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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.208 Lisboa jul. 2013

 

A “durabilidade” de Salazar e os desafios da história do Estado Novo

 

Manuel Deniz Silva

*INET-MD (FCSH-UNL). E-mail: manuel_denizsilva@yahoo.fr

 

O último livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder, A Arte de Saber Durar (Tinta-da-China, 2012) afronta um dos problemas porventura mais difíceis e delicados com que a historiografia sobre o período do Estado Novo tem lidado. Como pôde o regime autoritário sobreviver ao longo de 48 anos, apesar das diversas crises que atravessou e do seu caráter antidemocrático? Uma pergunta incontornável para a construção da imagem histórica coletiva do nosso passado recente, mas nem sempre fácil de enunciar e de manipular no quadro de um rigoroso inquérito historiográfico. Foi isso que, de uma forma inédita, Fernando Rosas se propôs fazer neste ensaio, tomando a “longa duração do salazarismo como um fenómeno histórico em si” (p. 186). Para isso, o autor retraçou a evolução do regime naquela que será talvez uma das melhores sínteses do período até hoje publicadas, resumindo e sistematizando não só a sua já longa reflexão sobre o tema, como também a vasta produção académica das duas últimas décadas, de que ele próprio foi, aliás, em boa parte o impulsionador.

O livro abre com a definição das grandes linhas do pensamento político de Salazar, mas distancia-se assumidamente do género biográfico. Para ­Fernando Rosas, mais importante do que compreender neste contexto as motivações pessoais e o trajeto individual de Salazar, é compreender como ele se ­tornou no nome genérico de uma determinada corrente política e social, de um determinado grupo de interesses. O ensaio articula-se assim, depois deste primeiro capítulo introdutório, em duas partes, uma sobre a tomada de poder por Salazar e outra sobre a forma como este assegurou a sua manutenção. A primeira, correspondente ao segundo capítulo do livro, descreve os passos que Salazar teve de dar para chegar ao poder, começando por demolir os três mitos mais correntes sobre o 28 de maio: o de uma intervenção estratégica coerente do Exército, o de uma queda fácil e sem luta da República liberal, e o da transição da Ditadura Militar para o Estado Novo como uma espécie de “passeio triunfal” de Salazar e do seu grupo. Na narrativa proposta por Fernando Rosas, tudo terá sido mais emaranhado, desorganizado e confuso. A progressiva ascensão da “frente heteróclita” que servirá de base à ditadura acontece tendo como pano de fundo um clima de guerra civil entre 1927 e 1931, e conta com a permanente resistência do republicanismo conservador, particularmente importante entre os militares. Os “passos” necessários serão assim uma sequência intrincada de acordos, repressões violentas, seduções, traições, alianças e absorções, que explicam o demorado processo fundacional do novo regime, plasmado nos compromissos que presidiram à redação da Constituição de 1933.

Um dos aspetos mais interessantes desta narrativa “passo a passo”, até pelo estilo de escrita de Fernando Rosas e pelo uso que faz da variação de tempos verbais para dramatizar a narração dos diferentes lances políticos e militares, é a forma como nos permite vislumbrar inúmeros momentos em que a história que nos conta poderia ter sido outra. A tomada do poder pelo salazarismo, e isso poucas vezes terá sido tão completamente demonstrado como neste livro, foi sobretudo a de uma “resistível” ascensão. Fernando Rosas mostra-nos a história do Estado Novo como um jardim de caminhos que se bifurcam: um golpe lançado tarde de mais, uma ligação que falhou entre grupos descontentes, a falta de coragem num momento decisivo, um elemento imprevisto que veio reequilibrar uma relação de forças. Nesse xadrez arriscado e subtil, podemos ver, se quisermos, a confirmação da proverbial habilidade política de Salazar. Mas também a instabilidade permanente dos equilíbrios que lhe permitiram durar. O Estado Novo não era, nunca foi em nenhum dos seus momentos, inelutável.

