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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.208 Lisboa jul. 2013

 

Salazar e o poder: A arte de saber durar

 

Filipe Ribeiro de Meneses*

*National University of Ireland, Maynooth. E-mail: filipe.demeneses@nuim.ie

 

Em Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar (Tinta-da-China, 2012), Fernando Rosas reúne, em estilo ensaístico, os seus pensamentos sobre a longevidade do Estado Novo, tema que, explica, ainda hoje o intriga. Resume assim parte do que escreveu e disse no decurso da sua longa carreira, e fá-lo de maneira direta, clara e soberbamente acessível; a erudição não choca com o prazer da leitura. Merece o livro toda a atenção que tem recebido neste momento particularmente conturbado nas relações entre historiadores portugueses, constituindo um contributo original e importante para a compreensão do período e, até certo ponto, dos debates académicos que o cercam.

Segundo Fernando Rosas, Salazar passou grande parte da sua vida útil no poder porque soube criar um regime que, mercê de um projeto totalitário bem-sucedido, fez sentir a sua ação em cada lar, escola e lugar de trabalho, divulgando sem cessar o seu credo político, transformando os portugueses em “novos homens” e incutindo a ideia da impossibilidade de resistir. Foi o regime secundado neste esforço pela Igreja Católica, que lhe emprestou, a troco de proteção estatal, todo o seu prestígio e capacidade de disseminação de informação. Para os poucos que ultrapassaram estas barreiras e insistiram em desafiar o Estado, estava reservada o que Rosas considera a violência repressiva, que passou, claro, pela PIDE e, nas grandes ocasiões, pelas próprias Forças Armadas, o pilar sobre o qual assentou, em última instância, todo o regime. Podemos dizer com total segurança que nunca o Estado Novo foi descrito de forma a apresentá-lo tão ameaçador, omnipresente e desejoso de transformar para sempre Portugal num deserto sem vida própria e iniciativa, para além da tolerada pelo Estado. Parafraseando George Orwell (e confundindo-lhe as obras), olhamos de Salazar para Big Brother, de Big Brother para Salazar e de novo de Salazar para Big Brother, e já não somos capazes de os distinguir. Esta descrição é feita com enorme mestria, e certamente forçará todos os historiadores do período a refletirem sobre o que já escreveram e disseram sobre a natureza e a intensidade da repressão salazarista. É este, sem dúvida, o ponto forte do livro.

Segundo Fernando Rosas, este totalitarismo português (que nasceu da necessidade de equacionar o Estado com a nação “imutável”) exerceu-se através dos seguintes fatores: a “violência preventiva, intimidatória e desmobilizadora” que se fazia sentir dia após dia, hora após hora, e a violência repressiva; o controlo político, pelo governo, das Forças Armadas, a partir de 1937-1938; a já referida cumplicidade da Igreja Católica; a prática do regime corporativo; e o “investimento totalitário no ‘homem novo’ salazarista”. Mas quando estes fenómenos começam a ser investigados um a um, já o livro vai a mais de metade; pelo caminho fica uma longa discussão sobre a subida de Salazar ao poder, com todos os cálculos e arranjos políticos que a possibilitaram. Afinal, os objetivos de Rosas passam também por desmontar não só a ideia de que a Revolução Nacional de 1926 existiu (uma tarefa provavelmente desnecessária, já que poucos observadores bem informados alguma vez acreditaram na existência de tal “Revolução”), como também a noção de uma transição natural da ditadura militar para o Estado Novo (o que também não constitui uma surpresa). Quer ainda Rosas demonstrar que a República morreu de pé, a combater, em vez de simplesmente aceitar a nova ordem imposta ao país. Pelo caminho, e até chegarmos à investigação da “arte de saber durar” – uma vez estabelecidos os acordos práticos e ideológicos que permitiram o nascimento do Estado Novo – fica ainda uma longuíssima exposição sobre as entrevistas Salazar/Ferro, nos anos 30, em que o segundo tentou, com sucesso, fixar uma certa imagem de Salazar e do seu projeto. Tanta atenção é dedicada ao “salazarismo” desta década, supostamente os anos do seu maior fulgor ideológico, que somos levados a questionar a escolha do título para o volume.

A natureza ensaística da obra permite a Fernando Rosas não ter de lidar com quem não está de acordo com ele – um lote de historiadores indefinido, mas resumido na expressão “uma certa historiografia”, que aparece várias vezes ao longo do texto. Dada a crispação atual na academia portuguesa, esta até pode parecer uma boa solução para não fomentar querelas pessoais. Porém, tal forma de escrever cria a ilusão de consenso sobre os pressupostos empregues e as conclusões a que estes conduzem o leitor, e é aqui que confessamos não estar de acordo com o autor na sua abordagem do Estado Novo. Em Salazar e o Poder somos confrontados com uma definição do fenómeno fascista nascida do combate político e não da investigação académica e tão velha quanto o próprio fenómeno (o fascismo como a solução adotada por uma burguesia com tendências plutocráticas para a crise económica, social e política – o suposto estertor da democracia parlamentar e do capitalismo – dos anos 20 e 30 do século XX). Mas quem questiona esta definição de fascismo não é apenas um ou outro historiador português saudosista, revisionista, ávido de lucro ou simplesmente incompetente. Como demonstra uma leitura do recente The Nature of Fascism Revisited, de António Costa Pinto (2012), existe uma literatura internacional, riquíssima em ideias, dedicada à exploração do fenómeno fascista, que vem evoluindo há décadas: mas Fernando Rosas passa-lhe ao lado. Talvez tenha sido esta uma oportunidade perdida para Rosas dialogar, através deste livro, com os historiadores de quem discorda. Tendo definido o fascismo como uma forma de pôr os recursos do Estado – incluindo o monopólio da violência – ao serviço de alguns grupos económicos, Rosas, seguindo as pegadas de Manuel Lucena, encontra no regime corporativo o fascismo português em ação:

 

Não é só o produto temporário de uma conjuntura, ou de uma sucessão de conjunturas, de crise, um “remédio heróico” a que a burguesia e o Estado recorrem em fases de aperto. Dura para além delas com estabilidade, apesar das críticas e das crises. Provavelmente, porque espelha a natureza profunda do fascismo português e dos seus propósitos de domínio e perpetuação. Por isso, aguenta-se quase imutável ao longo do regime e, por isso, provavelmente, será um dos factores centrais da longevidade do Estado Novo salazarista [Rosas, 2012, pp. 308-309].

 

Duas coisas nos ocorrem, para lá do uso curioso da palavra “provavelmente” neste parágrafo. Por um lado, que a definição super-abrangente de fascismo por ele empregue permite a Fernando Rosas confirmar, com enorme facilidade, a existência desse fenómeno no Portugal de Salazar. Por outro, que o corporativismo pode simplesmente ser entendido como a consequência do desejo de permitir a evolução das economias nacional e colonial – e da sua capacidade produtiva – precavendo Portugal continental e ultramarino contra perturbações sociais que daí advinham (sem sucesso, diga-se de passagem), contra ideias que dificultavam o caminho traçado por Salazar e, finalmente, contra os efeitos da competição estrangeira.

A natureza ensaística do texto permite também a Fernando Rosas ­deixar de lado parte do que antes escreveu, de enorme relevância para as questões ­discutidas em Salazar e o Poder. Partindo de uma entrevista concedida a ­António Ferro em 1938, em que nada é dito sobre a guerra civil de Espanha, Rosas (2012, p. 165) afirma, “Para Ferro e Salazar, não obstante a projeção internacional que o livro viria a ter, o essencial era a política interna”. E é este o caminho trilhado por Rosas, deixando de lado a questão colonial e, surpreendentemente, a condução por Salazar da diplomacia portuguesa antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, sobre a qual escreveu, há perto de uma década,

 

Salazar reaped important political dividends from Portugal’s short and golden period as an elevated member of the international community. He was able to negotiate the maintenance of a neutrality which, in its functioning, was favourable to essential Allied interests, in return for their discreet but decisive support un upholding his regime, especially during the agitated period at the end of the war [Rosas, 2002, p. 273].

 

Esta omissão é, como dissemos, surpreendente, porque é neste esforço diplomático que muitos historiadores encontram a “arte de saber durar” de Salazar. Igualmente dignas de uma discussão mais ampla do que a que podemos fazer nestas linhas, ficando apenas a indicação, são ainda algumas das afirmações feitas ao longo do texto. Escreve Fernando Rosas que, em Portugal, a repressão ativa era reservada para uma minoria, sendo desnecessária para a maioria submissa, e que esta situação era em tudo semelhante ao que se assistia em Espanha, em Itália ou na Alemanha. Mas se em Espanha o medo assentava na experiência brutal da Guerra Civil e dos anos de repressão sistemática que se lhe seguiram (dezenas de milhares de execuções; campos de concentração; trabalhos forçados em condições desumanas; divisão da sociedade espanhola entre vencedores e vencidos através de medidas legislativas, arbitrariedades administrativas e punições económicas), na Alemanha nazi a busca de novas vítimas políticas, sociais e raciais foi sempre acelerando até ao fim do regime: a máquina exterminadora, uma vez a funcionar, não mais abrandou até ser destruída pelos Aliados. A experiência portuguesa não nos parece semelhante1, assim como não o é em relação a Itália, onde a mobilização da população pelo regime foi constante do princípio ao fim da era mussoliniana. Regressando por um instante à questão da “violência preventiva”, parece-nos que a visão de Rosas choca com as repetidas queixas de falta de meios, de fulgor ideológico e de resultados práticos das várias organizações criadas para a conduzir que se encontram na correspondência pessoal e oficial do ditador.

