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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.209 Lisboa dez. 2013

 

Género, cultura e justiça: A propósito dos cortes genitais femininos

Gender, culture, and criminal justice. On female genital cutting

 

Manuela Ivone Cunha*

*CRIA, Universidade do Minho, Portugal. E-mail: micunha@ics.uminho.pt

 

RESUMO

A emergência de práticas culturais conotadas com comunidades imigrantes e passíveis de repressão penal coloca novos desafios aos aparelhos legislativos e judiciários. Se em algumas é iniludível a tensão entre cultura e universalismo liberal, a reação a elas é também vulnerável às armadilhas induzidas pelas dicotomias simples cultura/indivíduo; relativismo/universalismo; diferença cultural/direitos das mulheres. A partir da complexificação destas dicotomias focar-se-ão algumas destas armadilhas a propósito dos cortes genitais femininos e da questão da criminalização específica dos que são conhecidos por Mutilação Genital Feminina. Analisam-se, em particular, as desigualdades que escamoteiam, os paradoxos que geram e os seus possíveis efeitos contraproducentes.

Palavras-chave: cortes genitais femininos; mutilação genital feminina; cirurgias de cosmética genital; cultura; direitos humanos.

 

ABSTRACT

Cultural practices connoted with ethnic “others” and prosecuted as crimes bring new challenges to legislators and judicial systems. While they put forth a tension between culture and liberal universalism, the reaction to them is also vulnerable to the pitfalls induced by simple dichotomies, such as culture/individuals, relativism/universalism, cultural difference/women’s rights. Complexifying such dichotomies, I will focus on these pitfalls in the case of female genital cutting and the specific criminalization of those known as Female Genital Mutilation. I will examine in particular the inequalities they mask, the paradoxes they generate, and their possible counterproductive effects.

Keywords: female genital cutting; female genital mutilation; genital cosmetic surgery; culture; human rights.

 

CONTORNOS DE UMA QUESTÃO1

 

O debate em torno da chamada “mutilação genital feminina” (MGF) é talvez um dos que mais tem evidenciado algumas das armadilhas e contradições que se cruzam na defesa dos direitos das mulheres em sociedades pluriculturais configuradas por situações de pós-colonialidade e movimentos migratórios. À partida, a questão parece apresentar-se como uma oposição inequívoca entre cultura e universalismo liberal. Trata-se de condenar e reprimir uma “prática cultural” que chocaria de maneira flagrante com os direitos individuais das mulheres, prática essa conotada com geografias remotas ou comunidades de imigrantes. Sucede que tal prática seja perseguida como crime à luz da lei penal e, neste caso, que o crime seja imputado a uma lógica cultural e a sua repressão a outra, fazendo-se corresponder estas lógicas a coletivos diferentes.2 Tal vai de par com uma tendência para confundir categorias étnicas e unidades culturais, e com um entendimento do facto multicultural como um mosaico de blocos separados e distintos, supondo cada comunidade com uma cultura homogénea. O debate público encontra-se assim organizado em polaridades simples como cultura/indivíduo; relativismo/universalismo; diferença cultural/direitos humanos. Na realidade, aspetos contraintuitivos, efeitos contraditórios e derivas inquietantes complicam estas dicotomias.

As consequências nocivas possíveis de intervenções genitais subsumidas na expressão “Mutilação Genital Feminina” (MGF) na saúde sexual e reprodutiva das mulheres são conhecidas e têm gerado uma forte mobilização para intervir no problema. Mas a questão da eficácia e adequação desta intervenção não pode ser separada da própria caracterização do problema em si, tanto na variedade de formas que assume, como na sua própria constituição histórica como problema. Por outras palavras, importa ter em conta tanto os contornos culturais e políticos dessas práticas – relativos ao universo dos destinatários dessa intervenção – quanto os do próprio discurso e mobilização contra elas (Cardeira da Silva, 2007; Walley, 2002). As razões para tal são metodológicas, pragmáticas e éticas.

Metodológicas, pois trata-se de caracterizar e compreender um fenómeno – não no sentido de torná-lo justificável ou tolerável, mas de torná-lo inteligível. Num terreno de debate tão polarizado e carregado de imputações ideológico-morais, continua a ser pedagógico destrinçar entre duas variantes do relativismo cultural: a de cariz descritivo, condição necessária para evitar juízos apriorísticos, e a de cariz moral, segundo a qual seriam válidos quaisquer valores e defensáveis quaisquer práticas – “tradições” – desde que tivessem sentido nas e para as comunidades que os perfilham. Esta variante teve, quanto a ela, os seus primeiros críticos entre os próprios antropólogos, entre outras razões por emanar de uma noção vulgarizada de cultura que há muito puseram em causa: um todo estático e fechado, uniforme e unanimista, como se não atravessado por diferenças de poder, relações opressivas e conflitos internos em torno de valores – envolvendo por exemplo diferenças geracionais, de género, e dinâmicas de transformação histórica.

Quanto às razões pragmáticas, em vez de ser paralisante a reflexividade pode calibrar melhor a ação. A história das campanhas antidroga em Portugal ilustra como abordagens assentes apenas em denúncias inflamadas e retóricas estandardizadas descoladas de realidades concretas e variadas não são a maneira mais eficaz para promover o seu abandono junto dos setores que se pretendem envolver, por muito titilante que seja o horror suscitado noutros. São, de resto, discerníveis paralelismos entre a construção dos dispositivos de combate à droga em Portugal (Agra, 1993) e a mobilização contra a MGF, nomeadamente na sua formatação pela produção e difusão globalizada das agendas de intervenção. No caso da MGF, a mobilização à escala global encontra-se cada vez mais enquadrada, moldada e padronizada pela ação e práticas discursivas de organismos internacionais – e.g. OMS, UNICEF, UNFPA, UE, ONU (Cardeira da Silva, 2007, p. 17).3

Uma tal formatação, positiva em eficiência e projeção global, mas potencialmente contraproducente em adequação e eficácia quando faz tábua rasa de especificidades locais e experiências individuais, repercute-se também no modo como marca as agendas públicas de diferentes países, seja qual for a expressão real ou o perfil do fenómeno em cada um. No caso de Portugal, por exemplo, a atenção mediática e política de que o problema da MGF foi objeto a partir de 2002, motivando até um projeto-lei visando a sua criminalização específica,4 não esteve relacionada com a envergadura de tal prática no país, ainda por estimar, mas, pelo que os estudos disponíveis até à data permitem supor, residual quando comparada com outras realidades europeias.5 Em contraste com outros problemas sociais com uma amplitude sociohistórica bem mais expressiva em Portugal, como a violência doméstica – também ela com uma dimensão de género, mas que só em anos recentes foi objeto de um sobressalto cívico e mediático da mesma ordem –, a visibilidade pública da MGF irrompeu assim sobredimensionada por relação à sua dimensão real.6 Este sobredimensionamento, além disso, não terá sido alheio ao facto de essa prática surgir “islamizada, barbarificada, tribalizada” (Cardeira da Silva, 2007, p. 19) na perceção pública, logo como uma realidade exótica e “exógena” e assim dissociada de realidades “endógenas” bem mais familiares e “normalizadas” de violência contra mulheres e crianças.

