1988, art.º 144).

Nesse mesmo ano, a Revista da PMERJ noticía as mudanças promovidas como decorrência da ocupação “comunitária” da Rocinha. Em última instância, o que essa forma sui generis de policiamento comunitário tinha viabilizado era o exercício da soberania do Estado-nação nessa área. Isso teria garantido a possibilidade de exercício dos direitos civis, políticos e sociais por parte da população residente na localidade, conforme denota a seguinte citação:

 

Muita coisa mudou na maior favela do mundo 54 dias depois que a polícia expulsou de lá os traficantes – que ditavam ordens e impunham uma cumplicidade forçada aos 120 mil moradores. Sem esconder a sensação de alívio, os moradores da Rocinha agora se unem para formar uma grande escola de samba, comemoram a “invasão social” através de obras e trabalho para desempregados e temem que a polícia abandone o local. Com a desarticulação do bando de traficantes, eles passaram a sair de casa à noite e comerciantes reabrem as portas de casas fechadas por ordem dos bandidos. […] Depois da ocupação policial, aumentou o número de registros do que os policiais chamam de feijoada: brigas de marido e mulher e conflitos entre vizinhos em geral causados por construções irregulares. Quando os traficantes dominavam o morro, a delegacia registrava, em média, dez agressões a tiro por mês; desde o dia 1.º de junho, porém, não foi feito nenhum registro desse tipo [Revista da PMERJ, 1988, ano V, n.º 8, p. 40, itálico nosso].

 

Deste trecho se infere ainda que, uma vez garantida a soberania do Estado-nação nesse território, a segunda preocupação é com a disciplina da população que ali reside; dessa forma, a ação da polícia deu-se no sentido de registar todas as ocorrências criminais que tinham lugar na área, fazendo com que os residentes percebessem que esse tipo de conduta já não seria tolerado e, por conseguinte, seria necessário conter de modo mais efetivo os instintos violentos.

Já em artigo publicado na edição especial da Revista da PMERJ de março de 1991, o cel. Elysio afirma ter procurado constituir uma polícia eminentemente moderna e que, por isso, o eixo estruturante dos programas executados nesse período (1987-1991) foi a ideia de disciplina a ser efetivada dentro e fora da corporação:

 

Cremos ser esta a Polícia Militar que o povo fluminense quer: moderna, eficiente, preparada para suas duras missões. E ao mesmo tempo vigilante da própria corporação, da disciplina e correção de seus homens, pronta também para punir o desvio da função. Pois é assim também que nos habilitamos ao respeito da sociedade [Revista da PMERJ, 1991, ano VIII, edição especial, p. 4, itálico nosso].

 

Leonel Brizola é eleito governador para o quadriénio seguinte (1991-1995) e, ao assumir o cargo, o cel. Nazareth Cerqueira é novamente nomeado comandante-geral da PMERJ. Esse ato implicaria problemas imediatos do ponto de vista da legitimidade do novo comandante, já que vários eram os que ainda se encontravam no ativo e esperavam galgar esse posto e ainda vários entendiam que a regra tácita – uma vez comandante, para sempre aposentado da corporação – deveria ser respeitada. A nomeação do cel. Cerqueira foi até objeto de ação popular, instrumento que levou para o Judiciário a decisão acerca da legalidade do ato do recém-empossado governador. Após uma longa batalha judicial, o cel. Cerqueira é empossado como secretário de Estado de Polícia Militar.13

Logo após sua posse, no Bol. PM n.º 17, de 1.º de abril de 1991, são publicadas as diretrizes desse segundo comando, nas quais estava evidente a tentativa de aumentar a soberania nos territórios dominados por “criminosos” – entre os quais se incluíam alguns polícias – e dotar a polícia de capacidades regulamentares para disciplinar a vida dos moradores de áreas em que as organizações policiais tradicionalmente atuam.

Para tanto, duas foram as estratégias empreendidas. Primeiro, criou-se uma unidade de elite especializada na “reconquista” de territórios, cuja ação visaria a desarticulação de organizações criminosas que atuam em determinadas áreas e, dessa forma, ao exercício da soberania estatal sobre todos os que ali residem. Tratava-se do nascimento do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), a “unidade de elite” criada em março de 1991:

 

Fundamentalmente, a maioria das ações executadas pelo BOPE são [sic] de caráter repressivo, face ao preparo técnico, tático e psicológico de seus integrantes, e em quase todas essas ações ocorrem prisões de delinquentes perigosos, detenções, bem como apreensões de materiais (armamento, tóxicos etc.), o que demonstra a eficácia e eficiência desta Unidade, face à destinação constitucional da Corporação [Relatório de gestão, 1991-1994, p. 106, itálico nosso].