É precisamente a forma como o salazarismo soube contornar a permanente ameaça de desequilíbrio das relações de forças em que se sustentava que leva Fernando Rosas a procurar identificar, no terceiro capítulo, os “factores estruturais da durabilidade do regime” (p. 186), destacando cinco fundamentais: a violência (preventiva e punitiva), o controlo das Forças Armadas, a ­cumplicidade da hierarquia da Igreja católica, a organização corporativa e o projeto totalitário do regime. A questão da violência encontra neste livro uma centralidade e uma problematização que não escondem o seu objetivo de responder a algumas tendências recentes de apresentar a sua utilização pelo regime como relativamente limitada, quando comparada com outros contextos políticos contemporâneos e mesmo com outros momentos da história nacional, como a 1.ª República que o precedeu, debate em que ecoam as tentações de reificação da violência política vindas de debates anteriores em torno das macabras contagens dos “livros negros” dos regimes totalitários. A distinção entre violência preventiva e punitiva leva Fernando Rosas a sair do simples debate contabilístico de prisões e mortes com que essa historiografia tenta legitimar a ideia de uma ditadura “branda”. Por um lado, Rosas desconstrói a ideia de um Estado Novo “limitado pela moral e o direito”, mostrando como essa “moral” e esse “direito” nunca constituíram formas de “heterolimitação” do seu poder, mas sim uma forma de auto-legitimação do poder discricionário. Por outro lado, esse poder foi, no salazarismo, transformado numa “gestão politicamente racional” da violência (p. 195), que se baseava essencialmente numa “surda socialização do medo” (p. 200) e no carácer exemplar da punição. Nessa “economia da violência”, a ação punitiva era assim reservada para os que “ousavam desafiar a “ordem estabelecida” (p. 202), e o seu caráter brutal (prisão sem culpa formada e por tempo indeterminado, recurso frequente à tortura, assassinato político) surgia como aviso para todos os que estivessem tentados a pisar o risco delimitador da ordem.

Porém, a resposta mais convincente ao problema colocado inicialmente por Fernando Rosas, o da durabilidade do regime, surge sobretudo no capítulo relativo ao corporativismo. Nele se descreve com particular clareza a composição da frente de interesses e de grupos sociais que serviu de esteio à ditadura: “uma oligarquia desde sempre alimentada e criada à sombra tutelar da proteção multiforme do Estado, educada no medo do risco, da concorrência e da agitação social” (p. 291). É a esses grupos que o Estado Novo assegurará um poder forte, “um Estado de “ordem” – nas finanças, na administração, nas “ruas” – para defender e compor os interesses dominantes face aos perigos que espreitavam” (p. 292). De certa forma, Salazar é o nome dessa dupla estratégia de repressão e criminalização das manifestações políticas e sindicais do mundo do trabalho e do dirigismo regulador do Estado, garante da estabilidade dos interesses das classes dominantes.

É neste contexto que Fernando Rosas intervém de maneira decisiva no debate sobre o conceito de fascismo. Como sabemos, desde o 25 de abril que a história do Estado Novo foi sendo marcada por sucessivas flutuações semânticas em torno da definição do regime. Se no imediato período pós-revolução o “fascismo” se impôs como termo identificador, os debates que se seguiram sobre a caracterização do regime e da sua inserção nas diferentes tipologias comparatistas conduziram a um progressivo abandono do conceito, considerado demasiado marcado pelo debate político. Rosas recoloca a questão noutros termos. Saindo da tipologia das formas de regime, uma questão que interessa sobretudo à ciência política, contextualiza a experiência autoritária portuguesa no contexto de um movimento internacional mais vasto, decorrente das crises do capitalismo ocidental desde o final do século XIX. Mais do que comparar legislações e estruturas de movimentos ou partidos, importa perceber “a que perigos, a que ameaças pretendiam, afinal, reagir as direitas tradicionalistas” (p. 288). Ou seja, para Rosas, se o salazarismo é uma “modalidade específica” do fascismo, é porque participa desse movimento particular do período de entre-guerras em que o autoritarismo procurou ser uma resposta à massificação da política (provocada pela industrialização, terciarização e urbanização) e uma tentativa de restauração da acumulação capitalista através da redução dos custos do trabalho.