São, por fim, éticas as razões para submeter a um enfoque conjunto os contextos destas práticas e os da mobilização contra ela. Nas agendas em causa, a formulação do problema cristaliza-se quase sempre em simplificações e seleções que, em vez de enunciarem linhas verdadeiramente universalistas de proteção dos direitos humanos, arriscam-se a torná-las menos operantes e a vincar novas clivagens culturais potenciadoras de mais exclusão – quando não a fornecer um ponto de apoio à legitimação da mais crua xenofobia.

 

PARA UM ENQUADRAMENTO DO PROBLEMA

 

Uma via para contrariar retratos sensacionalistas do problema e ultrapassar a falsa escolha entre a indiferença cívica do relativismo ético e a cega indignação moral é um enquadramento do problema que leve em conta dois factos que a categoria MGF tende a obscurecer: primeiro, que as práticas de modificação genital não existem como realidade única, mas ocorrem em coordenadas geográficas, culturais, religiosas e políticas muito diversas. São práticas que não se limitam ao género feminino, nem a universos culturais longínquos. Incidem também sobre o género masculino, realizam-se em contextos variados, incluindo euro-americanos, e de acordo com várias racionalidades: rituais, cosméticas, ou médico-profiláticas.

É de não presumir à partida, de resto, que a racionalidade das cirurgias genitais profiláticas ou corretivas, realizadas em contexto hospitalar, esteja acima de lógicas culturais, e que as intervenções conotadas com motivações culturais ou rituais não possam também elas exprimir propósitos profiláticos, estéticos e de correção de anomalias. Tanto numas como noutras trata- -se de modelar o corpo à luz de conceções de pessoa, de sexo/género, fazendo “acertos” na biologia e ajustando as conceções biológicas a esses modelos. Em suma, importa, por um lado, reconhecer a diversidade de sentidos e práticas que envolvem os cortes genitais femininos para evitar generalizações contraproducentes; por outro, há que situar os cortes genitais femininos no contexto mais geral das intervenções de modificação genital, quaisquer que sejam, para evitar distorções exotizantes que realçam diferenças e ignoram semelhanças.

Em segundo lugar, o enquadramento do problema deve ter em conta que a categoria MGF é ela própria tão historicamente constituída como as práticas que designa. A própria designação MGF, adotada em meados da década de 1990 em fóruns e organizações internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1997), longe de ser um descritivo técnico neutro, surgiu envolta em disputas lexicais eminentemente políticas. Abu-Sahlieh (2006) refere que o termo “mutilação genital” feminina teria substituído o de “circuncisão” feminina” por iniciativa de ativistas feministas da OMS, as quais, sob pressão de grupos religiosos muçulmanos e judaicos, teriam assim procurado proteger-se de acusações de antisemitismo e islamofobia. A ser assim, não se tratou tanto de evitar uma equiparação à circuncisão masculina passível de trivializar as formas mais danosas da excisão feminina. A terminologia MGF diaboliza igualmente as modalidades femininas menos invasivas, subtraindo-as também à comparação com a masculina, e subsumindo-as no mesmo léxico das mais graves: MGF.7

Esta designação tão-pouco é neutra nas suas implicações. Primeiro, porque determina quais as práticas de modificação genital que se encontram na mira das agências internacionais; segundo, porque o termo “mutilação” não só suscita reações emocionais acesas, como é em si mesmo uma operação de pré-qualificação jurídica (Martin, 1999) – portanto, com potencial para determinar a sua perseguição penal; terceiro, porque é ela própria produto e produtora de uma dualidade de perspetivas cultural e ideologicamente marcadas (Gruenbaum, 2001; Shweder, 2002). Mesmo atendendo estritamente aos efeitos físico-patológicos, por um lado a sigla MGF nivela sob a mesma designação os mais variados tipos de intervenção genital ritual feminina, independentemente da sua envergadura, riscos e potencial impacto, desde a infibulação até à punção superficial para produzir uma gota de sangue, passando pela variante limitada à remoção do prepúcio do clítoris; a par desta uniformização terminológica das variantes femininas institui-se por outro lado uma diferenciação terminológica face a outras modificações genitais de envergadura físico-patológica análoga a algumas destas, ao deixar as masculinas fora do alcance do qualificativo “mutilação”. Em suma, esta demarcação tem por referência as modalidades presumidamente mais benignas de um lado (masculino) e as mais extremas de outro (feminino), minimizando a envergadura de umas e enfatizando a de outras.

Tal comparação tende também a não destrinçar os efeitos relativos à natureza das intervenções em si, daqueles relativos às circunstâncias sanitárias em que são realizadas.8 Além disso, no caso da excisão os cortes genitais femininos são apresentados de forma não raro sensacionalista e excessiva quanto à sua danosidade.9 É, aliás, perante o reconhecimento do empolamento dos danos atribuídos à MGF que os esforços e as campanhas para o abandono destas práticas começam a acatar recomendações no sentido de se basearem menos no argumento das complicações de saúde e mais no da “integridade corporal” e no dos direitos humanos (Morison et al., 2001; Obermeyer, 2005).