Há uma outra comparação com Espanha que vale a pena fazer. Fernando Rosas descreve o período entre fevereiro de 1927 e agosto de 1931 como “uma verdadeira guerra civil intermitente com levantamentos de tropas e civis armados nas principais cidades, barricadas nas ruas, duelos de artilharia, bombardeamentos de aviação, destruições de casario, centenas de mortos e feridos e milhares de presos e deportados” (Rosas, 2012, p. 67). Com um pouco mais de precisão (e pecando talvez, afirma ele, por conservadorismo), Rosas fala em dois mil presos civis e militares, mil e quinhentos deportados, duzentos mortos e mil feridos. São impressionantes, sem dúvida, estes números, embora presumivelmente haja quem tenha caído em duas ou mais destas categorias; mas se pensarmos no caso espanhol – em que a reação popular ao golpe militar de julho de 1936 foi suficiente para o travar em grande parte do país, quer nas grandes cidades, quer no campo – é legítimo sugerir que a reação contra a ditadura militar portuguesa, a partir de 1926, ficou, em termos de escala, mais próxima da resistência monárquica contra a República (de 1911 a 1919) do que de um levantamento popular de massas. Porquê tal diferença entre ­Espanha e Portugal? Porque em apenas cinco anos de existência (ou melhor, três, deixando de lado o “biénio negro” de 1933-1935) a Segunda República espanhola fez muito mais pela população do que a Primeira República portuguesa em quase dezasseis. Nunca tendo vivido em plena democracia, a maioria dos portugueses não sentiu a necessidade de a defender.

Por fim, devemos assinalar um lapso importante. Escreve Fernando Rosas sobre a Concordata de 1940,

 

É preciso olhar para a Concordata à luz do período histórico em que é assinada, em Maio de 1940, o auge da época dos fascismos. Franco acaba de vencer a Guerra Civil, bendita como uma cruzada […] a Alemanha hitleriana está a infligir uma dramática derrota aos aliados anglo-franceses na frente ocidental, e em breve chegará aos Pirenéus; a Itália de Mussolini vai entrar na guerra ao lado do Eixo, o espectro da “ordem nova” parece desenhar-se de forma inexorável sobre a Europa [Rosas, 2012, p. 266].

 

Deixando de parte a longa negociação da Concordata (sete anos, reconhece Rosas), a 7 de maio, data da assinatura do documento, as forças alemãs ainda não tinham iniciado a invasão da França; ninguém pensava possível, na altura, o desmoronar dos aliados, protegidos pela “inexpugnável” Linha Maginot; não se falava ainda sobre a “Nova Ordem” nazi2. A invasão germano-soviética da Polónia e as campanhas na Escandinávia (Finlândia, Dinamarca e Noruega, esta última ainda em aberto) eram vistas no Ocidente como escaramuças iniciais, o prelúdio ao imprevisível confronto entre França e Alemanha. Mussolini manteve-se fora da contenda até a vitória alemã sobre a França ser irreversível, de forma a expor o menos possível as forças armadas italianas, exaustas depois da Guerra Civil espanhola e da invasão da Abissínia. O momento internacional que envolve a assinatura da Concordata é, por isso, bem diferente daquele que é descrito por Rosas.

Este é, porém, um simples detalhe, e nem ele nem outras afirmações que nos deixam algumas dúvidas – sobre a evolução da Primeira República após a noite sangrenta e sobre o impacto da campanha presidencial de Norton de Matos – chegam para beliscar o valor daquela que é uma das mais importantes e originais obras recentes sobre o Estado Novo e o seu fundador. Salazar e o Poder, graças à forma como ilumina as ligações entre poder económico e político, pode ainda servir de base para uma reflexão profunda sobre o Portugal pós-Salazar, desde Marcelo Caetano até aos dias de hoje.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ELKINS, C. (2005), Imperial Reckoning: The Untold Story of Britain’s Gulag in Kenya, Nova Iorque, Henry Holt.         [ Links ]

COSTA PINTO, A. (2012), The Nature of Fascism Revisited, Nova Iorque, SSM-Columbia University Press.         [ Links ]

MAZOWER, M. (2009), Hitler’s Empire: How the Nazis Ruled Europe, Londres, Penguin.         [ Links ]

ROSAS, F. (2002), “Portuguese neutrality in the Second World War”. In N. Wylie (ed.), European Neutrals and Non-Belligerents During the Second World War, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 268-282.         [ Links ]

ROSAS, F. (2012), Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar, Lisboa, Tinta-da-China.         [ Links ]

 

NOTAS

1 A situação nas colónias era diferente, sobretudo a partir de 1961. Mas vale a pena lembrar a brutalidade das outras potências coloniais – democracias parlamentares todas elas – no combate aos movimentos de libertação africanos e asiáticos. Ainda este ano o governo britânico foi forçado em tribunal a pagar quase catorze milhões de libras às vítimas de maus tratos infligidos em campos de concentração no Quénia, aceitando assim a verdade das acusações detalhadas por Caroline Elkins (2005) no seu livro Imperial Reckoning: The Untold Story of Britain’s Gulag in Kenya. O colonialismo assentava, por definição, sobre a violência, e vários historiadores já se debruçaram sobre o impacto político, social e cultural, na Europa, da violência praticada em África a partir da sua partilha.

2 E mesmo quando se começou a falar, ninguém sabia bem o que queria dizer a expressão, algo tornado claro por Mark Mazower (2009).

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