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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.209 Lisboa dez. 2013

 

As metamorfoses de um movimento social: Mães de vítimas de violência no Brasil1

The metamorphosis of a social movement: Mothers of victims of violence in Brazil

 

Jurema Brites* e Cláudia Fonseca**

*Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. E-mail: juremagbrites@gmail.com

**Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: claudialwfonseca@gmail.com

 

RESUMO

Neste artigo, descrevemos as negociações que acompanharam a transformação de um movimento social brasileiro (o das vítimas de violência urbana – particularmente o “Movimento das Mães”) em política pública do Ministério de Justiça durante os anos de 2007 a 2009. Tomamos como foco a perspetiva das “mães” que participaram desse processo – mulheres cujos filhos tinham sido mortos ou haviam “desaparecido”. Descrever a experiência deste movimento, a relação dessas mulheres com os seus aliados políticos e as organizações da sociedade civil, e a posterior transformação das reivindicações do movimento em política de Estado, lança luz sobre a história dos movimentos de vítimas no Brasil, com destaque especial para o entrecruzamento entre género, violência e classe social.

Palavras-chave: vítimas; género; classe social; violência urbana; movimentos sociais.

 

ABSTRACT

In this article, we describe the negotiations that accompanied the transformation of a Brazilian social movement (victims of urban violence – in particular, the Movement of Mothers) into a public policy of the Minister of Justice between 2007 and 2009. Our focus is on the perspective of the “mothers” who participated in this process – women whose children had been killed or “disappeared”. The description of the this movement – the relation of the women with their political allies and various organizations of civil society, and the ultimate carry-over of the movement’s demands into public policy – sheds light on the history of victims’ movements in Brazil, highlighting the intersection of factors concerning gender, violence and social class.

Keywords: victims; gender; social class; urban violence; social movements.

 

Neste artigo, descrevemos as metamorfoses do um movimento social que teve início no começo dos anos 90 com a mobilização de um grupo de mães de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro, e que quase vinte anos depois desembocaria numa política pública do Ministério da Justiça brasileiro. Direcionando a nossa análise para a perspetiva das “mães”2, geralmente de origem humilde, que entre 2007 e 2009 levaram as suas reivindicações a Brasília, consideramos a história dos dilemas e frustrações enfrentados por essas mulheres ao longo da sua luta. Ao descrever a relação dessas mulheres com os seus diferentes aliados políticos, organizações da sociedade civil e instâncias do governo federal, esperamos lançar luz sobre a história dos movimentos de vítimas de violência no Brasil, com destaque especial para o entrecruzamento entre género, violência e classe social.

A ação coletiva das “mães”, visando, num primeiro momento, “a justiça” no caso do assassinato impune dos seus filhos3, com o tempo amplia o foco para objetivar uma transformação da própria sociedade. Acompanhando (e compondo) o campo de direitos humanos no Brasil dos anos 90, elas são instadas a juntar-se à de outras “vítimas de violência urbana”, incluindo familiares de polícias e civis de todas as classes. A ênfase na dor de perda que todos compartilham permite fortalecer o movimento por uma “cultura da paz”, mas com o risco de esvaziar a intensidade das reivindicações originais que destacavam elementos de desigualdade, discriminação e a violência policial. Em 2007, as mães procuram novos aliados para transformar as suas reivindicações numa política pública para o combate à violência, mas, de novo, enfrentaram dificuldades.

Foi nesse momento que Brites, primeira autora desse artigo, iniciou o seu contacto com as mulheres. A pesquisadora foi convocada pelos gestores do PRONACI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) a colaborar com as “mães” para transformar as suas propostas numa política de segurança pública focada na atuação feminina. Esse envolvimento significou conversas repetidas durante dezoito meses com representantes do movimento, principalmente em reuniões de trabalho.

Em fevereiro de 2009, um grupo de estudantes de antropologia e Fonseca e Brites, num exercício etnográfico entre familiares de vítimas de assassinato no Rio de Janeiro, procuraram realizar uma avaliação das primeiras edições da política pública “Mulheres da Paz”.4 A equipa de investigadores, alojada numa escola de formação policial na periferia do Rio de Janeiro, mantinha contacto também com as raízes do movimento, visitando as mais variadas regiões da cidade para entrevistar familiares de vítimas fatais de violência. Esse universo incluía maioritariamente famílias de vítimas da população civil da periferia urbana, mas já contava com bom número de familiares de polícias civis e militares mortos durante a execução das suas tarefas de policiamento ou caídos na lógica da violência urbana, alvejados no trajeto do trabalho ou nas suas horas de folga. Durante essa fase da pesquisa, além de realizarem entrevistas individuais com algumas das mães inspiradoras da política, os pesquisadores realizaram grupos focais para melhor entenderem a avaliação dessas mulheres sobre o andamento da política.

A nossa discussão encaixa-se dentro da literatura sobre narrativas do sofrimento, e a eficácia destas nos pleitos públicos (Fassin e Rechtman, 2002; Sarti, 2011; Jimeno, 2010). Ao mesmo tempo, o momento particular do nosso trabalho etnográfico – quando o movimento, depois de longa caminhada, foi abraçado como bandeira de uma autoridade federal – exige uma reflexão sobre as peripécias da institucionalização de um movimento social (v., por exemplo, Rifiotis, 2008; Sarti, 2004). A combinação destas duas perspetivas levou-nos a pensar o processo etnografado aqui como uma “burocratização da dor”.

 

A DOR TRANSFORMA-SE EM MOVIMENTO

 

O movimento de mães começou no início da década de 905 na cidade do Rio de Janeiro, com a peregrinação de pessoas – principalmente mulheres e mães que perderam um familiar para a chamada “violência urbana” – em busca dos seus filhos desaparecidos, em instituições do Estado e da sociedade civil, ou clamando por justiça. O primeiro evento a receber a atenção dos media foi a “Chacina de Acari”, envolvendo o desaparecimento de onze jovens oriundos da favela carioca. Começou com a busca feita por três mães dos seus filhos desaparecidos em esquadras policiais dos subúrbios do Rio. Conforme nos contou Marilene (uma das três mães), depois de um assalto a uma relojoaria, alguns rapazes, considerados suspeitos pela polícia, esconderam-se com as suas namoradas num sítio na periferia do Rio de Janeiro. Esses jovens (sete deles menores de idade) foram sequestrados, provavelmente mortos, e os seus corpos até hoje estão desaparecidos.