No entanto, a preocupação “estrutural” da argumentação de Fernando Rosas, de clara matriz althusseriana, leva-o a considerar os outros pilares da durabilidade do regime (polícia, exército, Igreja, propaganda e inculcação) como um conjunto de “aparelhos” centralizados, criados e depois sucessivamente afinados para a manutenção desse sistema de desigualdade e exploração. Assim, se Fernando Rosas aponta de forma eficaz as contradições entre o discurso e a prática do regime, se desmonta implacavelmente a ficção que o Estado Novo criou de si próprio, se identifica claramente os interesses que sustentaram a sua ascensão e a sua perenidade, a sua análise não se afasta de uma determinada conceção unitária e centralizada do poder, aquela mesma que marcou a construção do Estado Novo. Na leitura de conjunto que o livro nos propõe, o regime surge-nos como uma máquina bem oleada, que apesar de ir gripando aqui e ali, foi conseguindo adaptar-se e ir funcionando até um particular “pauzinho na engrenagem” (o movimento dos capitães) a conseguir parar.

Uma das dificuldades da historiografia do Estado Novo tem sido sair do quadro definido por essa extraordinária força centrípeta do próprio regime. Como afirmam Nuno Domingos e Vítor Pereira na sua introdução ao volume O Estado Novo em Questão (2010), Salazar tem sido muitas vezes “a árvore que esconde a floresta” das relações de poder durante a ditadura, não permitindo compreender a autonomia de atuação de muitos sectores da administração nem “os processos de negociação e apropriação individual ou colectiva dos recursos estatais” (p. 16). A focalização sobre os arquivos centrais do Estado (e em particular do Arquivo Salazar) reproduz essa disposição do centro para a periferia e de cima para baixo que presidiu à própria imaginação do regime, sem levar em conta as “reapropriações, traduções, “bricolagens” e subversões populares” (p. 19) das intenções ideológicas emanadas das dinâmicas institucionais. É verdade que Fernando Rosas assume claramente o enquadramento que escolheu, e que o livro não pretende ser uma história da sociedade portuguesa durante o período salazarista, nem cobrir todas as suas dinâmicas políticas, económicas e sociais. O estudo pretende isolar, para o tratar enquanto objeto autónomo, a lógica interna do poder salazarista. Mas ao enquadrar o poder através dessa focal centralizadora, ao tomá-lo como uma lógica de aparelhos que exercem o seu poder sobre uma população passiva, reforça o seu caráter exógeno em relação à sociedade portuguesa.

Essa perspetiva encontra o seu limite, a nosso ver, na forma como é abordada a noção problemática de “consenso”. Fernando Rosas não faz uma referência explícita ao conceito tal como foi introduzido por Renzo de Felice no debate historiográfico do fascismo, apesar de invocar uma outra contribuição importante do historiador italiano, a diferenciação entre “fascismo enquanto movimento” e “fascismo enquanto regime”. Mas a palavra e a ideia surgem por duas vezes e de forma aparentemente contraditória. No capítulo dedicado à violência, Fernando Rosas afasta a possibilidade de o enquadramento ideológico organizado pelo regime ter constituído uma forma de “cimento” para a durabilidade do regime: “até aos finais dos anos 60, quando tudo isto se começa a desmoronar, o que largamente predominava não era o consenso, a aceitação livre, ou sequer o sucesso de uma doutrinação massiva. Era a sujeição, a obediência, a passividade, obtidas pela combinação eficaz do enquadramento preventivo com a resposta punitiva” (p. 202). No entanto, no último capítulo do livro, sobre o “projeto totalitário” do regime, Fernando Rosas não deixa de assinalar a importância decisiva da fabricação do consenso como justificação da rede de aparelhos de propaganda e inculcação do regime. Segundo ele, a tarefa reservada por Salazar às elites era a de saber “controlar e conduzir a massa [...], organizar o consenso e a conformação, em suma, garantir a estabilidade e a durabilidade do regime” (p. 329). O retrato que Fernando Rosas nos desenha é o de um regime que procurou incessantemente fabricar o consenso através da propaganda e da inculcação, mas que apenas o conseguiu aplicar através do medo assegurado pelo seu aparato policial. Ou seja, reconduz o fascismo à ação de uma minoria, deixando na sombra a forma capilar como o poder se exerceu e se manifestou durante esse período.