Diga-se, porém, que se a prática discursiva das organizações internacionais mantém esta dualidade terminológica para as intervenções masculinas e femininas, alguns movimentos cívicos e médicos passaram também a adotar a designação “Mutilação Genital Masculina” (MGM) para o caso da circuncisão masculina, cuja inocuidade e benignidade têm vindo a ser questionadas.10 Tal contribuiu para que o debate sobre esta intervenção – a partir do momento em que é nele reposicionada como uma amputação eletiva de um órgão são da anatomia humana, realizada sobre alguém em situação de vulnerabilidade e sem consentimento do próprio – se desloque paulatinamente do domínio médico para o bioético, o jurídico e o dos direitos humanos (Degregori, 2001, p. 46). E levou também a que, quando configurado pela sigla MGM, se gerassem efeitos tão espúrios e contraproducentes como alguns daqueles induzidos pela adoção de terminologia análoga na versão feminina.11

 

DIVERSIDADE DE EXPERIÊNCIAS E DE SENTIDOS CULTURAIS

 

Mas se, além disso, se atender às noções que estruturam as intervenções genitais rituais, um enfoque isolado nas femininas também é inadequado tanto no plano analítico como no desenho de medidas de intervenção. Assim é, pois, nos universos culturais em que ocorre, a operação feminina coexiste sistematicamente com a circuncisão masculina e forma um binómio com ela, dispondo-se, consoante os casos, em simetria absoluta ou havendo correspondências e paralelismos entre ambas (Abu-Salieh, 2001; Boddy, 1982; Brett-Smith, 1997; Degregori, 2001; Fainzang, 1985; Kennedy, 1970; Maertens, 1978; Sindzingre, 1979; Walley, 2002). Nesses universos, o estatuto indefinido das crianças como seres sociais decorre de se entender possuírem ainda aspetos anatómicos dos dois sexos. Os órgãos sexuais femininos estariam representados nos homens pelo prepúcio e os masculinos nas mulheres pela parte externa do clítoris. É mediante a remoção de um e de outro nos rituais de iniciação que se dará a masculinização dos rapazes e a feminização das raparigas, e poderão ambos assumir o estatuto sexual adulto. Trata-se de acentuar o dimorfismo sexual, isto é, de sublinhar as diferenças entre homens e mulheres e de eliminar qualquer ambiguidade anatómica ou elemento conotado com o sexo oposto. Nestes contextos, circuncisão e excisão são, então, processos culturais complementares e homólogos em termos rituais e simbólicos.

Mas são, além disso, equiparáveis nas valências higiénicas e estéticas que lhes são culturalmente atribuídas. Tanto a pele que reveste a glande do pénis como a que cobre a do clítoris favoreceriam a acumulação de sujidade e de odores que potenciariam infeções, doenças sexualmente transmissíveis e inflamações ou adesões dolorosas à glande. Para as mães, a decisão de removê-la nas filhas tende por isso a apresentar-se tão óbvia como para o caso dos filhos, tratando-se de zelar para que tanto uns como outros possam ter genitais saudáveis e esteticamente apelativos. Surge-lhes assim como um contrassenso impedi-lo nas raparigas, mas não nos rapazes (Ahmadu, 2007).

Todavia, a aplicação seletiva do termo “mutilação” às intervenções genitais femininas e a emotividade de que a questão se reveste na esfera pública decorre de se lhes atribuir como principal desígnio a diminuição da líbido e a submissão à dominação masculina. O sentido último desta prática seria portanto o da própria mutilação da sexualidade feminina e um instrumento da opressão e controlo sexual das mulheres. Se há contextos que correspondem a este retrato, e outros que se avizinham dele nalguns aspetos – pois mesmo que não se vise erradicar o desejo em si trata-se de canalizar a sexualidade e fertilidade femininas para controlar a integridade da linhagem, sendo por essa via que as mulheres asseguram poder e estatuto no grupo de parentesco nalgumas sociedades patrilineares e patrilocais (Boddy, 1982; Hayes, 1975; Walley, 2002) –, esta é porém uma generalização muito simplificadora, ao reduzir a uma caracterização uniforme experiências e sentidos muito variáveis consoante os universos culturais considerados.

Primeiro, na medida em que ignora ou omite a articulação complementar com a circuncisão masculina em grande parte dos universos em que ocorre. As duas formam um par em termos do estatuto social e simbólico que definem, na maturidade e contenção que se crê favorecerem em ambos sexos e nos padrões estético-eróticos que fazem de um homem ou de uma mulher candidatos matrimoniais elegíveis e desejáveis aos olhos do/a parceiro/a (­Degregori, 2001, pp. 105-108; Goldschmidt, 1976).12 Dado que as desigualdades de género e as mais variadas formas de violência física e psicológica sobre as mulheres são realidades com incidência pelo mundo fora, tal não exclui que as mulheres não possam ser vítimas de relações opressivas no quotidiano destes universos, ou mesmo que esta desigualdade não possa em certos casos vir a combinar-se com o binómio circuncisão/excisão e a ressignificá-lo, acrescentando-lhe novos sentidos. Porém, se atendermos ao panorama comparativo, esta lógica não é inerente ao binómio em si. Faz antes parte de um pano de fundo de estruturas de dominação e desigualdade feito de uma multiplicidade de fatores que lhe são extrínsecos, mesmo que coexistam com ele.

A título contrastivo, dois curtos exemplos atestam a extrema diversidade destas práticas. Sylvie Fainzang (1985) analisou o par circuncisão/excisão entre imigrantes africanos em meio urbano parisiense e a reconversão de sentido que sofreu ao ser transposto para um contexto social novo. Perdendo aqui o valor iniciático de passagem de rapazes e raparigas à idade adulta, tratou-se doravante não só de marcar a diferenciação sexual em si, mas também de inscrever nela a diferença de papéis de género dispostos numa relação de autoridade e dominação. A noção de que a presença do clítoris poderia ser uma barreira a uma penetração completa passaria aqui a caracterizar os órgãos femininos como um recetáculo e a exprimir metaforicamente uma posição de passividade feminina e subordinação sem entraves ao domínio masculino.