 

Se o BOPE garantiria a soberania em determinados territórios com a retirada de circulação dos “delinquentes perigosos” (Alto da Boa Vista e Ilha do Governador, por exemplo), a polícia comunitária viria como estratégia de estabilização da soberania. Por isso, ela seria implementada num segundo momento, com vista à prestação do serviço de policiamento ostensivo. Em última instância, conforme problematizado na secção anterior, o modelo profissional foi desenvolvido para garantir mais eficiência na prestação desse tipo de serviço. Por outro lado, com o objetivo de melhorar a imagem da polícia nessas áreas, os polícias encarregados da sua execução deveriam compreender quais eram as demandas da comunidade e, por conseguinte, realizar intervenções que tivessem como finalidade a garantia da segurança de quem residisse nessas regiões:

 

Projeto policiamento comunitário (expansão para o bairro do Alto da Boa Vista em julho de 1992) – o projeto envolve a participação ativa e consciente da Polícia Ostensiva, moradores e suas organizações, além de outros órgãos do Estado, Município, Clubes de Serviços e entidades de apoio no aprimoramento dos níveis de segurança da comunidade. Foi instituído em 1991 e integra as diretrizes do Cmt Geral, baseado no modelo existente em Nova Iorque e aperfeiçoado para a região do Rio de Janeiro [Realizações da Polícia Militar no ano de 1992, p. 1, itálico nosso].

 

A grande diferença em relação ao período anterior é que o policiamento comunitário seria empregado também em áreas nas quais a soberania do Estado-nação nunca fora questionada (era o caso da Urca, de Laranjeiras e do Leblon), sendo que, nessas localidades, o objetivo era consciencializar o polícia da sua função de prestador de serviço público e, assim, garantir a sua adesão às diretrizes e aos regulamentos publicados pela PMERJ nesse período:

 

Tendo como base o modelo existente em Nova Iorque, visa inteirar-se dos problemas criminais e outros de preservação da ordem através do permanente contato com os moradores. Inicialmente o projeto atingiu os bairros da Urca, Laranjeiras, Leblon, Alto da Boa Vista e Ilha do Governador [Realizações da Polícia Militar no ano de 1992, p. 2].

 

Em ambos os casos, o objetivo era recuperar a imagem que a polícia tinha perante a população por meio do desenvolvimento de programas de policiamento que contemplassem as especificidades locais. Contudo, em razão de “especificidades de problemas ocorridos no morro da Providência e do Pavão Pavãozinho”, foi delineada uma estratégia especial de policiamento comunitário. Mais uma vez, a proposta era retomar a soberania perdida pelo Estado nessas áreas e, em seguida, promover uma certa articulação comunitária que viabilizasse a prestação do serviço de policiamento em bases regulares e com vista à redução do sentimento de insegurança e até do temor de que a “dominação criminosa” voltasse a verificar-se nessa área:

 

Grupamento de Aplicação Prática Escolar – GAPE – março de 1992. É um grupamento constituído por 150 policiais militares preparados para a missão de prevenir a incidência de delitos e promover uma articulação comunitária forte que possibilite uma sólida defesa à dominação criminosa. Inicialmente, o trabalho será de erradicação dos problemas de segurança pública e integração com as comunidades. O trabalho vem sendo realizado no Morro da Providência (4.º BPM), nos morros do Pavão e Pavãozinho (19.º BPM). O GAPE permanece na localidade o tempo necessário para a consecução plena da missão e sua retirada ocorre somente quando o batalhão da área estiver em condições de assumir definitivamente os encargos [Realizações da Polícia Militar no ano de 1992, p. 2, itálico nosso].

 

É interessante destacar que, no caso do GAPE, a fase de “retomada do território” não era realizada pela tropa de elite da PMERJ, tal como no caso da Ilha do Governador e no Alto da Boa Vista, mas por um agrupamento “especial” da própria polícia, que permaneceria na área, “estabilizando” a situação, até que “policiais convencionais” ou “policiais do batalhão” pudessem assumir a tarefa de prestação regular do serviço de policiamento e, por conseguinte, a garantia da soberania, da disciplina e da segurança nessa área. Contudo, em ambos os casos, o policiamento comunitário era empregado com o objetivo de fazer com que as regras estatais fossem as únicas vigentes em tais localidades.

Ainda em 1992, foi criado o Batalhão Escola de Polícia Comunitária (BEPC) – Bol. PM n.º 232 (11/12/1992), o qual seria a unidade da PMERJ especializada na preparação dos polícias lotados, posteriormente, nos programas de policiamento comunitário e no GAPE. Afinal, a proposta da polícia era expandir essas iniciativas nos anos seguintes para localidades que se viam sob a “dominação criminosa” de grupos armados.

Em 1993, o GAPE foi instalado nas favelas da Mangueira, do Borel e do Andaraí (Bol. PM n.º 163 – 6/11/1993) com o objetivo de desmotivar o acesso de “viciados” aos locais de venda de drogas e, assim, desarticular o tráfico de estupefacientes, que, de certa forma, inviabilizava o exercício da soberania estatal nessas localidades. Os polícias que passariam a compor esse agrupamento eram jovens recém-graduados pela Academia de Polícia que, após estágio no BEPC, eram alocados nessas favelas para a prestação do serviço regular de policiamento. Com vista a garantir que eles não seriam cooptados para a realização de serviços outros, eram obrigados a seguir rigorosamente a rotina estabelecida na Nota de Instrução que regulava as regras e os recursos a serem observados para a prestação do serviço de policiamento ostensivo. Além disso, os polícias deveriam apresentar relatórios diários sobre a topografia da localidade e sobre a dinâmica criminosa que ainda se fazia presente mesmo após a instalação do programa.