Os familiares reagiram de imediato, particularmente as mães das vítimas, clamando por “justiça” no sentido de identificar e julgar os assassinos. Entretanto, num primeiro momento, não houve nenhuma mobilização policial para encontrar os jovens. Assim as “mães” deram-se conta que teriam que agilizar relações pessoais para levar o seu pleito adiante. Marilene, cujo marido trabalhava na limpeza de uma ONG (CEAP – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas), foi aconselhada a pedir ajuda ao jornal O Povo. Uma jornalista simpatizante da causa conseguiu a publicação das fotos dos onze desaparecidos na primeira página do jornal no dia seguinte. À medida que o caso ganhava visibilidade nos meios de comunicação, organizações de direitos humanos (como a Amnistia Internacional) foram-se juntando à causa. Entretanto, um ano depois da Chacina de Acari, os depoimentos das mães denunciantes nem sequer constavam dos autos policiais.

Em 1993, dois outros acontecimentos violentos sacudiram a cidade do Rio de Janeiro. Na “Chacina da Candelária”, oito jovens foram mortos (e muitos outros feridos) por assassinos encapuzados enquanto dormiam sob uma marquise perto da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. Segundo os jornais da época, as crianças teriam sido baleadas em represália ao apedrejamento de uma viatura policial ocorrido dias antes. Um mês mais tarde, na “Chacina de Vigário Geral”, 21 moradores daquela favela foram executados por um grupo de paramilitares.6 Conforme os relatos, a chacina teria sido uma resposta à morte de 4 polícias em choque com traficantes da favela. De novo, tudo indicava que os assassinos eram da Polícia. Apesar do inquérito policial incriminar 55 polícias militares, apenas 13 dentre eles foram expulsos da corporação, e apenas cinco foram condenados num dos julgamentos mais controversos a que se assistiu no Brasil. Assim, até hoje perdura um sentimento de que não houve punição dos culpados.

Foi no decorrer destes eventos que “as mães” se constituíram como agentes inspiradores de uma série de protestos coletivos, objetivando a busca de reconhecimento jurídico e político das vítimas de violência. O movimento inaugurado com Acari desdobrou-se numa série de novas organizações envolvendo famílias de vítimas da violência urbana, primeiro no Rio, depois nas principais cidades do país.7

Ao fazerem-nos os relatos dessa época, as mães insistiam no quanto encontravam consolo na interação com outras pessoas que sentiam “na pele” aquela mesma dor e compartilhavam relatos sobre as moléstias físicas que as assolavam. Algumas delas simplesmente não resistiram à dor (Téia, por exemplo, morreu de enfarte “no meio da caminhada”), umas entregaram-se ao álcool e outras só viviam sob o efeito de antidepressivos.

As que permaneciam no movimento pareciam estar à procura de uma maneira para elaborar a “violência no cotidiano” (Das, 2007; Vianna e Farias, 2011; Víctora, 2011), incorporando o luto nas atividades do dia-a-dia. Lembravam constantemente que não havia substituto para a dor da perda, que não há forma de esquecer um filho. Dormiam, refaziam-se para na manhã seguinte retomar o ritual de dor que as envolvia. Contar a sua história era uma peça fundamental desse ritual: “Estamos botando pra fora!” E, junto com as suas reivindicações por apoio psicológico aos familiares das vítimas, reivindicavam o direito de serem ouvidas: “Quando se perde um filho, as pessoas pensam que você quer ficar sozinha, te isolam. Mas precisam aprender que nós precisamos delas”.

O sofrimento individual, trazido para a ação coletiva, parecia assumir novas cores. A emoção extravasava para os debates públicos, onde a expressão da dor sublinhava a legitimação moral das reivindicações das mulheres (Fassin, 2005; Sarti, 2011). Estas passaram a adquirir desenvoltura para falar em público, relatando repetidas vezes os detalhes dramáticos da morte ou do desaparecimento do seu filho, e não hesitavam em “botar a boca”, fazendo críticas às autoridades pela falta de resultados. Davam-se plenamente conta de que não só as suas reivindicações, mas a própria presença delas nos holofotes do espaço público representava um tipo de transgressão às regras usuais da política. Queixavam-se insistentemente da maneira como eram recebidas – a sua dignidade “aviltada” pela polícia – e a “integridade moral de nossos filhos e família” constantemente colocada em dúvida pela “sociedade”.

As mães encontraram aliados que pareciam estar em sintonia com o seu estilo. Um dos seus principais e mais antigos parceiros era, ironicamente, um polícia militar “não como os outros” – coronel Brum. Conforme a narrativa que emergiu num grupo focal com as mães, alguns meses após os desaparecimentos de Acari, Brum foi convocado pelo novo governador (Leonel ­Brizola) e o comandante da polícia militar do estado para chefiar a investigação. Em pouco tempo, a equipa de Brum havia identificado onze culpados – todos polícias ligados a um grupo de extermínio conhecido como os Cavalos ­Corredores. O mesmo estilo rápido e eficaz repetiu-se na investigação da Chacina de Vigário Geral. Em entrevista à nossa equipa de investigação, Brum corroborou essa imagem, descrevendo um primeiro episódio da sua carreira em que denunciara polícias por assassinarem um menino pego furtando fitas de um carro:

 

Eu compliquei a vida de muitos coronéis. Fui punido por ter feito esta investigação. O juiz na sentença me elogiou, mas a polícia me condenou. Eu vi que eu não podia ser aquele policial “normal”. Nunca tive nenhum corporativismo negativo. Protejo a instituição de ser empulhada, de ser vítima de chiste. Mas não vou proteger bandido.