Nos antípodas desta lógica, porém, situa-se um outro exemplo de um entendimento similar do clítoris como “barreira” a uma relação sexual satisfatória, mas cuja remoção obedece, na perspetiva das mulheres inquiridas, a um fim inverso: ela aumentaria o seu próprio prazer ao promover estimulações mais complexas e profundas, que, embora requeiram uma maior aprendizagem por parte de ambos os parceiros, resultariam para elas em orgasmos mais intensos (Ahmadu, 2000; 2007). Estas mulheres vêm o prazer sexual como um direito no casamento, dizem desfrutar alegremente dele e estão portanto longe de corresponder à narrativa uniforme de sofrimento, subjugação e opressão que se padronizou e propagou a partir dos relatos mais mediatizados de mulheres africanas na diáspora como Waris Dirie (2007) e Ayaan Hirsi Ali (2006). De resto, aquelas experiências são consistentes com estudos clínicos e etnográficos indicando que a excisão, mesmo nas formas mais extremas como a infibulação, não é necessariamente incompatível com uma sexualidade gratificante, e acompanha-se de taxas de anorgasmia surpreendentemente baixas ou em proporções comparáveis às de mulheres não excisadas (Ahmadu, 2007; Catania et al., 2007; Lightfoot-Klein, 1989; Shell-Duncan e Hernlund, 2000; Toubia, 1994).13

Em todo o caso, sob a terminologia MGF esconde-se uma diversidade de realidades, sentidos e experiências. Consoante o contexto em que decorram e as relações de poder envolvidas, para algumas mulheres é algo traumático e violento, com sequelas sérias na sua saúde sexual e reprodutiva; outras encaram-na como uma experiência positiva e até empoderadora (Sulkin, 2009), mesmo que, à semelhança de tantos outros rituais de iniciação pelo mundo fora – femininos e masculinos –, fisicamente dolorosa.14 Impõe-se por isso a cautela metodológica de atender a esta diversidade de realidades e não decidir à partida que as mulheres que não se consideram vitimizadas por estas práticas não podem senão estar confusas, ou ser vítimas de falsa consciência.

 

DIVERSIDADE DE PROCESSOS SOCIAIS E HISTÓRICOS

 

Mas esta diversidade deve ainda ser examinada por um outro prisma. Importa precisar que uma atenção ao sentido cultural destas práticas – simbólico ou sócioestrutural – não implica pressupor que este sentido seja fixo, dado de uma vez por todas, e pairando acima dos indivíduos e dos processos sociais e ­históricos. É precisamente porque ele não se encontra desligado deles que há que atender às suas transformações e ressignificações. Nalguns casos, estas práticas estiveram quase a desaparecer, mas foram revitalizadas por razões identitá­ rias, como sucedeu com os Kikuyu do Quénia no início da década de 30 do século XX, em reação a uma campanha antiexcisão desenvolvida por missionários da Igreja da Escócia. Não foi assim um velho tradicionalismo que lhes deu força, mas um jovem nacionalismo (Walley, 2002, pp. 348-349; ­Pederson, 1991). Décadas mais tarde, entre os mesmos Kikuyu, entrarão de novo em declínio por razões sócioestruturais. A organização social das mulheres em classes de idade estratificadas, forma esta com incidência na sua organização coletiva em grupos de trabalho agrícola, foi dando lugar em tempos recentes a associações e cooperativas femininas de base mais igualitária, e em cujo quadro os rituais de iniciação marcados pela excisão perderam importância (Robertson, 1996; Walley, 2002).

O sentido e a função destas práticas não podem assim ser desligados da história e remetidos de antemão para “tradições” perenes. São historicamente mutáveis por razões estruturais, como vimos, mas também em razão de dinâmicas e disputas internas, pois as realidades culturais não são homogéneas nem unanimistas. Nessas dinâmicas inclui-se a própria contestação local em torno da MGF, relacionada ou não com movimentos feministas seculares ou islâmicos em África e no Médio Oriente, que também criticam esta prática ou se mobilizam contra algumas das suas variantes. Sucede é que estas e outras feministas censurem a algum ativismo feminista euroamericano o seu retrato paternalista e essencializante das mulheres africanas e, em geral, do Sul global, vistas a priori como vítimas da opressão patriarcal e da ignorância (­Jayawardena, 1986; Mohanty, Talpade e Torres, 1991; Ong, 1988; Spivak, 1988). Qualquer voz discordante ou em dessintonia com este retrato – nomeadamente de mulheres excisadas e de narrativas quanto à sua sexualidade – tende assim a ver-se deslegitimada.15

De resto, além de um discurso que as nega como atores sociais plenos, a preocupação de que são objeto quanto às modificações genitais e o vivo interesse mediático de que se acompanha em contextos ocidentais, em contraste com problemas de simples sobrevivência (e.g. fome, falta de acesso a água ­potável e cuidados de saúde), não afasta a suspeita de que alguma desta recorrente preocupação com a genitália e a sexualidade das mulheres africanas seja um avatar recente de uma velha exotização e erotização dos seus corpos (Walley, 2002, p. 346). Daí injunções como aquela com que mulheres quenianas reagiram a uma intervenção de feministas euro-americanas numa ­conferência das Nações Unidas em Nairobi: “Stop groping about in our panties!” (Parmar e Walker, 1996, p. 93).16

 

A VIA PENAL E A CRIMINALIZAÇÃO ESPECÍFICA DA MGF

 

Se é grande, como vimos, a maleabilidade histórica nos países onde tais práticas têm maior implantação, por maioria de razão é real o potencial de transformação em contexto migratório nas sociedades euro-americanas, onde a pressão social para o seu abandono se faz mais sentir. Resta apurar por que vias se exerce e qual o lugar da via penal. Se o direito penal não é, em regra, a via mais ajustada para lidar com questões sociais, menos adequado ainda pode revelar-se no caso da excisão. Não apenas pelas dificuldades que levanta de um ponto de vista estritamente jurídico,17 como pelos eventuais efeitos contraproducentes.

Campanhas de sensibilização e prevenção de riscos, ações no terreno envolvendo as comunidades como pares – o que não equivale a meras incursões proclamativas isoladas, desligadas delas, declarando a MGF danosa e ilegal –, campanhas de informação e prevenção envolvendo professores e profissionais de saúde, têm mostrado uma eficácia considerável na promoção de processos de mudança, dado até que as práticas tradicionais tendem a ser bastante mais negociáveis do que as lógicas que as sustentam (Degregori, 2001, pp. 12-13).18 Acresce que os efeitos deste tipo de ação no terreno são sólidos e duradouros, mesmo que não linearmente mensuráveis na mesma escala de tempo dos da perseguição penal.