Ao final desse governo, porém, os relatórios de gestão destacavam, mais uma vez, a incapacidade de os programas de “policiamento comunitário” garantirem a soberania do Estado-nação em áreas de favela e de viabilizarem a prestação do serviço de policiamento ostensivo a uma população que, em larga medida, ainda via a polícia com bastante suspeita em razão do período autoritário recente. Como os programas de policiamento comunitário não eram capazes de criar as bases para a sua institucionalização, depois de um tempo, as “comunidades” e até os polícias passavam a receber assédios dos traficantes de drogas e terminavam retornando ao domínio desses “perigosos delinquentes”.

Com a posse de Marcello Alencar para governador do Rio de Janeiro (1995-1999), a Polícia Militar deixou de ter o estatuto de Secretaria de Estado para ser subordinada à Secretaria de Segurança Pública, a qual passou a ser ocupada por um antigo general do Exército, que escolheu para comando da Polícia Militar um coronel bastante alinhado com as suas ideias: cel. Dorasil Castilho Corval.

Uma das primeiras providências do cel. Dorasil para garantir a soberania do Estado-nação nas áreas ocupadas por “perigosos delinquentes” foi a reedição da premiação por bravura. Esse instituto havia sido publicado originalmente no Bol. PM n.º 114, de 6 de agosto de 1982, com o objetivo de reconhecer o trabalho daqueles polícias cuja bravura tinha viabilizado a própria perenidade do regime. No contexto democrático, esse dispositivo foi transformado no Decreto n.º 21753 de novembro de 1995, que recebeu o nome de premiação por pecúnia por mérito especial ao estabelecer que aqueles polícias que, no exercício da sua atividade, tivessem demonstrado especial bravura, receberiam um aumento permanente de salário de até 150% do soldo inicial.

O problema é que o decreto não estabelecia claramente o que seria considerado “bravura”, e o significado desse termo foi-se delineando quando das primeiras promoções, que eram sempre decorrentes da morte de “perigosos bandidos” no processo de “retomada de territórios”. Tal engenharia institucional fez com que os homicídios dolosos praticados por polícias passassem a ser classificados como “autos de resistência”, visto que decorriam da resistência dos “bandidos” em obedecerem às ordens dos polícias. Em última instância, justificava-se a morte de milhares de indivíduos com o argumento de que era necessário recuperar a soberania do Estado nas áreas dominadas por “criminosos”:

 

Os confrontos armados em locais presumivelmente ocupados pelos marginais da lei foram inevitáveis e ocorreram provocados por injustas agressões sofridas por aqueles que têm o dever de proteger a sociedade [Relatório das atividades desenvolvidas na gestão do cel. PM Dorasil Castilho Corval, 1995-1998, p. 120, itálico nosso].

 

O resultado final desse processo foi o aumento da taxa de três pessoas mortas pela polícia/por mês, em 1995, para mais de vinte pessoas mortas pela polícia/por mês em 1996 (Cano, 1997). Mais do que isso, o crescimento constante das situações classificadas como autos de resistência levaram “a suspeitas de que policiais poderiam estar aproveitando esta classificação administrativa para ocultar situações em que teria havido o uso exacerbado da força, execuções ou homicídios comuns” (Misse, 2011, p. 8). Nesse contexto, a atuação da PMERJ poderia ser equiparada aos padrões de operação de uma maréchaussée, a qual lançava mão de meios violentos e ilegais na tentativa de garantir a soberania do Estado-nação em determinadas áreas da cidade. O grande problema é que, para os comandantes da própria polícia, esse era o caminho a ser percorrido para a “garantia da paz e da tranquilidade”, sentimentos que apenas seriam alcançados quando a população fosse finalmente libertada do “poder marginal”:

 

A gestão deste Comando no quadriênio 1995-1998 caracterizou-se pela ação profissional e implacável no combate à criminalidade. A Polícia Militar cumpriu rigorosamente seu papel constitucional, conforme o estabelecido pela política de segurança pública do Governo do Estado, procurando prevenir o ilícito e reprimi-lo prontamente, combatendo os nichos do poder marginal e, assim, valorizando a paz e a tranquilidade pública [Relatório das atividades desenvolvidas na gestão do cel. PM Dorasil Corval, p. 114, itálico nosso].

 

Em parte, o argumento sustenta-se, pois apenas pode existir segurança quando o Estado consegue exercer a sua soberania em todo o território. O problema decorre da constatação de que a garantia da soberania era engendrada pelo uso do mesmo poder marginal e violento que se desejava reprimir. Na história recente da PMERJ, esse é, certamente, o momento em que a organização policial mais se distancia dos pressupostos de eficiência, racionalidade e respeito pela lei que caracterizam uma polícia moderna. Ao exercer a força de forma indiscriminada sobre outros “bandidos”, os quais poderiam ser até polícias, a PMERJ tem a possibilidade de ter a sua ação efetivamente equiparada à de uma maréchaussée, para usar a denominação de Foucault (2008).

No período subsequente (1999-2003), o governador do Estado do Rio de Janeiro passa a ser Anthony Garotinho e para comandante da PMERJ é nomeado o cel. Sérgio da Cruz. Nesse primeiro momento, todas as ações empreendidas pela Secretaria de Segurança Pública e pela PMERJ visavam a contenção da letalidade da ação policial, já que o aumento exponencial dos “autos de resistência” havia resultado na ação de diversos organismos de direitos humanos pedindo providências imediatas para a reversão desse cenário. Com vista a engendrar um modelo de policiamento no qual o respeito pelas regras e os recursos prescritos nos regulamentos eram a pedra angular, foram elaborados e executados alguns programas de policiamento comunitário, sendo que o mais importante de todos foi o Mutirão pela Paz. Esse programa foi implementado na favela da Vila Pereira da Silva (Pereirão), em janeiro de 1999, e caracterizava-se pela combinação da presença contínua, porém respeitosa, da polícia com intervenções sociais que visavam o atendimento das demandas populares. É interessante destacar que, como decorrência do próprio Mutirão pela Paz, o comando-geral do BOPE se instalou nessa área (Soares, 1999), nela permanecendo até aos dias de hoje.