 

Frisou que sempre desenvolveu empatia pelas vítimas, “ouvindo e dando credibilidade” aos familiares, “sobretudo os mais pobres”. Diante das mães, o coronel evoca sempre o seu passado pobre, nascido e criado na Baixada Fluminense onde, para chegar à escola, costumava passar por cadáveres. Parece não só próximo, mas também acessível: nestes vinte anos desde Acarí, nunca mudou de telemóvel, fazendo questão de deixar aberto esse canal de contacto às pessoas que o procuram. Também, não esconde a sua proximidade com a religião espírita, e não exclui a relevância de pistas indicadas por fontes mediúnicas. Por outras palavras, a sua linguagem aproxima-o dos familiares das vítimas, muitos dos quais – quer sejam de comunidades católicas, espíritas ou umbandistas – encaram a fé como um elemento de credibilidade importante.

Outra aliada das mães, Cristina Leonardo, acompanhava o movimento desde que se tornara advogada das famílias das vítimas da Chacina de Candelária. Enquanto diretora da ONG Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente, desenvolvia atividades para facilitar a produção de documentos de identidade e, por acaso, havia filmado as crianças um dia antes da chacina. Cristina era conhecida por ser uma pessoa ousada e briguenta, mas eram justamente essas qualidades que inspiravam a admiração das mães históricas e a convicção de que essa aliada trazia uma contribuição importante para o movimento. Foi ela quem teria intermediado a presença das mães da Cinelândia na novela Explode Coração da Rede Globo (1995). Figura controversa, esta mulher possui um estilo de engajamento – gestos dramáticos, discursos exaltados e um tom intensamente pessoal – visto por alguns integrantes do campo de direitos humanos como exagerado. Entretanto, trata-se de uma linguagem que, na ótica das mães, confere uma sinceridade com a qual elas se identificam, e, mais do que isso, que promete trazer resultados.

As mães das vítimas fatais encontraram ainda outras alianças políticas para insurgir contra os abusos do poder instituído. Foram rapidamente abraçadas por movimentos mais amplos contra a violência urbana. “Viva Rio”, por exemplo, fundado em 1993, que teve papel importante na coordenação de atividades contra a violência urbana. Mas, enquanto em geral esses movimentos eram encabeçados por pessoas das camadas médias e altas da sociedade, o “movimento de mães” era liderado, via de regra, por mulheres de origem humilde – negras, moradoras de favelas, mulheres de pouca instrução formal que assumiam publicamente a sua dor. Não possuíam necessariamente a etiqueta dos altos escalões, mas a sua situação dava-lhes outro tipo de legitimidade. Orgulhavam-se de ser “mulheres briguentas”, prontas a assumir riscos e críticas para, em nome dos seus filhos, alcançarem os seus objetivos. O primeiro nas suas listas de objetivos era descobrir e punir os responsáveis pela morte ou desaparecimento dos seus filhos. Procuravam ainda resgatar a honra dos seus filhos, e legitimar a dor sentida pela sua perda.

 

MULTIPLICANDO OS ALIADOS, TRANSFORMANDO O ESTILO: “A JUSTIÇA SEM VINGANÇA”

 

No ano 2000, a violência urbana do Rio de Janeiro declarou-se de forma particularmente impressionante no episódio do autocarro 174. A tentativa de assaltar os passageiros de um autocarro público não correu bem a Sandro, o jovem assaltante. Antes que pudesse escapar, o autocarro – ainda cheio de passageiros – foi cercado por policias e câmaras de televisão. Depois de horas de negociação, o assaltante desceu do veículo para se entregar, mas ainda segurando a última refém, também jovem, como escudo. Dentro de segundos, Geisa (a refém) agonizava no chão, vítima de um disparo “inadvertido” da polícia. O assaltante foi levado para o veículo da polícia, onde acabaria morto, sufocado, antes de chegar à estação policial. Em pouco tempo, veio à tona um detalhe irónico – Sandro, sete anos antes, tinha sido um dos poucos sobreviventes da Chacina da Candelária. O episódio parecia condensar todos os elementos de uma situação intolerável que já durava há longo tempo – a desigualdade, a injustiça, a incompetência da polícia e a aleatoriedade da violência urbana.

O episódio provocou uma enorme reação, liderada pela ONG Viva Rio (“Basta à Violência”), que desembocou numa manifestação concreta em forma do “Mural da Dor”: 40 painéis em branco erguidos na praça principal da cidade onde as pessoas foram convidadas a trazer fotos, escritos, lembranças de todas as vítimas da violência urbana8. Em pouco tempo, o espaço encheu-se de lembranças, flores, velas, manifestações religiosas, preces e apelos a Deus. Havia fotos de pessoas desaparecidas, mortas por uma bala perdida, vítimas de um assalto ou da violência policial, mas também surgiam exortações mais gerais: “basta à violência”, “quero paz, guerra nunca mais” “queremos nosso direito a ir e vir”, etc. Os organizadores, tomando cuidado para evitar conotações de raiva ou vingança, promoviam slogans como “transformando dor em amor”, usando sempre uma retórica de perdão. Numa forma de religiosidade difusa, buscaram modos serenos de avançar para uma “Cultura da Paz”, promovendo momentos de silêncio antes de manifestações ruidosas.

As mães históricas mostraram certa ambivalência diante desta nova manifestação que parecia uma reedição dos esforços que elas já faziam há anos. Muitas delas trouxeram fotos e artigos de jornal para colocar no mural, tentando, mais uma vez, atrair a atenção pública para o assassinato impune dos seus filhos. Algumas pareciam encampar a retórica sobre o “perdão” – o que constituía “a face mais visível e aceita” do seu movimento no espaço público (Leite, 2004, p.162), colocando seus sentimentos de raiva e retaliação em segundo plano. Mas, entre outras, permanecia um desconforto quanto à maneira pouco politizada de tratar a violência do Rio de Janeiro em que “nem os desdobramentos, nem as considerações sobre a legitimidade das causas defendidas foram enfrentadas”(Leite, 2004, p. 188).