Orientações internacionais para o “combate” à MGF, como as produzidas ao nível da União Europeia, têm por isso preconizado a necessidade de uma estratégia multifacetada e integrada de intervenção que contemple, além de medidas repressivas (punição dos perpetradores, recurso a medidas compulsórias), medidas preventivas e de acolhimento humanitário das potenciais vítimas (asilo, proteção subsidiária)19. Porém, numa estratégia “multifacetada” e “integrada” espera-se por definição que as várias componentes não joguem umas contra as outras, que no afã de fazer progredir rapidamente a frente de “combate” uma não trabalhe em detrimento da outra, mas potenciem mutuamente a respetiva eficácia ou efetividade. Ora, o instrumento penal pode ser usado de maneira positiva ou, pelo contrário, dificultar a ação de outros instrumentos e agravar o problema.

Vem isto a propósito das diversas modalidades de repressão penal desta prática e das injunções em fora variados no sentido de criminalizá-la enveredando particularmente por uma delas: a previsão de um tipo legal específico proibindo explicitamente a MGF (vulgo, a criação no Código Penal de um crime autónomo com esta designação), em lugar de reprimi-la com base na lei penal geral sobre ofensas à integridade física. O raciocínio na base desta opção é o de que a tipificação específica ofereceria mais garantias do que a lei geral. Contudo, o caso da França parece não suportar este argumento, pois tem sido o país com maior efetividade punitiva com base apenas na lei geral (opção essa também prevalecente em Portugal)20 – contrariamente a outros países que, dispondo de incriminações específicas anti-MGF, como a Suécia, não levaram caso algum a tribunal até muito recentemente (Dembour, 2001).

E um percurso sistemático pelo tratamento penal neste país desde os anos 1980 mostra que na maioria dos casos os arguidos estavam conscientes da ilicitude da prática, mesmo sendo essa ilicitude estabelecida de forma genérica, pelo que a incriminação específica não viria acrescentar benefício algum em termos de garantias individuais (Dembour, 2001). É certo que a incriminação específica também não levaria ao decréscimo da efetividade punitiva, mesmo admitindo-se neste argumento não levar ao seu acréscimo (Leye, 2009; Rodrigues, 2011). Porém, a lógica jurídico-penal não é a única em jogo. É que, podendo ser assim no plano da efetividade punitiva (i.e., a não se atingir um ganho, tão-pouco haveria algo a perder), em contrapartida pode bem dar-se, em consequência, um decréscimo no plano da efetividade última e concreta a que se aspira: um decréscimo da prática em si.

Ora, a opção pela criminalização específica pode ter resultados contrários aos efeitos pretendidos (o decréscimo da prática em si): Primeiro, por via do risco do exacerbamento identitário, ao reforçar ou mesmo conferir à excisão uma dimensão emblemática e identitária de que porventura não se revestia, e o seu recrudescimento reativo no seio de minorias étnicas que se vêm assim coletivamente singularizadas – e estigmatizadas – enquanto tal: a expressão “MGF” tem conotações etnicizantes, que a de “ofensa à integridade física” não apresenta.21 Se uma comunidade é identificada como um todo no “sinal” que a própria lei empreende enviar-lhe, essa categoria coletiva é convidada a situar-se enquanto tal, inclusive nos acossamentos que isso gera. Ao contrário da lei geral, que assume como destinatários indivíduos – todos os indivíduos sejam quais forem as suas identificações coletivas –, a lei específica presta-se a leituras menos universalistas ao parecer assumir como destinatários comunidades particulares.

Na mesma linha, uma criminalização “particularista” é mais vulnerável a apropriações espúrias e excludentes – incluindo manipulações xenófobas. De resto, algum do discurso de denúncia da MGF reproduz discursos coloniais ou neocoloniais que inferiorizavam os “outros” invocando a opressão das mulheres e as relações de género destes para se avocar uma missão civilizadora – muito embora os mesmos setores estivessem eles próprios longe de espelhar o mesmo feminismo na “metrópole” e rejeitassem no direito e na prática as suas reivindicações (Ahmed, 1992; Mani, 1990). A linguagem do feminismo pode pois ver-se apropriada por um discurso que visa menos relações de género emancipatórias do que a alterização e a inferiorização de “outros” étnicos.

Em segundo lugar, ao colocar simbolicamente o direito penal na primeira linha para lidar com o problema, esta criminalização pode contribuir para aumentar o secretismo e a clandestinidade desta prática. Cria assim não só um perigo acrescido para as próprias mulheres e crianças, que ficam mais afastadas dos serviços de saúde, como torna mais difícil o acesso a estas comunidades por parte de organizações governamentais e não-governamentais ou a posição de membros dessas comunidades que procuram desencorajar ou modificar esta prática no terreno por outros meios, como sejam a promoção de rituais alternativos sem ou com diminutas implicações físicas.

Ainda quanto a mensagens e linguagens inadequadas, se no caso de crianças é positiva a existência de protocolos de atuação que mobilizem instituições, procedimentos e estruturas montadas de proteção de menores, bem como de sinalização de crianças em risco, é contraproducente equiparar a excisão à “negligência” e aos “maus-tratos”. Na perspetiva dos pais, e de acordo com as suas noções de responsabilidade parental, negligência seria não levarem a cabo tal prática (Dembour, 2001). Uma intervenção apresentada nestes moldes arrisca-se a ser incompreensível. Da mesma forma, para efeitos de asilo e proteção internacional de potenciais vítimas deveria ser possível recorrer a figuras que tornassem a sua necessidade igualmente atendível sem o recurso à figura da “tortura”, que seria totalmente equivocada quanto ao sentido desta prática.

 

CULTURA, CONSENTIMENTO E ETNICIDADE: A ACEITABILIDADE SOCIAL DAS (VÁRIAS) MODIFICAÇÕES GENITAIS FEMININAS

 

Por último, a previsão penal específica anti-MGF não contempla a questão do consentimento, ou, mais problemático ainda, nos regimes legais que a adotam tem-se o consentimento por irrelevante no que toca à exclusão da culpa, mesmo quando prestado diretamente por mulheres adultas. Parecem aqui implícitos dois pressupostos. Primeiro, que todas as intervenções genitais conotadas como MGF – mas só essas –, são extensas e irreversíveis por igual. Segundo, mas não menos problemático, que a própria sujeição a essas intervenções indica por si mesma a impossibilidade de ela ser voluntária por decorrer de constrangimento social e cultural, o que em abstrato – posto que não se prevê o apuramento do grau de constrangimento em concreto – negaria à partida qualquer capacidade de consentimento informado a estas mulheres.

