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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Uma nova crise da universidade em Portugal?1

 

Diogo Ramada Curto*

*FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna, 26-C — 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: dcur@fcsh.unl.pt

 

Duas ordens de motivos colocaram os problemas universitários na primeira linha dos que mais ocupam, presentemente, a atenção dos governantes num grande número de países. Por um lado, os movimentos estudantis despertam sérias preocupações de índole política. Por outro, tomou-se consciência de que as universidades tradicionais se revelam frequentemente incapazes de formar, na quantidade e com as habilitações necessárias, os quadros científicos e técnicos indispensáveis ao desenvolvimento económico, social e cultural [Guerra e Sedas Nunes, 1969, p. 5]

 

 

Foi com estas palavras que Miller Guerra e Sedas Nunes começaram a traçar o diagnóstico da crise da universidade, em 1969. Volvido quase meio século, os termos em que se coloca a nova crise da universidade são bem distintos. Os movimentos estudantis desapareceram. Na sua última aparição, foram reduzidos à luta cega contra as propinas. Depois disso, deram lugar a grupos empenhados em cumprir rituais de inclusão guiados por uma série de tradições inventadas, promotoras de uma espécie de apolitização – bem de acordo, aliás, com a pobreza ideológica da maior parte das juventudes partidárias. Por sua vez, ninguém se pode hoje queixar de uma inexistência – em quantidade e diversidade – de possibilidades de formação universitária. Também se poderá dizer que as críticas feitas, neste momento, à universidade muito dificilmente recorrem a argumentos tais como o da “premente política de democratização do ensino”, como sucedia em 1970, numa moção recusada pela Assembleia Nacional (Nunes, 1970, pp. 195-196). Tudo isto apesar de se continuar a fazer sentir a reprodução social e o elitismo no recrutamento de uma população universitária.

Não foi só na sequência do Maio de 1968 que o Estado Novo se debateu com uma crise da universidade. A “greve académica” de 1962 constituiu um outro episódio desse processo em que universidades e poder político foram postos em causa. E existem muitos outros momentos em que se intensificaram as denúncias ao estado da universidade. Em 1947, por exemplo, Vitorino Magalhães Godinho nomeou muitos dos que, mau grado a qualidade das suas investigações, não eram aproveitados e reconhecidos pelas universidades portuguesas. A lista incluía, entre os historiadores, Jaime e Armando Cortesão, bem como Veiga Simões e, entre os cientistas, constavam os nomes de Aniceto Monteiro, Aurélio Quintanilha e Abel Salazar. Porquê? Precisamente porque

 

As Faculdades vivem fossilizadas na sebenta e na rotina, dormindo à sombra da falta de fiscalização, incapazes de criarem ciência e de formarem gerações, comprazendo-se na adulação e na mediocridade sossegada, enquanto cá fora a humanidade segue novos rumos e as massas sãs vivem angústias e problemas fundamente humanos que a Universidade ignora [Godinho, 1947, pp. 13-14].

 

Apesar de ser evidente a distância entre o modo como era pensada a universidade há meio século e os nossos dias, ontem como hoje, a questão da universidade tem de ser vista essencialmente como um “problema político”. Pouco adianta que os mais irresponsáveis mostrem apego por um discurso da autonomia universitária de circunstância, quando não existem ou sejam simplesmente estrangulados os recursos destinados a fazer funcionar a universidade. Tão pouco será possível confundir alhos com bugalhos e ­decretar que a viabilidade económica da instituição universitária consiste na sua capacidade para servir os interesses imediatos das empresas ou do mercado, em detrimento de investigações científicas de base, ou em domínios considerados a justo título fundamentais, sem aplicações de caráter prático. A universidade depende de tomadas de decisão aos mais diferentes níveis e suscita formas de responsabilização por parte de quem a dirige e nela participa. Esta simples constatação pretende denunciar os que tentam naturalizar escolhas políticas, mais ou menos arbitrárias, dadas como inevitáveis por meros critérios de técnica e de gestão. Pôr o dedo na ferida exige a consideração de três domínios principais, sobre os quais pesam – e de que maneira – as decisões políticas.