Na tentativa de tecer uma frente ampla contra a violência, a decisão mais controversa dos coordenadores do Viva Rio foi a de incluir polícias entre as vítimas de violência. De facto, um dos primeiros painéis a surgir no Mural da Dor continha quase 500 retratos de homens fardados e carregava como título: “Policiais militares mortos em atos de serviço”. Num artigo que saiu logo depois num jornal nacional, um porta-voz da Polícia Militar de Rio de Janeiro falou em 803 polícias mortos entre 1995 e 2000: “estamos no mesmo barco: a PM é uma das maiores vítimas da violência” (Catela e Novaes, 2004, p. 125).

As mães históricas estranharam essa inclusão, assim como muitos dos militantes da área de direitos humanos. As próprias fotos do mural pareciam acentuar a distância entre as vítimas “civis” e os polícias: por um lado as “fotos símbolos” que pareciam realçar determinados atributos morais (a pouca idade, a condição de estudantes, a espontaneidade, simpatia ou vitalidade) das vítimas das comunidades (Leite, 2004, p. 170); por outro lado, retratos de identificação institucional de pessoas fardadas, sisudas, sem individualidade aparente (Catela e Novaes, 2004, p. 124). Da mesma forma, com raras exceções, enquanto as pesquisas universitárias fizeram um trabalho magistral para retratar a dor e criatividade dos familiares das vítimas civis, dedicaram relativamente poucas energias para mostrar os dilemas enfrentados pelos polícias e seus familiares.9

As nossas pesquisas sugerem, contudo, que entre as experiências das diversas categorias de vítimas de violência, há coisas em comum, e a tentativa de juntar os “dois lados” numa frente ampla contra a violência não era afinal sem fundamento. Nesse sentido, uma entrevista que realizamos em 2009 com os pais de Pedro, um polícia morto por assaltantes no seu dia de folga, “na frente da mulher e do filho”, traz material para reflexão.

 

NOVOS ATORES, NOVOS OBJETIVOS: NO “MESMO BARCO” (MAS REMANDO EM OUTRA DIREÇÃO?)

 

Já tinham passado quase três anos desde que Pedro, o filho desse casal, tinha sido morto. Nessa casa, situada entre calçadas esburacadas e sobrados de tijolos num bairro residencial a duas horas do centro de Rio de Janeiro, algumas coisas continuavam como rotina. A mãe de Pedro (Dona Sílvia), depois de um período em que “não queria dormir, não queria comer, não queria trabalhar”, estava mais uma vez ocupada na sua tarefa de doceira, atendendo às encomendas dos seus clientes. As fotos de família – a do casamento de Pedro, posicionada entre retratos das duas outras filhas e imagens dos três netos em fases variadas de crescimento – estavam espalhadas pela sala e cozinha. Mas a rotina tinha incorporado também a ausência do filho. Na sala, quem sentava na poltrona maior era logo avisado que tinha sido o lugar favorito do Pedro; o quarto dele – ainda intocado depois de três anos – permanecia desocupado, pois ninguém queria mexer nas coisas dele. Nas festas de família, os pais passaram a tirar fotos com os amigos de Pedro “no lugar dele”. O neto (filho de Pedro) mencionava “o carro do pai” cada vez que passava um veículo da cor e marca daquele que o seu pai costumara usar. Contudo, antes de mais, tinha sido aberto, na rotina da família, um grande lugar para o movimento solidário com as vítimas de violência.

A primeira coisa que seu Armindo (pai da vítima) nos mostrou foi uma mesa de canto na sua sala, carregada de fotos de vítimas de violência no Rio de Janeiro. Aqui, nessa espécie de altar improvisado, encontravam-se as fotos de jovens cheios de vida. Da “filha da Zoraide”10, a exuberante morena envergando a sua toga de graduação que sorria triunfante para o fotógrafo (tratava- -se de uma mulher-polícia morta no primeiro ano de serviço), até João Hélio, menininho de olhar sapeca – morto durante um assalto ao carro dos pais –, o nosso interlocutor ia contando as histórias trágicas, pontuando cada frase com, “Você não lembra”? Você não viu?” Os casos eram dos mais variados: uma menina sequestrada e morta por instrução da ex-amante do seu “namorado bandido”, uma criança deficiente morta pela empregada da família, a “filha de Cleide” que, saindo do metro quando regressava das aulas, foi apanhada no fogo cruzado de um tiroteio entre a polícia e um suspeito perseguido. Seu Armindo parecia conhecer pessoalmente algum familiar de cada vítima e comentava como os sobreviventes estavam lidando com a perda. Descreveu como, no sábado anterior, tinha ido à missa que marcava dois anos da morte de João Hélio. Assim, aos poucos, ficou evidente que o envolvimento no movimento decorrente dessas tragédias já se tornara o centro da vida deste senhor aposentado.

Dona Sílvia diz-se atualmente mais afastada do movimento. Reconhece que, num primeiro momento, foi bom participar. Aprendeu que existem casos “até piores” do que o dela. Cita uma senhora “que não tem mais ninguém. O filho dela era o único – solteiro – e morava com ela”. Cita outra que, sem nunca ter encontrado o corpo do filho, “não pode nem enterrar nem rezar missa para ele”. Mas ela explica que deixou de participar porque era muito doloroso estar sempre a relembrar a morte do seu filho, e as outras histórias a deixavam triste demais.