Um tal raciocínio parece, antes de mais, cativo de uma conceção absolutista de cultura e de uma perspetiva de pertença cultural em que o indivíduo é visto como estando dentro ou fora dela, sem ter em conta todas as suas outras características e inserções. Ora, nas sociedades multiculturais o mapa é muito mais complexo do que um mosaico de comunidades fechadas. Porque cada indivíduo é ele próprio um entrecruzamento mais ou menos denso de várias pertenças, identificações e sistemas de navegação cultural, e porque cada comunidade não existe no vácuo, não podemos pressupor que em adultos a pressão social e cultural seja absoluta – em suma, que as mulheres em questão estejam por inteiro encapsuladas culturalmente e fixadas por definição num estatuto de menoridade.

Por outro lado, importa não alterizar a questão do constrangimento social e cultural. É que este constrangimento não afeta apenas o fenómeno socialmente identificado como MGF, mas todas as modificações genitais, sejam elas rituais ou não, e seja qual for o género ou etnicidade em que incidem. Tal inclui as mais variadas cirurgias de cosmética genital feminina que registam uma crescente procura nas classes médias e média-altas das sociedades euro-americanas – Portugal incluído – por parte de jovens mulheres procurando tornar os seus genitais mais atrativos: labioplastias ou corte/redução dos lábios menores, vaginoplastias, redução ou eliminação do prepúcio do clítoris, aclaramento da cor dos genitais, etc. (Liao e Creighton, 2007; Liao, Michala e Creighton, 2010; Renganathan et al., 2009). No Reino Unido, por exemplo, tem-se registado um aumento significativo das cirurgias genitais cosméticas, preferencialmente procuradas por adolescentes e mulheres entre os 20 e os 30 anos.22 Tal prende- -se, em parte, com uma tendência recente para a depilação genital entre mulheres mais jovens. A maior exposição da zona vulvar gera novos ideais estéticos, como a preocupação em aparar quaisquer saliências, clitorianas ou dos lábios menores, ou em aclarar um tom escurecido (Johnsdotter e Essén, 2010, pp. 31-32).

Sucede que quando se considera a modificação em si e o tecido que é removido na anatomia, várias destas cirurgias, motivadas por razões não terapêuticas, são análogas àquelas que, realizadas em mulheres de outros grupos, são perseguidas e consideradas MGF. No Reino Unido, aliás, a descrição da modificação genital na lei que criminaliza especificamente a MGF corresponde à do procedimento que, por outro lado, o Departamento de Saúde do mesmo país refere como “labia reduction” e considera um procedimento legítimo, fornecendo até informação sobre ele na sua página internet (Berer, 2010). Referindo-se à formulação das leis específicas anti-MGF em vários países ocidentais, formulação essa que explicitamente proíbe, de maneira bastante precisa, a remoção parcial ou total de órgãos genitais femininos por razões culturais ou outras não terapêuticas (incluindo nessa interdição qualquer picada), ­Johnsdotter e Essén (2010, pp. 32-33) apontam que, à luz dessas mesmas leis, não seria em princípio possível admitir as cirurgias de cosmética genital. Porém, na prática, no modo como tais leis são aplicadas, a proibição contra as modificações genitais apenas visa grupos africanos.

Neste sentido, Berer (2010, pp. 108-109) pergunta se uma moda é considerada cultura apenas quando se é originário de um país africano. Por outras palavras, por que razão não surge como problemático que uma dada mulher (identificada como europeia, por exemplo) faça remover ou “aparar” uma parte dos seus genitais por achá-los inestéticos, desproporcionados ou lhe desagradar o seu tamanho, cor e forma, mesmo quando estes são inteiramente “normais”, enquanto numa outra (i.e. identificada como africana) tal modificação é considerada crime? Porque umas intervenções, mesmo quando implicam remoção do tecido genital (lábios ou tecido clitoriano), são feitas em contexto high-tech e designadas por “cirurgias íntimas”, “da intimidade”, genitoplastias, “remodelações genitais feminina”, “lifting do clítoris”, “vaginas de design” – enquanto outras, mesmo quando limitadas a uma picada superficial para verter uma gota de sangue, são designadas por MGF? Como se referiu, e dada a variedade de intervenções abrangidas na designação, as chamadas MGF não implicam necessariamente complicações de saúde, do mesmo modo que as cirurgias estéticas genitais femininas não estão necessariamente isentas delas. Estas intervenções podem também elas ser extensas, irreversíveis e suscetíveis de efeitos danosos na saúde sexual e reprodutiva, ou na “capacidade de fruição sexual” – para utilizar a expressão agora em vigor no Código Penal português. Estas práticas motivaram assim, por exemplo, uma declaração do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas pondo em causa a aceitabilidade destas intervenções, referindo-se a riscos como infeções, adesões de tecidos, relações sexuais dolorosas, probabilidade acrescida de cesarianas, entre outros (ACOG, 2007).

Acontece que estas práticas não são menos culturalmente constituídas apenas por não serem conotadas com etnicidades particulares ou minoritárias – etnicidades essas que tendem a cruzar-se, para mais, com posições de classe menos favoráveis. Porém, o discurso dominante sobre as cirurgias de cosmética genital associa-as não à MGF mas a outras cirurgias cosméticas socialmente aceites (e.g. nariz, peito) e remete-as para o quadro do direito das mulheres à livre escolha e a tomar decisões sobre o seu corpo.23 O risco de discriminarmos entre genitais “europeus” e “africanos” ou de deixar que tal suceda ao sabor dos raciocínios e considerações ideológicas dos médicos que as executam ou não consoante o fácies das clientes – será esta cliente uma vítima do patriarcado africano ou uma mulher adulta com direito a fazer escolhas sobre o seu corpo? (Johnsdotter e Essén, 2010, p. 33) – não é já uma hipótese meramente académica. Há já jovens mulheres provenientes de países conotados com a MGF a solicitarem estas cirurgias íntimas (Fusachi, 2011 citada em Mabilia, 2013, p. 21).