Em 19 de junho de 2000, em decorrência da demissão do secretário de Segurança Pública, o comandante da PMERJ também é substituído e, com isso, assume a posição o cel. Wilton Soares Ribeiro. Apesar dessa alteração, as diretrizes que emanavam da cúpula da PMERJ apontavam para o facto de que o policiamento comunitário seria o fio condutor dos programas que tinham como objetivo a retomada de territórios. Essa era, portanto, a categoria escolhida para identificar os programas de policiamento destinados a áreas de favela e executados com o propósito de restabelecimento da soberania estatal nessas regiões para posterior provimento da atividade de policiamento ostensivo, a qual, além de disciplinar os residentes na área, garantiria segurança aos que residiam no seu entorno e eram constantemente amedrontados com as disputas de criminosos pela posse do território.

No segundo semestre de 2000, foi criado o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), cujo objetivo era combater a violência urbana que tanto afligia determinadas áreas especiais “a partir da filosofia e da estratégia da Polícia Comunitária” (Carballo Blanco, 2002, p. 48):

 

A proposta a ser desenvolvida pelo Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE) prevê formas e modalidades de serviço de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública regular, combinando ações preventivas, articuladas com a comunidade, com medidas eventuais de repressão qualificada [Carballo Blanco, 2002, p. 27].

 

É interessante destacar que, nesse contexto, o termo “áreas especiais” passa a substituir a expressão “comunidade”, que foi criada em alternativa ao termo “favela”, numa tentativa de viabilizar a própria qualificação desse espaço. Ou seja, o programa de policiamento comunitário deixa de ser a categoria empregada para a identificação das modalidades de policiamento ostensivo que têm lugar em áreas de favela para significar a modalidade de policiamento que é disponibilizada para favelas com determinadas características especiais, conforme se depreende da análise do trecho a seguir:

 

Entende-se por Áreas Especiais (AE) o espaço geográfico de densa ocupação humana, onde existam elevados indicadores de violência e criminalidade, combinado com uma destacada deficiência na prestação de serviços públicos essenciais e onde também se verifica a existência de condições inadequadas para o desenvolvimento humano e comunitário, propiciando dessa forma um fértil campo para a proliferação de atividades desordeiras e criminosas, em face da pouca presença, ou até mesmo, da ausência total da ação do Estado, principalmente em termos de infraestrutura e serviços [Carballo Blanco, 2002, p. 29].

 

Com base no diagnóstico de que a favela, ou a “comunidade”, é a área de onde provém a violência da cidade, ela torna-se “especial”, uma área especial, porque de desordem, porque irregular, porque ilegal. Contudo, mesmo as áreas especiais podem ter gradações de maior ou menor especialidade, sendo que o GPAE apenas seria o mecanismo adequado para aquelas localidades que atendessem a esses requisitos.

Em 9 de abril de 2002, uma nova crise na segurança pública leva à troca do comando da PMERJ e, com isso, o cargo máximo da corporação passa a ser ocupado pelo cel. Francisco José Braz. Nesse último ano de governo, o policiamento comunitário consolida-se como categoria que identifica o serviço de policiamento que tem como objetivo principal promover o controlo social das favelas, diagnosticadas como as áreas da desordem onde atuam as redes criminosas. É o policiamento comunitário a única modalidade de prestação do serviço de polícia que viabiliza, em última instância, a institucionalização da soberania estatal em áreas anteriormente ocupadas por criminosos e, num segundo momento, a disciplina da população, uma vez que, com a repreensão das condutas desviantes, os residentes dessas áreas são forçados a desenvolver padrões mais elevados de autocontrolo. O resultado final desta equação seria a redução de crimes, já que as disputas entre criminosos deixariam de ocorrer, em resultado da presença constante da polícia, que viria a garantir a soberania estatal na área. Além disso, em decorrência do aumento da disciplina que a presença constante da polícia implica, as resoluções interpessoais de conflito violentas deixariam de acontecer e, assim, os indivíduos passariam a sentir-se mais seguros,14 pois estariam protegidos pela presença constante da polícia (Carballo Blanco, 2002, p. 48).

Rosinha Garotinho foi a governadora eleita para o período subsequente (2003-2007) e, por isso, nomeou como comandante-geral da PMERJ o cel. Renato Silva Hottz. De maneira geral, Hottz deu continuidade à experiência do GPAE institucionalizando-o por meio da publicação da Resolução SSP n.º 695, que criava formalmente o GPAE e o respetivo Comando Intermediário, o Comando de Policiamento em Áreas Especiais (CPAE). Em razão de problemas na cúpula da Secretaria de Segurança Pública, em 29 de julho de 2004 o comando da PMERJ volta a trocar de mãos, passando para a responsabilidade do cel. Hudson de Aguiar Miranda, que permanece até ao final do mandato.