Seu Armindo, em compensação, dedicou-se às atividades solidárias. “Não foi logo, pois no início não dava vontade de fazer nada.” Ele diz estar já cansado das manifestações públicas: “Não vou mais [nas caminhadas] porque os jornalistas só querem explorar a dor”. Porém, junto com outros familiares de vítimas, ele movimenta-se regularmente para reivindicar atendimento adequado para polícias acidentados e feridos, e faz “muita caridade”, por exemplo, fabricando kits de alimentação na época do Natal: “Ficamos até de madrugada fazendo sanduíches e depois distribuímos para os meninos de rua”. Mas é outra atividade solidária que Seu Armindo destaca – a que tem a ver com uma dimensão espiritual da dor das famílias . “Éramos católicos, mas eu nunca participava muito. Depois da morte do Pedro, tudo mudou, passamos a ter mais fé. Parece que, com o tempo, ficamos mais religiosos, rezamos muito”.

Central nessa atividade espiritual solidária é a excursão que seu Armindo organiza para pessoas enlutadas, uma vez por mês. Ele aluga uma “Kombi” e, junto com o pai de João Hélio, leva “uma turma de mães” para Lorena (cidade no interior de São Paulo) onde mora um especialista em psicografia de tradição espírita (“como Chico Xavier”). Conforme essa tradição, o médium comunica com o outro mundo, transmitindo através da escrita recados de pessoas falecidas.

 

Foi lá que eu fiquei sabendo todos os detalhes da morte do meu filho. Escrevemos o nome da pessoa [falecida] e ele [o medium] escreve durante três ou quatro horas. As pessoas choram, saímos de lá meia noite e meia, uma hora da manhã, mas faz toda a diferença. Faz muito bem para as pessoas. Agora eu tenho certeza que há vida do outro lado, que meu filho está bem e um dia vou revê-lo. Em Lorena, eu fico feliz, como se fosse o meu filho, cada vez que vejo uma pessoa recebendo um recado. Muda a vida dela. Dá coragem para seguir vivendo.

 

Vemos, portanto, muita coisa que poderia unir esse casal às mães históricas – a dor da perda, a ânsia de fazer algo para combater a violência, a desconfiança diante dos jornalistas e ONGs que “só querem tirar proveito”, a importância da dimensão espiritual. Mas há também coisas fundamentais que distinguem uma categoria da outra. Em primeiro lugar, a morte do jovem polícia não passou despercebida às autoridades. Seu Armindo tem evidente satisfação em nos dizer que os assassinos de Pedro foram presos e condenados, cumprindo atualmente sentenças de mais de vinte anos. Também tem a satisfação de visitar o túmulo do filho no cemitério militar, uma vez por semana, enfeitado-o com flores e faixas que sublinham o caráter heroico da sua morte.

Em segundo lugar, apesar de não existir nenhuma tradição familiar de polícia (“Pedro foi o primeiro militar da família; insistiu que era isso que queria, estudou duro e passou no concurso”), não sente grande compaixão pela causa das vítimas da violência policial. Quando Seu Armindo foi convidado por uma ONG para representar os polícias civis em certo evento, ele tentou dizer que não, porque não era polícia. Mas não ficou mais convencido quando lhe disseram que ele seria simplesmente representante dos direitos humanos: “Eu disse que não conhecia os direitos humanos“. A sua mulher completa: “Porque parece que os direitos humanos é só para bandidos”. Dona Sílvia descreve o seu próprio mal-estar durante a sua participação num programa de televisão na Rede Globo:

 

Foi no fim de ano no sambódromo, me botaram bem na frente, mas chamaram também mães de bandido, sabe, que tinham filhos traficantes. […] Fiquei receosa pois elas não gostam de policial. Não gostei, e depois disso nunca mais participei.

 

Nestes últimos depoimentos, vemos a dificuldade de conciliar agentes muito diversos num mesmo movimento. Nas reuniões de Mães e Pais de Agentes de Segurança Vítimas da Violência, as discussões giram – tal como no Movimento de Mães – em torno da solidariedade e da necessidade de proporcionar socorro psicológico às famílias. Entretanto, esta associação também possui reivindicações específicas: a melhoria das condições de trabalho dos agentes de segurança (melhor remuneração, estratégias para garantir a segurança dos profissionais, aperfeiçoamento profissional, etc.). E alguns dos seus pleitos destoam claramente dos do Movimento das Mães. Consideram que para o combate eficaz à criminalidade são necessárias leis mais duras, sentenças mais longas para os presidiários condenados, e a diminuição da maioridade penal. Em suma, essa categoria de vítima tem tantas dúvidas quanto as mães históricas a respeito de um movimento que pretende reunir todos numa grande ação de solidariedade e combate à violência. A comparação das histórias de luto, incluindo familiares tanto de polícias quanto de vítimas da violência policial, além de mostrar uma possível comunhão na dor, serve para sublinhar uma profunda desigualdade no que diz respeito ao reconhecimento ou legitimidade dessa dor.

Vários pesquisadores têm chamado a atenção para a forma como a expansão da categoria de vítima pode levar ao “esvaziamento” do sentido histórico e contextual dessa categoria (Sarti, 2011; Fassin e Rechtman, 2002). Birman (2012), ao comentar o movimento por uma “cultura da paz” dos anos 90, sugere que a ampliação desse movimento teria redundado no esquecimento da dimensão de igualdade/desigualdade das disputas. A “frente ampla” de Paz foi sem dúvida um primeiro grande desafio para o movimento das mães. Mas, como veremos, em 2007, numa nova tentativa de aumentar o impacto das suas ações, as mães enfrentam outro tipo de desafio, vendo-se obrigadas a modificar não só o estilo da sua intervenção, mas também o próprio conteúdo das suas propostas.