 

1. O primeiro desses domínios respeita o financiamento da universidade. A principal questão que aqui se coloca não está tanto em repetir que “em terra onde não há pão…”, mas em definir escolhas e prioridades. É que paira sobre a universidade a ameaça de que o financiamento público pode passar a ser considerado excecional nas rubricas do orçamento de Estado. A pretexto da autonomia, a universidade vê-se empurrada para uma situação onde tem de criar as suas próprias fontes de financiamento e enveredar por técnicas de gestão que a coloquem num mercado – precisamente num momento em que organizações privadas e de crédito se preparam para transferir para o ensino superior as técnicas já utilizadas na crescente privatização da saúde. Em suma, o alargamento do ensino privado vai ajudar a excecionalizar o setor público, mas aos privados só interessarão as partes deste último que se afigurem rentáveis no imediato. E, se o ensino universitário depende sempre e em absoluto da investigação – e da figura do professor investigador – tornar rentáveis as áreas de maior elaboração teórica, de investigação fundamental, pura, não se afigura possível. Por todas estas razões, é urgente perceber quem pode defender o financiamento público da universidade, só possível de ser justificado à luz dos critérios do serviço público e de criação de uma sociedade mais justa e igualitária.

Tal como se apresenta, neste momento, a redução do investimento público à escala da FCT e a reorientação de fundos dos indivíduos para as instituições (centros de investigação; escolas doutorais, etc.) são duas medidas que correm o risco de produzir efeitos combinados e dramáticos: regresso e reforço do clientelismo e das hierarquias prevalecentes, afunilamento dos temas e perspetivas de investigação, redução da autonomia intelectual (não a outra autonomia, que parece ser para muitos a autonomia da clientela e da gestão autónoma dos bens públicos…). Mais, a redução do financiamento e a “abertura” da universidade pública ao financiamento da “sociedade civil” está a gerar ­distorções inaceitáveis: a progressão da carreira no interior de instituições já se mede pela capacidade de trazer fundos para o seu interior, mais do que pelo trabalho intelectual, a “internacionalização”, etc.

 

2. No segundo desses domínios de política universitária, a transferência da responsabilidade deixa de estar fora – à escala do Estado ou das políticas governamentais – para passar a estar situada dentro da própria universidade. Há aqui duas questões, bem interligadas, que importaria resolver, isto é, sobre as quais importa decidir. A primeira é uma questão de autoridade: quem deverá detê-la e como é que o seu poder é inspecionado e controlado?
Em Portugal, a falta de sedimentação institucional da universidade, associada a uma dispersão de órgãos de representação e de direção – criados na sequência de 1974 –, deu lugar, mais recentemente, a modelos de gestão totalmente centralizados, os quais foram apropriados por professores administradores. Um dos indicadores mais dramáticos desta mudança consiste no peso que passou a adquirir a figura do professor administrador, em detrimento da do professor investigador. Ao poder daquele contraponho a autoridade deste. O resultado prático desta situação – favorecida pela existência de hierarquias onde cada patamar parece funcionar autonomamente – é terem sido criadas as condições necessárias para o exercício de poderes arbitrários. Que tais poderes podem ser justificados à luz de uma qualquer defesa das tradições universitárias, investidos de uma gravitas superficial, ou à luz dos já referidos critérios de gestão eficaz, pouca diferença faz. Cada vez mais, quem detém o poder efetivo tende a isolar-se na sua insegurança, para deixar de ter qualquer tipo de autoridade reconhecida pelos pares. A última constatação leva à formulação da segunda questão relativa ao funcionamento da universidade.

Em órgãos colegiais, tais como as universidades, o acentuar das hierarquias por parte de professores administradores, com pouca ou nenhuma autoridade científica, põe em causa a existência de uma ordem meritocrática. Só em universidades disfuncionais os falsos apelos à solidariedade institucional, em nome da tradição, ou os critérios de eficácia de gestão podem suplantar o reconhecimento colegial e democrático do mérito científico. Claro que esta última denúncia é fácil de formular no papel, mas difícil de resolver. O peso sórdido das rotinas em que se instalaram as hierarquias que carecem de um reconhecimento, logo, de uma autoridade, é enorme. Mais, a atitude que melhor caracteriza a figura do professor administrador – que exibe o seu poder do alto de uma hierarquia que pretende consolidada – é a de deixar uma porta aberta do tamanho de um buraco de uma agulha, por onde só podem entrar os que nunca ponham em causa o seu poder e que exibam certificado de pertença à sua própria clientela.

Assim, para restaurar a autoridade dentro da universidade não será urgente repor a colegialidade, a democracia, um sistema que implique o reconhecimento entre pares? Não será por acaso que, em sistemas universitários seguramente mais avançados que o nosso, as hierarquias existentes estão escoradas no mérito científico e na autoridade reconhecida pelos pares, enquanto os poderes administrativos e as competências de gestão fazem parte de uma outra carreira.