Durante esse período, há uma considerável expansão do GPAE, sendo inauguradas cinco outras unidades desse género, que passaram a estar incumbidas da retomada de territórios e posterior implementação do serviço de policiamento ostensivo nas seguintes áreas: Providência, Formiga/Casa Branca/ /Chácara do Céu, Morro do Cavalão/Morro do Estado, Vila Cruzeiro e Rio das Pedras. Após essa expansão do GPAE para áreas tão diversas, a categoria policiamento comunitário deixou de poder ser dissociada da ideia de provisão de serviço de policiamento ostensivo em áreas de favelas. O resultado benéfico da implementação do “modelo” nessas “áreas especiais” era a redução imediata do crime, assim como o aumento do sentimento de segurança, externalidades que, durante muitos anos, foram as principais razões para a expansão do próprio programa (Albernaz, Caruso e Patrício, 2007).

Sérgio Cabral foi o governador eleito para o período seguinte (2007-2011). Uma das suas primeiras providências foi a nomeação do comandante do CPAE para o cargo de comandante-geral da PMERJ. A mensagem passada com essa progressão sui generis do cel. Ubiratan de Oliveira Ângelo era a importância que o governo do Estado concedia às políticas, programas e ações que visassem o controlo sobre territórios nos quais o Estado-nação há muito não era capaz de exercer a sua soberania.

A primeira providência do recém-empossado comandante foi a elaboração de um Plano Estratégico que guiaria as políticas para a PMERJ no período de 2008 a 2011. Nesse documento, o problema da segurança pública é diagnosticado da seguinte forma:

 

Nesse sentido, a violência e a criminalidade no Brasil, associadas à dinâmica do tráfico de drogas, têm território específico, idade, sexo e cor. Ocorre nas favelas, nos conglomerados urbanos e na periferia desses espaços geográficos, seus principais algozes e vítimas são jovens do sexo masculino, com idade compreendida entre 13 e 24 anos, na sua maioria negros [Plano Estratégico 2008-2011, pp. 8-9, itálico nosso].

 

Para a resolução desses problemas, o Plano Estratégico propunha a expansão dos GPAE para as comunidades diagnosticadas como de alto risco e, para aquelas cuja periculosidade ultrapassasse esse limite, a implementação do policiamento comunitário ocorreria por meio do desenvolvimento de ações táticas integradas entre BOPE e GPAE. A ideia era a de que o BOPE entrasse na parte de recuperação do território e, assim, uma vez restabelecida a soberania estatal na área, o GPAE passaria a ocupá-la de forma permanente, prestando os serviços de polícia ostensiva tais como previstos nos regulamentos profissionais, mas com uma preocupação de aproximação à comunidade a fim de aumentar o sentimento de segurança.

Apesar das semelhanças entre esta proposta (de articulação entre BOPE e GPAE para a retomada de territórios mais que especiais) e a que mais tarde se convencionou chamar de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o facto é que, após uma crise entre o governador do Estado e o comandante da PMERJ, em 30 de janeiro de 2008, esse cargo passou para as mãos do cel. PM Gilson Pita Gomes.

Em 20 de novembro de 2008, um problema na favela Santa Marta levou ao nascimento de outro programa de policiamento comunitário. Um grupo de criminosos havia-se apoderado de um prédio público construído para a instalação de uma creche e feito dele o seu quartel-general, amedrontando a população com as constantes trocas de tiros com outros grupos que também atuavam nessa área. Diante das externalidades provocadas por essas disputas, a PMERJ decide intervir e permanecer na região com o objetivo de diminuir a troca de tiros e, assim, reduzir o temor da população que residia dentro e fora da favela. A presença constante dos polícias na localidade, por sua vez, começa a produzir uma série de externalidades positivas que contribuem para a continuidade do policiamento. Tal como sucedera na primeira experiência do GPAE, os homicídios tinham decrescido, a população sentia-se mais segura e, por conseguinte, mais afeita à aproximação com a própria organização policial.

Dentre os principais documentos produzidos durante esse comando com o propósito de regular quais seriam as regras e os recursos passíveis de serem engendrados na rotina diária das UPP com base nos problemas e nas questões verificadas na favela Santa Marta, destacam-se os seguintes:

 

1.    Decreto-lei n.º 41 650 de 21 de janeiro de 2009: cria a Unidade de Polícia Pacificadora dentro da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

2.    Decreto-lei n.º 41 653 de 22 de janeiro de 2009: determina o pagamento de uma gratificação de R$ 500,00 mensais para todos os policiais lotados nas UPP.

3.    Nota n.º 202 do Boletim da Polícia Militar de 5 de fevereiro de 2009: insere a UPP do morro de Santa Marta dentro da Coordenadoria de Assuntos Especiais, que era a responsável pela coordenação dos GPAE, que, nesse momento, coexistiam com as UPP.

 

Em março de 2009, em razão de problemas semelhantes aos que determinaram a intervenção na favela Santa Marta, são ocupadas as favelas do Batan, Cidade de Deus e Chapéu Mangueira. Nesses três casos, a ocupação das localidades com vista à retomada da soberania estatal já era identificada pelo nome de código “Unidade de Polícia Pacificadora”. Os objetivos dessas iniciativas também passaram a ser veiculados em toda a imprensa de forma mais clara como retomada de territórios ocupados pelo “poder armado do tráfico”, mas havia pouca ou nenhuma menção ao que seria feito após essa “reconquista” pela PMERJ.