 

O MOVIMENTO CHEGA A BRASÍLIA: ASPIRANDO AO RECONHECIMENTO DA DOR

 

Foram, entretanto, mães históricas, que depois de viajarem quase mil quilómetros de autocarro chegaram ao Ministério de Justiça em julho de 2007. Nessa altura já eram habitués em Brasília, onde percorriam secretarias e ministérios para apresentar as suas propostas. Naquele dia, quando 23 delas chegaram ao gabinete do ministro, apenas dez estavam autorizadas a ser recebidas. No entanto, com a sua característica performance de enfrentamento, e intermediadas pela advogada e aliada de longa data, Cristina Leonardo, subiram todas as 23 “para falar com Tarso”.11

As mães trouxeram consigo diversas propostas construídas ao longo dos anos – desarmamento, implementação de uma polícia comunitária que trabalhe com a noção de proximidade nos bairros, etc. Porém, o apoio psicológico e financeiro aos familiares de vítimas fatais de violência ocupava, nesse tempo, um lugar central. No seu projeto “Mães solidárias”, expressaram com clareza a sua indignação diante de uma sociedade que, em vez de reconhecer a dor das mães, “principalmente as que perderam filhos nas mãos de policiais”, a estigmatiza:

 

[Essas mães…] não têm o direito de chorar sua dor, de se esconder do mundo, correr, gritar, rezar, ficar só, esmurrar a parede, sentar debaixo do chuveiro, abrir a água fria e ficar uma, duas, três horas sem falar com ninguém, mas negociando com Deus como serão suas vidas. Ninguém avalia que dor é essa, só a mãe [Projeto Mães Solidárias].

 

A linguagem usada é uma linguagem de corpo – lágrimas, choro que alivia a “dor no coração”; de fé – “Deus nos deu filhos tão bons e hoje tem o privilégio de cuidar deles”. Porém, antes de tudo, é uma linguagem de mãe. Evocam-se imagens do quotidiano – como as mulheres “sentem na pele a dor de enterrar um filho pela manhã, voltar para uma casa antes cheia de alegria e, à noite, servir o jantar faltando um filho à mesa”. Aparecem a insónia, a dificuldade de as mães voltarem “à normalidade da vida”. Não é por acaso que na primeira página do projeto surge o subtítulo “homenagem aos nossos filhos”, e na identificação das quatro autoras o nome das mães aparece depois do nome dos seus respetivos filhos assassinados.

A principal solução para esse sofrimento é “transformar a dor em solidariedade e amor” – o que exige um “trabalho de formiguinhas, lento gradual e amigo” que mostra “carinho e respeito” pelas mulheres enlutadas. Há de reconhecer “que as lágrimas de todas descem de nossos rostos da mesma forma e é neste exato momento que a mãe sente que não está só”. Insistem: “a família sozinha não consegue”, pois é só na solidariedade com outras que viveram a mesma experiência que essas “mães coragem” encontram força para enfrentar “a dor que seguirá por todos os dias de nossas vidas”.

Trazer esses sentimentos (junto com outras reivindicações) a Brasília não era pouca coisa. Durante longos anos, tinham construído a sua atuação em função da oposição ao Estado – um Estado culpado não somente por ser omisso (que não identificou ou castigou os criminosos), mas, em casos de envolvimento policial, por ser cúmplice no assassinato de seus filhos (Vianna e Farias, 2011). Em entrevistas posteriores, as mães lembram como, naquele dia 30 julho de 2007, chegar ao gabinete do ministro Tarso Genro as encheu de esperança. Acreditando na possibilidade das suas preocupações se transformarem em política pública, passaram a apostar nesse novo diálogo, movidas pela sensação de que a sua dor estava finalmente a gerar frutos.

 

O PROJETO TOMA FÔLEGO: NOVOS ESPAÇOS, NOVAS TENSÕES

 

As mães foram recebidas pela assessora especial do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), Lélia Almeida, reconhecida por seu engajamento feminista e a sua especialização académica em literatura e género. Em relato posterior, Lélia conta como a sua familiaridade com as narrativas emocionadas das Madres de La Plaza de Mayo da Argentina a fez perceber o grande potencial dos projetos que aquelas senhoras queriam apresentar ao ministro. Em todas as ações do Pronasci não havia ainda uma política direcionada especialmente para as mulheres. O ministro insistia na importância das mães nos territórios conflagrados pelo tráfico. Muito já havia sido pensando em termos de “mães ouvidoras” a partir do modelo dos Projetos Legais Populares. Havia até mesmo um nome, “Mães da Paz”, mas nada de efetivo ainda tinha sido projetado.

 

Não havia um formato, uma ideia clara. As mães do Rio chegaram com a política pública pronta, debaixo do braço. Vendo a força daquelas mulheres, percebi que elas eram as “Mães da Paz”, mas elas não sabiam.

 

A partir deste primeiro encontro no Ministério começaram as tentativas para a montagem do projeto “Mães da Paz”. Durante um ano, sob a coordenação de Lélia, um comité ad hoc organizou debates entre vários segmentos para a formatação de uma política pública. Foram organizados colóquios e pesquisas com a participação de técnicos do Estado, especialistas, militantes dos movimentos de mulheres e comunitários e dos grupos de mães de vítimas fatais. Organizou-se em Brasília um encontro de duzentas mulheres ligadas aos movimentos de mães vindas das 12 regiões identificadas como territórios conflagrados pelo tráfico, territórios que tinham sido alvo de ações especiais do Pronasci.12

Apesar de todos os integrantes concordarem quanto aos seus objetivos principais (enfrentamento da violência e busca de justiça), o movimento não era unificado. Havia inúmeras contendas, por vezes fruto não apenas de diversidade de opinião e opções políticas, mas também fundadas em escaramuças pessoais. As mães possuíam um estilo expressivo que comovia alguns e irritava outros.13 Em entrevistas com militantes dos direitos humanos, tínhamos ocasionalmente ouvido críticas ao estilo “exagerado” das mães. “[As mães] são histéricas, nada as contenta” . Eram descritas como mulheres que possuíam uma “estrutura performática para brigas”, “figuras dramáticas”, umas “mater dolorosas”.