 

PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS E DIREITOS DAS MULHERES

 

Para evitar riscos de discriminação, a questão ganharia em ser pensada em dois planos: o dos direitos das crianças e o de mulheres adultas – planos esses que as legislações especificamente anti-MGF não distinguem ao proibir as modificações genitais independentemente da idade. Parafraseando ­Johnsdotter e Essén (2010, p. 34), se a questão é a da proteção das crianças e da sua integridade corporal, então a legislação proibindo as intervenções genitais deveria ­salvaguardar que as mulheres adultas, independentemente da cor ou etnicidade, têm capacidade para tomar decisões sobre o seu corpo. A alternativa – acrescentam – seria estatuir que os genitais são intrinsecamente diferentes de outras partes do corpo (nariz, peito) e proibir todas as modificações genitais – de novo, colocando todas as mulheres na mesma categoria, independentemente da cor ou etnicidade. Só assim se poderia chegar a orientações consistentes que garantam ao mesmo tempo a proteção das crianças e a igualdade perante a lei.

Como o colocou Cardeira da Silva (2007, p. 23) referindo-se aos riscos de segmentar culturalmente práticas tidas por nocivas, tratando-as diferenciadamente consoante emanem de maiorias ou minorias, se é certo que o relativismo cultural tem limites, então há que cuidar que esses limites sejam universais, quer dizer, aplicáveis de igual modo a todas as configurações culturais – e não apenas a comunidades associadas à imigração. Caso contrário, poderemos acabar por interferir com as liberdades individuais de mulheres de etnicidades minoritárias. Se não são toleráveis práticas atentatórias dos direitos humanos por razões étnico-culturais, a repressão de tais práticas tão-pouco deveria ser induzida por essas razões.24 E se as “culturas” ou “tradições” não devem ser protegidas a expensas das liberdades individuais, estas tão-pouco deveriam ser menorizadas por razões culturais. Este é um risco real no caso de mulheres adultas.

No caso de crianças e jovens, cuja menoridade necessariamente modifica a questão do consentimento, a proteção da integridade corporal deve ser assegurada. Existem já vários instrumentos de prevenção e monitorização mobilizáveis no âmbito das estruturas de saúde e de proteção de menores. Mas também aqui há que estar atento às possíveis derivas e paradoxos gerados no “combate” sem tréguas à MGF, exemplificados pela proposta, levada pela deputada Hirsi Ali ao parlamento holandês, de sujeitar a uma investigação em série todas as raparigas provenientes de países de risco, constituindo a partir daí uma lista de crianças não-excisadas a submeter a inspeções ginecológicas compulsórias anuais até atingirem 18 anos. Como foi amplamente observado (Leye et al., 2007, p. 27), a proposta é estigmatizante, discriminatória e representa uma intromissão generalizada, reiterada e desproporcionada na privacidade em função da identificação étnica (Dias 2006), podendo gerar efeitos traumatizantes em quem pretendia proteger.25

Partilho o entendimento segundo o qual os portadores dos direitos humanos são indivíduos e não categorias coletivas, “comunidades”, ou “culturas” (Habermas, 1994).26 São os primeiros que “têm” direitos, não as segundas – a não ser para fins de proteção de direitos individuais que sejam negados na base da pertença a uma categoria coletiva. Tal não significa, porém, postular uma natureza humana universal personificada em indivíduos isolados e pré-sociais. Esses só existem enquanto abstrações. Como afirma Terence Turner (2007, p. 57), a “‘humanidade’ não é uma propriedade do indivíduo considerado independentemente das relações sociais, mas uma qualidade construída por essas relações(2007, p. 57)”.27 A dimensão coletiva dos direitos individuais não pode pois ser escamoteada, sem que ela capacite “comunidade” ou grupo algum a anular os direitos dos seus membros individuais ou a desenvolver a identidade e os valores próprios a expensas de outros grupos e indivíduos, impedindo-lhes um desenvolvimento autónomo e distinto(Turner, 2007, p. 60). Decorre daqui que uma “tradição” cultural não pode ser protegida por si mesma em detrimento dos direitos dos indivíduos. Mas se estes últimos têm direito a resistir às normas e expectativas sociais e devem poder fazer escolhas, tão-pouco deveriam ver estes direitos diminuídos pela circunstância de se identificarem ou serem identificados com uma “tradição” particular.

 

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Recebido a 18-01-2013. Aceite para publicação a 12-04-2013.

 

NOTAS

1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada em 2012 no congresso “Construir a Paz”, Universidade Fernando Pessoa.

2 O caso é nítido na definição dos chamados “delitos culturais”, que decorreriam de normas culturais em contradição com normas penais (Foblets, 1998; Broeck, 2001) e em que acusadores e acusados estariam alinhados em diferentes coletivos, com diferentes códigos culturais em tensão sob a alçada do Estado.

3 Para exemplos v. APF (2009).

4 Analisando os seus contornos políticos e culturais, Cardeira da Silva (2007) caracteriza o contexto em que surgiu um projeto elaborado no desconhecimento completo da base sociológica, demográfica e cultural sobre a qual se procurava legislar.

5 Para uma avaliação possível, a partir de contextos clínicos, v. Gonçalves (2007), Piedade (2008), acrescentando-se-lhe, a partir de representantes de comunidades étnicas ou religiosas, Martingo (2009).

6  V. Agra (1993) para um sobredimensionamento análogo no caso da construção da mobilização contra o problema “droga”, além da sua formatação global. Em Portugal, esta incluiu a abertura de linhas de financiamento para a investigação da cocaína, problema sério em países do centro geopolítico como os EUA, mas então virtualmente inexistente no país – ao contrário do que sucedia já com outras substâncias psicoativas, como a heroína.

7 Por Mutilação Genital Feminina a OMS entende todos os procedimentos que incluam remoções parciais ou totais dos genitais externos femininos (desde a excisão do prepúcio até ao corte dos lábios menores e infibulação) e/ou lesões por motivos culturais (e.g. perfurações do clítoris ou lábios, estiramentos, introdução de substâncias corrosivas para provocar sangramentos ou introdução de ervas para o estreitamento da vagina). Em 2008, porém, a OMS publica uma nova declaração que revê a classificação de 1997. Apesar de manter a o termo “mutilação”, este documento menciona o facto de algumas agências das Nações Unidas que subscrevem a declaração terem adicionado a palavra “corte” (compondo a sigla MGF/C) para assinalar a importância da utilização de terminologia não valorativa e não discriminatória (APF, 2009).