Ressalvas dessa natureza apenas começam a compor o discurso político na segunda metade de 2009, quando ocorre uma nova mudança de comando na PMERJ, com assunção, em 9 de junho de 2009, do cel. Mário Sérgio de Brito Duarte ao cargo mais alto da corporação. Desde então, é crescente a preocupação com a melhor coordenação do programa – dada pela criação, em julho de 2010, do Comando de Polícia Pacificadora – e com a sua própria expansão, fenómeno que leva à substituição de GPAE por UPP em localidades como Pavão Pavãozinho, Providência, Formiga, Casa Branca e Chácara do Céu.

No final de 2010, Sérgio Cabral é reconduzido no governo do Estado do Rio de Janeiro e o cel. Mário Sérgio de Brito Duarte permanece à frente do comando da PMERJ. Nesse momento, a preocupação do comando passa a ser com a profissionalização dos polícias que atuariam nessas áreas, os quais seriam exclusivamente recrutas, formados especialmente para essa finalidade e cujas regras e procedimentos seriam minimamente regulamentados pela promulgação de uma espécie de Código de Conduta especial para a atuação nessa área. O Decreto-lei n.º 42 787 de janeiro de 2011 é um marco nesse sentido, por ser o primeiro que procura detalhar a estrutura, os objetivos e a organização das UPP como programa de policiamento comunitário.

De acordo com Cano (2012, p. 18), se a produção legislativa da polícia e do governo do Estado para o período 2009-2011 é levada em consideração, constata-se que “o projeto das UPP avançou de forma experimental e pragmática, sem responder a um plano previamente desenhado”. Afinal, dois anos depois do seu nascimento no Santa Marta, os polícias não tinham ainda regulamentos que estabelecessem claramente quais eram as balizas a serem consideradas para a sua ação como atividade profissional que visa a provisão de serviços de policiamento.

E quais seriam os pilares sobre os quais se sustenta a prática das UPP? Primeiro, tem-se o facto de que as UPP, assim como o CIPOC, o GAPE e o GPAE, também são destinadas a localidades que necessitam de ser “conquistadas” ou demarcadas do ponto de vista da soberania estatal, como se depreende do § 2.º do art.º 1.º do Decreto-lei n.º 42 787/2011, que aponta como objetivos da UPP os seguintes:

 

a) consolidar o controle estatal sobre comunidades sob forte influência da criminalidade ostensivamente armada; b) devolver à população local a paz e a tranquilidade públicas necessárias ao exercício da cidadania plena que garanta o desenvolvimento tanto social quanto econômico.

 

Por outro lado, tal como diversas avaliações têm demonstrado (CESeC, 2011 e 2012), os polícias que atuam nessas áreas passam a desempenhar uma atividade eminentemente disciplinadora, normalizando a vida da população que ali reside em detalhes, determinando desde o horário para a realização de festas até à arbitragem de conflitos eminentemente domésticos.

É sabido que o estabelecimento a priori das regras e dos recursos a serem mobilizados para a prestação do serviço de policiamento faz com que dificilmente este possa ser qualificado de “comunitário” no sentido estrito do termo. Isto porque, se os residentes nessas áreas não participam do estabelecimento do programa de ação a ser engendrado apontando as causas dos problemas prioritários dessas localidades e as situações que causam mais sentimento de insegurança, não se pode qualificar o modelo de policiamento executado como comunitário. Se os residentes nas áreas policiadas não são chamados a opinar quando do desenho das estratégias de intervenção policial, e menos ainda podem realizar as atividades de monitorização e avaliação da ação policial, o serviço prestado continua a ser de policiamento, mas não pode ser qualificado de comunitário.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A proposta neste artigo foi reconstituir a trajetória dos programas de policiamento comunitário já implementados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) ao longo do período democrático (1983-2012) e, assim, verificar em que medida iniciativas desse género poderiam (ou não) encaixar-se no conceito de “comunitário” tal como proposto pela literatura.

Para se compreender como surge do ponto de vista sociológico a categoria “policiamento comunitário”, recontou-se a história das organizações policiais. Com isso, foi possível constatar que as três principais funções da polícia (institucionalização da soberania estatal sobre o território, disciplina dos cidadãos e garantia da segurança) vão sendo progressivamente construídas no tempo como forma de responder a demandas que eram crescentemente apresentadas pelo cidadão. Com o tempo, a polícia vai deixando de ser uma agência que executa funções de Estado para se constituir numa agência prestadora de serviços públicos; por isso, a sua legitimidade deixa de derivar dos regulamentos apenas para estar adstrita à avaliação que os usuários do serviço fazem do seu comportamento. Essa mudança de perspetiva faz com que a constituição de uma organização policial moderna na contemporaneidade venha a significar a emergência de uma instituição burocrática (no sentido mais estrito do termo) cuja eficiência consiste em prover, simultaneamente, soberania, disciplina e segurança.