Durante um grupo focal realizado pela equipa dos Andarilhos Ímpar, as mães históricas registaram a sua indignação face a essas críticas. Chamaram a atenção para a ironia de, além de sofrerem ameaças e calúnias da polícia, terem de aguentar provocações dos seus supostos aliados. “Somos chamadas de feministas ensandecidas, histéricas, mulheres em ataque de nervos”, “se choramos somos frágeis, se não choramos não temos amor”, “se recebemos indenização, pagaram pela vida do nosso filho?”. Nem os jornalistas, nem os pesquisadores eram isentos de críticas: “Só escrevem mentira a nosso respeito”, “Falam que vão fazer pesquisa, arregimentam um livro que só traz lucro para eles”. E quanto às ONG estrangeiras, “Saem pedindo dinheiro em nosso nome”.

Agora, em Brasília, as mães tiveram que lidar com novas tensões envolvendo a interlocução com órgãos federais rivais. Entre as discussões mais acaloradas estava a disputa sobre qual o ministério que iria abrigar o projeto – o Ministério da Justiça ou a Secretária Especial de Políticas para Mulheres. A ancoragem do projeto num desses espaços significava qual a direção ideológica e teórica que o programa assumiria e, sem dúvida, também quem receberia os dividendos políticos de estabelecer tais propostas. O embate paradigmático dessa disputa deu-se em torno do nome do projeto.

As palavras, como sabemos, não são aleatórias. Demarcam lugares políticos e conceções que orientam as práticas dos sujeitos. Para muitas feministas o “Mães da Paz” estampava já no nome uma perspetiva que reeditava a tão criticada vinculação da mulher às funções reprodutivas. Tais feministas pretendiam combater o estereótipo que universaliza as mulheres em torno das funções maternas. Criticavam, por um lado, uma noção de mulher atrelada à biologia (que a retira das especificidades locais e históricas que constituem o feminino) e, de outro, os históricos usos da mulher enquanto mãe por parte do Estado, que a projeta como disciplinadora da família, socializadora de crianças e principal responsável pelo futuro moral da nação.

Essa crítica feminista soava estranha às mães históricas, que calcavam boa parte da sua legitimidade na sua condição de mães enlutadas. Para estas, ser mãe era o que lhes conferia legitimidade para entrar no espaço público e se fazer ouvir. Nos grupos focais, expressavam ultraje com a diminuição do seu lugar de mãe, como se toda a luta de uma vida estivesse sendo desqualificada. Essa perspetiva era compartilhada por muitos dos seus aliados históricos. Vide o comentário do Cel Brum:

 

Todas pessoas que perderam a vida tinham pais. Mas as mães enlutadas não têm maridos. Eles, os homens, não suportam o prolongamento da dor, nem o engajamento delas na busca por justiça. Elas nunca esquecem. Nunca desistem. Tornam a busca por justiça prioridade primeira de suas vidas.

 

Nesse debate, os gestores do comité de consultores ficavam entre a cruz e a espada. Reconheciam a relevância dos argumentos feministas, mas não queriam desenhar um programa que deslegitimasse a luta das mulheres. Finalmente, optou-se pela “politização” do nome do projeto que passou a chamar-se “Mulheres da Paz”. Se, por um lado, se manteve a fidelidade a uma certa filosofia feminista, por outro, ficou marcado o avanço de uma política pública que se afastava cada vez mais da sua inspiração original, que escapava das intenções (e do controlo) das militantes históricas do movimento. Para essas mulheres, os seus direitos e sua dor de mãe faziam parte do mesmo pacote. Ao levar as suas propostas ao poder público, estavam ao mesmo tempo a dar prova de ser cidadãs e boas mães. A questão era se, transformado em política pública, depurado da emoção original, o projeto seria capaz de manter a outra parte do pacote: o sentido cidadão.

 

MAIS MEDIAÇÕES – O PROJETO PASSA DO PAPEL À VIDA REAL

 

Com base nas reivindicações apresentadas pelas mães, a equipa de consultores traçou as primeiras diretrizes do projeto “Mulheres da Paz”, apresentado em dezembro de 2008 ao Ministério. O objetivo inicial desse projeto, inspirado na experiência das mães históricas e na metodologia das PLP (Promotoras Legais populares)14, centrava-se na capacitação de mulheres como multiplicadoras de conhecimentos sobre o direito e acesso à justiça, a mediação de conflitos e o apoio psicossocial à família e rede social das vítimas fatais da violência. Entretanto, até “sair do papel”, isto é, até à institucionalização, o projeto passou por muitas modificações.

Já descrevemos uma primeira modificação que decorreu da disputa sobre o título do programa (Mães da Paz versus Mulheres da Paz). Uma segunda modificação diz respeito ao número de mulheres a serem enquadradas. O comité de consultores tinha apontado um número em torno de 3500 mulheres monitoras (para todo o Brasil), possibilitando uma capacitação em profundidade de “multiplicadoras”. Entretanto, na finalização do projeto realizada por uma equipa técnica do ministério responsável pelo formato técnico definitivo da política pública, a meta projetada foi de 11 725 mulheres em quatro anos – um número, como explicavam os integrantes dessa equipa, que teria “impacto”. Os membros do comité consultor estranharam essa ampliação de proporções. Não ficava claro como seria possível dar conta da formação de tantas pessoas, nem com que parceiros e com que nível de competência o Estado poderia contar. Assim massificado, o projeto parecia afastar-se cada vez mais da possibilidade de uma capacitação sistemática das integrantes, tal como fora inicialmente projetado.

Outra mudança atingiu os critérios de seleção das participantes e, por extensão, o lugar das mães históricas no projeto. Conforme a versão final do projeto, para se candidatarem ao papel de monitora do programa, as mulheres deveriam ter no mínimo a quarta série completa – critério que eliminava muitas lideranças da comunidade. O limite de renda de no máximo dois salários mínimos e a exigência de ser moradora de uma comunidade eliminava a maioria das mães históricas. Estas tinham conseguido uma certa ascensão socioeconómica e muitas já não moravam nos seus bairros de origem. As mães históricas poderiam ter sido integradas como formadoras (em vez de monitoras) do programa. E, de facto, “no papel”, as mães tinham sido originalmente designadas como consultoras nos cursos de capacitação. Entretanto, até o projeto sair do papel, a atuação delas tinha sido secundarizada. Justificava-se que, ao invés de privilegiar o engajamento e a “experiência na pele” das figuras centrais, o que se visava nessa versão final era uma certa competência funcional.