8 Uma circuncisão em condições de assepsia e anestesia em contexto clínico não terá os mesmos efeitos físico-patológicos que uma circuncisão ritual doméstica com um caco de vidro. Um exemplo recente é o dos 60 rapazes mortos (30 em duas ocasiões) e 300 hospitalizados na sequência de circuncisões rituais coletivas em províncias rurais da África do Sul em 2013 (Lusa, 2013).

9 V. Shell-Duncan (2008) acerca do relatório Lancet da OMS em 2006, as revisões sistemáticas de Carla Obermeyer (1999, 2003, 2005) da literatura médica sobre riscos de saúde, morbilidade e mortalidade associados à MGF, ou estudos com grupos de controlo ou assentes em compa­rações controladas entre mulheres excisadas e não excisadas quanto a problemas de infertilidade, relações sexuais dolorosas, tumores, incontinência urinária, infeções e riscos obstétricos (e.g. Linda Morison et al., 2001; Essen et al., 2002, 2005). Todos estes trabalhos mostraram não se verificarem as complicações sérias de saúde habitualmente atribuídas à MGF.

10 V. Degregori (2001) para uma revisão sistemática da literatura sobre efeitos adversos, a par de alguns benefícios quanto à prevenção do VIH e doenças sexualmente transmissíveis.

11 Previsivelmente abriu-se caminho a um ativismo anticircuncisão (“intactismo”) que se mobiliza nos EUA para banir a prática e clamar pela sua criminalização, suscitando no mesmo passo reações chocadas de grupos judeus como o American Jewish Committee, que a veem como um ataque à liberdade religiosa (NYT, 2011). Tendo em conta que o fundo cultural religioso não é à partida determinante para o alinhamento de posições quanto à circuncisão masculina, como já o havia atestado um posicionamento contrário a esta prática por parte do Circumcision Resource Center/Jewish Associates e da Israeli Association Against Genital Mutilation, apelos recentes à sua criminalização arriscam-se ao efeito contraproducente de favorecer precisamente este tipo de alinhamento reativo e acossamento identitário.

12 Um homem não circuncidado pode por esse facto inspirar tanto desagrado numa potencial parceira matrimonial quanto o recíproco.

13 Tal é possível porque estas intervenções, inclusive nas variantes mais radicais, limitam-se à zona externa do clítoris, que representa apenas uma pequena parte da estrutura deste órgão. A maior parte do tecido erétil e erógeno desta estrutura permanece intacta no interior. Além disso, na sexualidade humana intervêm não apenas variáveis anatómicas e fisiológicas, mas psicológicas e culturais.

14 A dor não é uma resposta meramente fisiológica a uma agressão externa, independente do contexto. Essa resposta é mediada por fatores psicossociais que modulam os limiares de tolerância à dor e tornam mais ou menos traumático o sentido e memória da sua experiência (Le ­Breton, 1988; Derges, 2009 para um contraste entre a tolerância da dor ritual e a da dor e sofrimento em contexto de guerra). Consoante a situação e a perceção que se tem dela, as expectativas que a rodeiam e o significado social de que se reveste para o indivíduo e o grupo, a dor física pode ser vivida como tortura, agressão hostil, ou prova valorizadora.

15 São ainda possíveis outros efeitos colaterais, especialmente em contexto migratório. Sara Johnsdotter (2008) reporta como na Suécia jovens mulheres excisadas provenientes da ­Somália, Eritreia e Etiópia são repetidamente confrontadas com a mensagem pública, martelada nas campanhas anti-MGF, de que estão sexualmente mutiladas e privadas da capacidade de desfrutar de prazer sexual e orgásmico. Algumas são convencidas de que a clitoridectomia lhes arruinou para sempre a possibilidade de uma vida sexual satisfatória, apesar de as mesmas terem relatado experiências orgásmicas e considerado normal a sua vida sexual antes de migrarem. Mulheres que se viam e sentiam como “normais” passaram pois a ver-se e sentir-se como “anormais”. As que iniciam a vida sexual no país de acolhimento têm por única fonte de leitura da sua sexualidade aquela que lhes diz, infundadamente, que lhes está vedado qualquer potencial para uma sexualidade gratificante.

16 “Parem de tatear as nossas cuecas!”Vai no mesmo sentido a denúncia por parte de ativistas africanas quanto aos estragos causados pela “cruzada” visando “salvá-las”, e o racismo latente no fervor colocado nessa causa.

17 Numa análise especialmente relevante para o caso português, v. Dias (2006) a propósito do caso do fanado.

18 Várias ações deste tipo estão previstas no atual Programa de Ação para Eliminação da MGF (APF, 2009).

19 Para uma análise deste tipo de medidas v. Rodrigues (2011).

20 Nomeadamente através do Artigo 144.º do Código Penal que contempla “ofensas contra o corpo ou saúde de outra pessoa por forma a privá-lo de importante órgão ou membro”. Este artigo sofreu uma alteração em 2007 (DR, 1.ª série, n.º 170, 4 de setembro), tendo-lhe sido acrescentada a referência “[…] tirar ou afetar, de maneira grave (…), a capacidade de fruição sexual”. Além da Suécia e do Reino Unido, a Áustria, Bélgica, Dinamarca, Itália e Espanha seguiram a via da criminalização específica.

21 Foram, por exemplo, sobretudo as associações à MGF que em Portugal projetaram a discreta comunidade guineense nos media.

22 The Guardian (2009).

23 Alguma crítica feminista desafia os fundamentos deste valor cultural e encara estas mulheres como vítimas das mais variadas pressões (“patriarcais”, da indústria de beleza) e ideais culturais que definem não apenas novos padrões de beleza, mas também de “normalidade”, aumentando assim sentimentos de inadequação e insegurança (Green, 2005; Braun, 2005; Braun e Kitzinger, 2001; Tiefer, 2008).

24 Esta leitura é possível quando, por exemplo, o partido que em 2004 Portugal avançou com uma proposta legislativa de criminalização específica da MGF situa-se numa zona do espetro político que não tem estado historicamente na primeira linha da defesa dos direitos das mulheres, nem se tem destacado pelas suas perspetivas feministas. Estreou-se nelas a propósito de comunidades imigrantes, culturalmente outras – das mulheres dos “outros” (Cardeira da Silva, 2007).

25 V. a análise dos exames compulsórios de menores na Suécia por Johnsdotter (2009).

26 V. Vale de Almeida (2012) para o debate sobre cultura e direitos humanos.

27 Tradução minha.

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