Compreender a história da polícia significa ainda compreender a história dos programas de policiamento que foram engendrados por ela para alcançar esses três objetivos que se constituíram ao longo do tempo. Desse modo, para efetivar a soberania do Estado sobre um determinado território, a polícia lança mão da violência física, incapacitando de forma permanente todos aqueles que contestavam a autoridade estatal e, por conseguinte, poderiam inviabilizar o domínio do território. Já na tentativa de efetivar a disciplina dos cidadãos, a polícia recorre ao modelo profissional que constrange a discricionariedade e a racionalidade do polícia a regras e recursos previamente disciplinados por um superior hierárquico. Ao restringir a flexibilidade e a própria reflexividade de como o policiamento deveria ser implementado, esperava-se apresentar aos cidadãos policiados um modelo de indivíduo disciplinado e, assim, o propósito de tais constrições era, em última instância, viabilizar a aprendizagem de padrões mais elevados de autocontrolo por meio do exemplo do próprio polícia. Por fim, na tentativa de se institucionalizar o sentimento de segurança, o modelo profissional é flexibilizado para que os polícias possam compreender as especificidades de cada localidade policiada em termos de dinâmica de crimes e de fenómenos que causam sentimento de insegurança. Com isso, na prestação do serviço de policiamento, o polícia deixa de ser o protagonista para ser um coprodutor do serviço, levando à emergência do que se denominou “modelo de policiamento comunitário”.

Ao rever a história dos modelos de policiamento, constata-se, portanto, que o policiamento comunitário seria o ponto de chegada de um processo de amadurecimento institucional que não apenas complexifica as funções a serem efetivadas por essa organização burocrática, como a torna mais próxima do ideal de instituição moderna – entendida como tal aquela que procura organizar as suas regras e procedimentos a fim de alcançar com mais eficiência e racionalidade os objetivos pretendidos. Contudo, quando a trajetória dos programas de policiamento comunitário implementados na cidade do Rio de Janeiro é revista, o cenário que emerge é bastante distinto.

O policiamento comunitário é trazido para o Brasil no momento de reabertura democrática, quando o debate sobre como reformar as polícias militares – forças auxiliares do Exército – começa a emergir. No entanto, as apropriações que o termo passa aqui a ter são muito diferenciadas daquelas apresentadas pela literatura: um modelo de reforma da polícia que visa à descentralização, à aproximação comunitária e à solução dos problemas que causam insegurança na população.

Em parte, isso parece ocorrer porque a categoria “policiamento comunitário” vai sendo progressivamente apropriada para identificar iniciativas que têm como objetivo maior o estabelecimento da soberania estatal em áreas que se encontravam sob o domínio do “poder paralelo” exercido por “perigosos delinquentes”, ou seja, nas favelas. Uma das hipóteses lançadas para essa coincidência progressiva no tempo – de policiamento comunitário significando policiamento em favelas nas quais a soberania do Estado se encontra em xeque – é o facto de que, desde a década de 1980, a palavra “comunidade” passa a ser empregada como eufemismo para a identificação do espaço da “favela”. Num contexto como esse, o policiamento “comunitário” passa a ser visto como a metodologia mais adequada para a operacionalização do policiamento “em favelas”.

Contudo, essa coincidência dos termos apresenta novos distanciamentos entre o significado da categoria na literatura internacional e na realidade do contexto da cidade do Rio de Janeiro. Como o policiamento comunitário passa a designar as experiências que tinham como objetivo a retomada de territórios antes dominados pelo tráfico, passa a significar uma modalidade de policiamento cujo fim maior não é a garantia da segurança pela coprodução do serviço policial, mas sim o estabelecimento da soberania do Estado nessas áreas, missão cuja execução, muitas vezes, requere o uso da violência em detrimento da arte da conversa com os cidadãos mais resistentes.

Uma vez estabelecida a soberania estatal nas áreas de favela (ou nas comunidades), a função da polícia passa a ser disciplinar os indivíduos que residem nesse território, fazendo com que eles apresentem o padrão de comportamento desejado como característico daquela localidade. Nesse contexto, a função da polícia passa a ser reprimir os errantes, mostrando a toda a população que tipo de conduta deve ser adotado. Assim, a polícia passa a constituir-se como engrenagem principal de viabilização do processo civilizador. No entanto, para que a polícia não decida inverter a ordem e “autocoroar-se” soberana ilegítima de dado território, são elaborados diversos manuais que procuram circunscrever quais as regras e os recursos ao dispor dos polícias para a execução das atividades de policiamento.

No entanto, as experiências aqui analisadas mostram certa reticência ou incapacidade de se alcançar essa fase. Em parte, isso parece ocorrer porque os programas de policiamento comunitário executados ao longo do tempo falham na missão de garantia da soberania. Assim, estes programas terminam descontinuados depois de um tempo em razão da volta do “poder armado” dos “bandidos”, muitas vezes decorrente da própria cooptação dos polícias empregados nessa modalidade de policiamento. Contudo, como não pode existir Estado sem soberania em todo o território, essas margens continuam a integrar a agenda de preocupação das polícias e, dessa forma, de tempos a tempos, são implementados novos programas de policiamento comunitário com vista a reintegrar esses espaços e, por conseguinte, os seus cidadãos à soberania do Estado-nação.

Um ponto que merece ser destacado, do ponto de vista da sociologia das organizações, é que a PMERJ parece compreender, com o passar do tempo, quais foram os pontos que inviabilizaram o exercício duradouro da soberania estatal nas áreas de favela e, assim, os programas de policiamento comunitário vão-se aperfeiçoando no tempo do ponto de vista da institucionalização desse objetivo.