Mas a mudança mais marcante dizia respeito ao objetivo principal do projeto. As “mulheres da paz” passaram a ter como objetivo:

 

Construir e fortalecer redes de prevenção e enfrentamento às violências que envolvem os jovens e as jovens e adolescentes expostos à violência doméstica e urbana [Projeto Executivo Mulheres da Paz, 2008].

 

Por outras palavras, a noção inicial das consultoras – de construir uma política de género voltada para o apoio e empoderamento de mulheres expostas a situações de violência – acabou direcionada para a proteção e salvaguarda de jovens no caminho do crime. Numa arena complexa de atores múltiplos, certos setores do Estado disputaram a prerrogativa de implementar a política pública de segurança e quem ganhou estampou a sua marca no programa. Dessa maneira, tal como o Projeto Executivo assumia explicitamente, as multiplicadoras seriam fiéis divulgadoras dos programas do Pronasci.

A força propulsora da política pública pode ter sido o movimento de mães, mas o encaminhamento pelo Planalto parece ter depurado o movimento das suas bases populares, dando novo significado ao termo, “popular”. É possível que essas mudanças tenham sido necessárias para o crescimento do programa e para produzir um impacto em grande escala.15 E, certamente, não é a primeira vez que se observa uma evolução dessa natureza quando setores da sociedade civil tentam envolver-se em assuntos de governo. De facto, há analistas que sugerem que no Brasil dos últimos anos (como, aliás, em outras partes do mundo), houve uma migração geral da energia dos movimentos sociais para ONGs e outros setores mais ou menos integrados no governo com resultados diversos (Dagnino, 2002; Birman, 2012; Fassin e Rechtman, 2002). A nossa análise da experiência do movimento de mães de vítimas fatais de violência sugere que, neste caso, com a transformação em política pública, houve uma “burocratização” da atuação esperada de cada um e um distanciamento das preocupações (e das emoções) que tinham dado origem ao movimento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Recebido a 20-03-2013. Aceite para publicação a 21-06-2013.

 

NOTAS 

1 Com a assistência do grupo de pesquisa Andarilhos Ímpar – Grupo de estudos e práticas de pesquisa em Ciências Sociais (UFJF): Ana Claudia Nascimento, Amanda Gomes Pereira, Ana Maria Stefens, Priscila Coutinho, Juliana Anacleto dos Santos, Maria Fernanda Teixeira dos Santos, Eduardo Martinelli Leal, Daniel Albergaria Silva.

2 Trata-se de um termo nativo, usado pelas mulheres entrevistadas para designar quem participava no movimento. Neste texto, usamos o termo “mães históricas” para referir as mulheres que iniciaram o movimento de mães entre os anos 1990 e 1993.

3 No Brasil, ocorrem cerca de 130 homicídios por dia. Vítima preferencial de violência policial e criminalidade comum, o homem – especialmente o jovem – que acumula as desvantagens de ser pobre, negro, e que habita na periferia, tem vinte vezes mais chances que os seus pares que moram em circunstâncias privilegiadas de encontrar a morte violenta. Uma vez que na maioria esmagadora dessas mortes violentas o crime permanece impune, produz-se uma dupla desigualdade segundo o sexo ou a raça da pessoa: uma desigualdade na expectativa de justiça assim como de vida (Soares Filho, 2011; ENASP, 2012).

4 A partir de uma experiência de imersão durante 11 dias, os pesquisadores desenvolveram várias técnicas de pesquisa qualitativa, como observação participante, entrevistas, grupo focal, história de vida, rede de relações, elaboração de mapas, desenhos, estudo de cultura material, foto-entrevistas e análise de documentos.

5 Quando entrámos neste terreno, o Movimento das Mães já tinha quase 20 anos de história durante os quais tinha sido acompanhado de perto por militantes dos direitos humanos e diversos pesquisadores (Alvim, 1995; Catela, 2001; Leite, 2004). Aproveitámos estas pesquisas para completar narrativas que ouvimos das mães sobre as suas trajetórias.

6 V. Vianna e Farias (2011) sobre como esses massacres continuam hoje.

7 Em 1995 este movimento já se havia multiplicado.

8 Esse momento foi descrito de forma minuciosa por uma equipa de cientistas sociais que acompanhava de perto os atores desse movimento (v. Leite e Birman, 2004) e, em particular, as “mães” (Leite, 2004).

9 V. Durão (2011) e Pereira (2012) para pesquisas recentes sobre os dilemas do polícia.

10 A filha de Zoraide, tal como Pedro, não foi morta durante o seu horário do serviço. Alguns polícias são mortos durante as suas folgas. Noutros casos, o polícia pode ser morto quando, durante um assalto qualquer, a sua identidade profissional é revelada pela carteira que carrega consigo, provocando uma execução sumária.

11 Tarso Genro durante o governo de Luiz Inácio da Silva atuou como ministro da Educação (2004), das Relações Institucionais (2006) e da Justiça (2007-2010).

12 Este encontro serviu como base para realização de grupos focais coordenados pelos doutores da UNB, Lourdes Bandeira e Arthur Trindade Maranhão Costa.

13 Como bem lembra Sarti (2011, p. 56), “A forma de manifestação do sofrimento precisa fazer sentido para o outro”.

14 As Promotoras Legais Populares tratou-se de uma metodologia desenvolvida originariamente pela ONG Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Género no final dos anos 90, como processo de formação de lideranças femininas comunitárias com vistas à qualificação das mesmas em termos de conhecimentos teóricos e práticos sobre as leis e funcionamento do Estado. V. Fonseca, Bonetti e Pasini (1998).

15 O programa “mulheres da paz” está pautado atualmente como modelo a ser exportado para outros países da América Latina.

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