Tal como se apresenta, neste momento, a disfuncionalidade das universidades suscita, pelo menos, dois aspetos perniciosos. Por um lado, as universidades e os centros de investigação correm o risco de se transformar em espaços de colocação de representantes de interesses extra-académicos (políticos, partidários, de classe, e outros…). Por outro lado, a investigação, tendo este tipo de estímulos, cairá, ainda mais, numa razão prática orientada para a satisfação desses mesmos interesses, gerando distorções perigosíssimas. A “ciência” corre o risco de passar a servir de mero instrumento legitimador de grupos e agendas não-científicos, estas últimas avaliadas não pelos pares mas pelos professores-administradores e pelos seus contactos extra-académicos.

 

3. Um terceiro e último domínio implica uma formulação mais arrevesada e está relacionado com a liberdade e com a necessária participação de todos no debate público. Os recentes acontecimentos de estrangulamento do financiamento de uma nova geração de investigadores por parte da Fundação para a Ciência e Tecnologia suscitaram uma onda generalizada de protestos dentro da universidade, mas não deixaram de contar com o apoio passivo ou com a conivência de muitos professores universitários – interessados em servir-se da FCT nas suas estratégias de exercício de um poder clientelar. Círculos de opinião pública menos informados acerca do ensino e da investigação universitários tomaram conhecimento do referido estrangulamento como se fosse uma questão pontual de bolsas ou de bolseiros que pretendem sentar-se à mesa do orçamento – um devaneio ou um despesismo imposto ao Estado que tem a todo o custo que emagrecer para libertar o mercado e deixar de cobrar tantos impostos a contribuintes já estafados. Uma tal cantilena inventada por uns quantos, defensores de um liberalismo de vulgata, merece ser mais assobiada ou objeto de escárnio do que tratada como uma crítica séria. É neste quadro, em que convergem professores administradores e FCT, liberais avessos ao despesismo de Estado e uma opinião pública de contribuintes mal informados acerca da universidade, que urge perguntar: porque não se revoltam as mais novas gerações de investigadores e cientistas, com uma formação de excelência e um nível de internacionalização tão promissores? Será porque as condições que instauraram uma apatia da indignação só encontram a sua ­resposta em comportamentos cada vez mais recorrentes, tais como: a emigração; o medo criado pelas hierarquias de uma suposta autonomia universitária, glorificadora de professores administradores incapazes de recrutar os melhores jovens investigadores; o cansaço, a paredes meias com a depressão pela falta de reconhecimento; ou o silêncio reprimido por falsas promessas de que é preciso aguentar?

De qualquer modo, é um facto que os custos da dissensão aumentaram drasticamente. A falta de transparência nos arranjos institucionais e nas promoções nas instituições, a perceção de que o que conta está fora do alcance de qualquer estratégia intelectual, o reconhecimento da impunidade do comportamento de certos indivíduos, a tomada de consciência da recorrência de falsas promessas, a descrença no futuro e o desprezo, quase nojo, pela situação não são motivos suficientes para contestação…

Os três domínios acabados de enunciar não esgotam o diagnóstico acerca da crise da universidade em Portugal. Porém, através da sua enunciação o que se pretende é ilustrar um modo de compreender e fazer compreender aos outros que a natureza política do debate que enfrentamos implica tanto meios de diagnóstico como a coragem para escolher os mais apropriados instrumentos de combate aos bloqueios que põem em causa a universidade portuguesa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GODINHO, V.M. (1947), Comemorações e História (A Descoberta da Guiné), Lisboa, Cadernos da Seara Nova.         [ Links ]

GUERRA, J.P.M., Sedas Nunes, A. (1969), “A crise da universidade em Portugal: reflexões e sugestões. Análise social, VII, 25-26, pp. 5-49.         [ Links ]

SEDAS NUNES, A. (1970), O Problema Político da Universidade, Lisboa, Publicações Dom Quixote.         [ Links ]

 

NOTAS

1 O autor lançou e contribuiu para o debate recente sobre a situação do ensino e da investigação universitária nas páginas do diário Público: “O Inverno da investigação”, 30-12-2013; (com António Costa Pinto e Manuel Sobrinho Simões), “Carta aberta ao Senhor ministro da Educação e Ciência”, 19-01-2014; “A questão do financiamento das universidades”, 10-02-2014.

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