Nesse contexto, a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que é o programa de policiamento comunitário atualmente em curso, parece indicar que se começam a constituir as bases de uma organização moderna. Primeiro, porque a soberania parece ser efetivamente um dado em áreas como a favela Santa Marta, onde a experiência já dura há cinco anos. Segundo, porque, uma vez “reconquistado o território”, há uma efetiva preocupação com a disciplina dos polícias, de tal maneira que eles não terminem cooptados pelos “perigosos delinquentes” e acabem por ser uma ameaça à missão de garantia da soberania pela qual são responsáveis. Exatamente por isso, argumenta-se que a história dos programas de policiamento comunitário empreendidos pela PMERJ é, na verdade, a história da institucionalização do modelo de policiamento profissional cuja institucionalização parece lançar as bases para o nasci- mento de uma polícia moderna, no sentido sociológico que essa categoria possui.

É claro que o Centro Integrado de Policiamento Comunitário (CIPOC), o Grupamento de Aplicação Prática Escolar (GAPE) e o Grupamento de Policiamento em Áreas Policiais (GPAE) contaram com certa produção legislativa, mas que estava muito mais centrada na definição de quais seriam os objetivos do programa – reconquista da soberania seguida de prestação de serviços de policiamento ostensivo como forma de disciplinar a vida nessas comunidades – do que no controlo dos tempos e movimentos dos polícias, que deveriam dar o exemplo de como esse processo civilizador poderia levar a mais autocontrolo do próprio indivíduo. Então, as UPP inaugurariam uma nova fase nessa história por criarem as raízes para a institucionalização do modelo de policiamento profissional para essas áreas. Assim, essas unidades avançariam na constituição de uma polícia mais profissional e, por conseguinte, menos violenta e menos arbitrária, características que sempre impediram que a PMERJ fosse rotulada como efetivamente moderna.

 

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Recebido a 04-09-2012. Aceite para publicação a 22-04-2013

 

1 Este texto foi desenvolvido no âmbito do projeto “Policiamento comunitário: uma análise sócio-histórica dos projetos desse gênero empreendidos pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro no período democrático (1983-2011)”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do auxílio 474393/2011-9, resultante do Edital Universal 14/2011. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada ao GT Sociologia da Moral na XXVI Reunião anual da ANPOCS. Agradeço aos organizadores da sessão – Alexandre Werneck e Luiz Roberto Cardoso de Oliveira – pelos valiosos comentários que tanto contribuíram para a versão final do texto, apresentada no atual formato.

2 Referência às mortes de civis por policiais, tornadas legítimas pela “gratificação faroeste”, que contribuiu para que a cidade do Rio de Janeiro fosse ainda mais dividida. Afinal, de um lado estariam os moradores das favelas, que são tomados como ilegais ou perigosos oficiais e, por isso, não só podem como devem ser executados pela polícia para a garantia da segurança do outro lado da cidade, composto de uma população “formal”, gradeada, blindada quando possível, desejosa de proteção, alarmada pelos media e pela criminalidade concreta (Câmara, 2009).

3 V. Cano e Duarte (2012) sobre a atuação ilegal dos policiais em áreas de favela do Rio de Janeiro no âmbito de organizações denominadas milícias.

4 O cel. Nazareth Cerqueira foi, segundo Beato (2001), o responsável pela chegada da categoria “policiamento comunitário” ao Brasil. Foi também comandante da PMERJ em dois períodos distintos (1983-1987; 1992-1995).

5 Tal como destacado por Sztompka (2005), a eficiência é um dos correlatos da própria ideia de modernidade que passa a constituir a ossatura ideológica e normativa dos Estados-nação a partir dos séculos XVIII e XIX.

6 No sentido que Gramsci atribui a esse termo.

7 Tal como destacado por Albernaz, Caruso e Patrício (2007), a parceria entre academia e polícia, no caso do Rio de Janeiro, foi sempre um elemento importante para a tentativa de institucionalização de projetos dessa natureza.

8 Estas entrevistas encontram-se em fase de processamento pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV), instituição à qual pertencem algumas colaboradoras deste projeto.

9 O cel. Cerqueira foi assassinado em 14 de setembro de 1999. Na época, a explicação para o crime foi a de que um sargento com problemas psiquiátricos o teria assassinado como forma de se vingar de um concurso para o qual ele estava inscrito, e que o cel. Cerqueira havia anulado por suspeitas de fraude. Para alguns entrevistados, trata-se de uma morte ainda não esclarecida.

10 Disponível no arquivo do cel. Cerqueira.

11 O 18.º Batalhão de Polícia engloba os bairros cariocas de Jacarepaguá, Pechincha, Freguesia, Tanque, Vila Valqueire, Taquara, Curicica, Cidade de Deus, Anil e Gardênia Azul.

12 Como o Community Patrol Officer Program (CPOP), implementado pela polícia de Nova Iorque com a assessoria do Vera Institute of Justice.

13 O argumento vencedor foi o de que o cargo era de secretário de Polícia Militar e, por conseguinte, comandante da PMERJ, mas que a primeira posição tinha ascendência sobre a segunda e, por isso, não se sujeitava aos regulamentos policiais.

14 Podemos perceber como a pobreza e a residência em locais de pobreza são tomadas como fatores de risco social.

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