O “projeto totalitário” do regime surge assim como o pilar menos problematizado da argumentação de Fernando Rosas. Não só o conceito de “totalitarismo” não merece o mesmo enquadramento reservado ao conceito de “fascismo” (evitando assim discutir o seu carácter problemático enquanto categoria analítica e política), como a escolha dos discursos que são convocados para justificar essa vocação do salazarismo são mais restritos (são sobretudo citados Cordeiro Ramos e Carneiro Pacheco, dois germanófilos convictos). Não encontramos um retrato das divisões e contradições internas do projeto propagandista e inculcatório do regime, como o que Fernando Rosas nos propõe quando analisa as Forças Armadas, a Igreja ou os grupos económicos. Para dar apenas um exemplo entre outros possíveis, não existe qualquer referência à conceção diferenciada de propaganda desenvolvida por Henrique Galvão, nos cortejos históricos e coloniais, e em particular na Emissora Nacional, concorrente do modelo do SPN de António Ferro (ver as investigações recentes de Vera Marques Alves ou de Pedro Russo Moreira). Não temos espaço aqui para desenvolver este debate, mas parece-nos ainda assim importante assinalar que este menor investimento na caracterização do “projeto totalitário” do regime se relaciona decisivamente com a dificuldade em enfrentar a questão do “consenso”. É evidente que essa noção num contexto autoritário e ditatorial é problemática, mesmo se na formulação de Renzo de Felice “consenso” não se confunde com “adesão” ou “escolha livre”. Mas, mesmo sendo discutível a sua pertinência enquanto categoria operativa, ela não deixa de lembrar a necessidade de compreender as formas efetivas com que a ideologia, repegando numa expressão de Jorge Ramos do Ó citada por Rosas, “impregnou as práticas”.

Nesta questão se joga também em grande parte, a nosso ver, a “batalha pela Memória” a que o autor se refere na introdução do seu livro. Fernando Rosas tem sem dúvida razão em lembrar a importância da memória num terreno que está longe de ser neutro, como ficou bem claro no “não debate” que agitou a historiografia portuguesa sobre o Estado Novo no ano passado (veja-se um resumo em Meneses, 2012). A “banalização” do regime é um perigo real, que responde a objetivos ideológicos evidentes de contestação e substituição da memória do antifascismo que está na base do regime democrático saído do 25 de abril. A forma como Fernando Rosas problematiza a questão da violência e reativa a noção de fascismo são elementos essenciais para esse debate. Mas a ênfase na absoluta “singularidade” da ditadura, acompanhada pela caracterização exógena dos seus aparelhos em relação à sociedade portuguesa, que constituíram uma das bases da memória antifascista, arrisca-se a remeter-nos para uma guerra de posições sem saída. Nesse sentido, a fixação na questão do “revisionismo” é a principal armadilha que espreita o debate sobre a memória do Estado Novo. Como nos lembra Enzo Traverso, “falar de ‘revisionismo’ remete sempre para uma história teologizada”. Toda a escrita da história é sempre uma forma de revisão e “existem portanto revisões de natureza diferente: algumas são fecundas, outras discutíveis, outras, enfim, profundamente nefastas” (Traverso, 2012, p. 161). A questão passará portanto por situar de novo o debate, reconhecendo que é na variação de enquadramentos e de focagens que se constroem memórias e formas de pensar o passado diferentes, alternativas, e muitas vezes antagónicas. Entender o projeto ideológico do poder salazarista de outra forma, admitindo e explorando as suas instâncias autónomas, as suas zonas cinzentas, os seus espaços de negociação, a intrincada teia de relações que o ligou à sociedade portuguesa, é um elemento fundamental para pensar a sua durabilidade e para enfrentar a verdade incómoda que Eduardo ­Lourenço, logo em 1976, lembrava no seu célebre artigo “Do fascismo que ‘nunca existiu’”: “Importância deveras tem só e apenas o saber compreender e encarar até aos limites do tolerável que esse fascismo foi, é e será, pelo futuro que ele condiciona, realidade portuguesa” (1976, p. 239). Esse é, ainda hoje, o maior desafio com que nos confrontamos.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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